30 de dez. de 2023

Esperança

Todo início de ano temos eperança de que o próximo seja melhor, que tenhamos mais saúde, alegria, tranquilidade e amor. Tudo isto é bom e não é errado desejar um vida melhor, afinal ninguém precisa ser um filósofo estóico para alcançar os céus e se alguém não tiver mais esperanças e desejos na vida, o que resta é apenas desespero e a morte. Mas enquanto todos tem esperança, há alguams diferenças importantes quando consideramos a esperança baseada na fé.

O Catecismo da Igreja Católica (CIC 1817) define esperança assim:

A esperança é a virtude teologal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo. "Conservemos firmemente a esperança que professamos, pois Aquele que fez a promessa é fiel" (Heb 10, 23). "O Espírito Santo, que Ele derramou abundantemente sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, para que, justificados pela sua graça, nos tornássemos, em esperança, herdeiros da vida eterna" (Tt 3, 6-7).

Em primeiro lugar, a esperança é um dom de Deus, que Ele prometeu para nosso benefício. A esperança nos dá a possibilidade de enfrentarmos qualquer situação sabendo que por mais difícil que pareça, Deus pode agir e transformá-la em algo diferente do que pensamos. Os desafios da vida podem parecer impossíveis, todos nós já enfrentamos situações assim, mas Deus tem o poder de recriar a vida a partir de uma situação de morte. Cristo fez exatamente isto quando desceu à mansão dos mortos e ressuscitou no terceiro dia, subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus. Professamos esta fé em cada Missa, e quando temos uma situação como uma doença, desemprego, crise na família, podemos confiar que Deus pode renovar nossa vida, refazer a nossa história e conduzir a vida melhor. 

Em segundo lugar, devemos ter nossos olhos não apenas na vida terrestre, mas sabermos que o Reino dos Céus e a vida eterna devem ser o centro da nossa esperança e da nossa vida. Com o auxílio do Espírito Santo, do qual a esperança é um dos dons, podemos ter a certeza que, arrependidos de nossos pecados, levando uma vida santificada, também ascenderemos aos céus e nos encontraremos junto de Deus. A vida não termina com a nossa morte, a vida é eterna.

Em terceiro lugar, devemos confiar em Deus, não nas nossas forças. Como seres humanos somos imperfeitos e nossa compreensão é incompleta, mas Deus é perfeito e onisciente. Nele podemos confiar plenamente, pois Ele sabe, melhor que nós, onde estará nossa felicidade. Nossos erros do passado podem ser apagados, nosso futuro reconstruído por Deus. Não há dificuldade que Deus não possa nos ajudar a superar, não há problema que Deus não possa resolver. Nosso papel é rezar e confiar em Deus, para que a vontade Dele se faça na nossa vida, não que Ele faça o que queremos, mas que Ele nos ajude a estarmos preparados para aceitar o que Ele coloca na nossa vida. 

Deixo aqui algumas passagens bíblicas que podemos ler e explorar, que falam desta esperança em Deus, que a fé o Espírito Santo nos trazem. Que todos tenhamos um Feliz Ano Novo!


  • Coragem! E sede fortes. Nada vos atemorize, e não os temais, porque é o Senhor, vosso Deus, que marcha à vossa frente: ele não vos deixará nem vos abandonará” (Dt 31, 6)
  • Vós sois meu abrigo e meu escudo; vossa palavra é minha esperança. (Sl 119, 114)
  • Em recompensa, o meu Deus há de prover magnificamente a todas as vossas necessidades, segundo a sua glória, em Jesus Cristo. (Fp 4, 19)
  • O Senhor é minha luz e minha salvação, a quem temerei? O Senhor é o protetor de minha vida, de quem terei medo? Quando os malvados me atacam para me devorar vivo, são eles, meus adversários e inimigos, que resvalam e caem. Se todo um exército se acampar contra mim, não temerá meu coração. Se se travar contra mim uma batalha, mesmo assim terei confiança. Uma só coisa peço ao Senhor e a peço incessantemente: é habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida, para admirar aí a beleza do Senhor e contemplar o seu santuário. Assim, no dia mau ele me esconderá na sua tenda, irá ocultar-me no recôndito de seu tabernáculo, sobre um rochedo me erguerá. (Sl 26, 1-5).
  • Paulo, servo de Deus, apóstolo de Jesus Cristo para levar aos eleitos de Deus a fé e o profundo conhecimento da verdade que conduz à piedade, na esperan­ça da vida eterna prometida em tempos longínquos por Deus verdadeiro e fiel. (Tt 1, 1-2)
  • Manifestou-se, com efeito, a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Veio para nos ensinar a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver neste mundo com toda sobriedade, justiça e piedade, na expectativa da nossa esperança feliz, a aparição gloriosa de nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, que se entregou por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniqui­dade, nos purificar e nos constituir seu povo de predileção, zeloso na prática do bem. (Tt 2, 11-14)
  • Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Na sua grande misericórdia ele nos fez renascer pela Ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma viva esperança, para uma herança incorruptível, incontaminável e imarcescível, reservada para vós nos céus; para vós que sois guardados pelo poder de Deus, por causa da vossa fé, para a salvação que está pronta para se manifestar nos últimos tempos. (1Pe 1, 3-5)
  • A confiança que depositamos nele é esta: em tudo quanto lhe pedirmos, se for conforme à sua vontade, ele nos atenderá. E se sabemos que ele nos atende em tudo quanto lhe pedirmos, sabemos daí que já recebemos o que pedimos. (1Jo 5, 14-15)
  • Se é só para esta vida que temos colocado a nossa espe­rança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de lástima. Mas não! Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primícias dos que morreram! Com efeito, se por um homem veio a morte, por um homem vem a ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão. Cada qual, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; em seguida, os que forem de Cristo, na ocasião de sua vinda. (1Co 15, 19-23)
  • O Deus da esperança vos en­cha de toda a alegria e de toda a paz na vossa fé, para que pela virtude do Espírito Santo transbordeis de esperança! (Rm 15, 13)
  • Cristo em vós, esperança da glória! (Cl 1, 27b)
  • Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno. (Hb 4, 16)

-- autoria própria

22 de dez. de 2023

Sobre a benção de casais - Fiducia supplicans

Em 18 de Dezembro de 2023 Dicastério para a Doutrina da Fé publicou um document chamado Fiducia supplicans, que está disponível no site do Vaticano. Não há versão em português, então vou traduzir alguns trechos da versão em espanhol

9. Desde o ponto de visto estritamente litúrgico, uma benção requer que auqele que a recebe esteja em conformidade com a vontade de Deus manifestada nos ensinamentos da Igreja

10. As bençãos se celebram, de fato, em virtude da fé e objetivam o louvor a Deus e o proveito espiritual do povo. [...] Por isso, se convida a aqueles que pedem a benção de Deus através da Igreja a intensificar suas disposições internas na fé de que não há nada impossível e confiar na caridade que premia os que guardam os mandamentos de Deus.

11. Baseando-se nestas considerações, [...] a Congregação para Doutrina da Fé recorda que quando, com um rito litúrgico adequado, se invoca uma benção sobre alguma relação humana, aquilo que se bendiz deve corresponder as desígnios de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados por Cristo, Nosso Senhor. Por isso, dado que a Igreja sempre considerou moralmente lícitas apenas as relações sexuais que se vivem dentro do matrimônio, não tem poder de conferir sua benção litúrgica quando está, de alguma maneira, pode oferecer uma forma legítimidade moral a uma união que se presume ser um matrimônio ou uma prática sexual extramatrimonial. 

31. Assim, no horizonte delineado neste documento, se coloca uma possibilidade de bençãos de casais em situações irregulares e casais do mesmo sexo, cuja forma não deve encontrar nenhuma forma fixa por parte das autoridades eclesiásticas, para não produzir confusão com a benção própria do sacramento do matrimônio. [...] As bençãos devem expressar uma súplica a Deus para que se conceda aquelas ajudas que provêm do Espírito Santo [...] para que as relações humanas possam amadurecer e crescer em fidelidade na mensagem do Evangelho [...].

32. A graça de Deus, de fato, atua na vida daqueles que não se consideram justos, mas que se reconhecem humildemente pecadores como todos. [...] Por isso, com incansável sabedoria e maternidade, a Igreja acolhe a todos que se aproximam de Deus com coração humilde, aompanhando-os com auxílios espirituais que permitam a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus em sua existência. 

Comentário:

Agora é meu comentário particular, não partes de documentos da Igreja:: 

  • seria importante ter uma tradução oficial e completa do documento em português, espero que a CNBB esteja trabalhando neste sentido;
  • não podemos esquecer que todos somos pecadores e recebemos bençãos da Igreja para mudarmos nossas atitudes;
  • o documento começa reafirmando os ensinamentos da Igreja sobre a ilegitimidade de casamentos em segunda união e parcerias homossexuais, ou seja, a doutrina não mudou;
  • não haver uma fórmula para  a benção nestas situações permite aos padres adaptar a benção a cada caso particular mas, ao mesmo tempo, deixa a todos, padres, comunidades e Igreja, abertos a situações contrárias aos ensinamentos da Igreja;
  • considerando a alta probabilidade de confusões e mal-entendidos, não é de se estranhar que bispos tenham orientado os padres a não abençoar casais em situação irregular, prudência é uma virtude;
  • a benção deve ressaltar a importância de modificar o comportamento individual, saindo da atual situação de pecado;
  • como sempre, a imprensa não leu o documento completo, ou se leu, destacou apenas o que interessa a sua agenda.






1 de out. de 2022

É difícil ser cristão?

 

Está escrito: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28) cujo significado é explicado por São Hilário: “O Senhor chama para si todos aqueles que estão com dificuldades para cumprir a Lei e estão sobrecarregados pelos pecados do mundo”. E Logo a seguir, Jesus diz “meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11,30), portanto a Nova Lei é mais leve que a Velha Lei.

Há duas dificuldades que podem afetar as obras da virtude que são o objetivo da Lei. Uma é relativa às obras externas, que podem ser cansativas e percebidas como um peso por que a Velha Lei é muito abrangente, cheia de detalhes e pequenas cerimônias realizadas ao longo de todo dia, enquanto a Nova Lei aboliu muito daquelas práticas.

Outra dificuldade é relativa aos atos interiores, por exemplo, que as obras de caridade devem ser feitas com presteza e alegria. Esta dificuldade é resolvida pelo amor, por que um ato que é difícil realizar, torna-se fácil pelo amor. Até os filósofos afirmam que é fácil cumprir a Lei, mas fazê-lo alegremente, sem murmurar, é difícil se a pessoa não for justa. De acordo, lemos em (1Jo 5,3) “Eis o amor de Deus: que guardemos seus mandamentos. E seus mandamentos não são penosos”. Santo Agostinho completa: "os mandamentos não são pesados para o homem que ama, mas são um peso para os que não amam”.

Logo, as tribulações sofridas por aqueles que observam a Nova Lei são facilmente resolvidas se considerarmos o Amor que anima estes mesmos mandamentos, como explica Santo Agostinho: “o amor faz tudo mais leve e facilita tudo que parece difícil e além da nossa capacidade”.

-- São Tomás de Aquino

15 de set. de 2022

A Comunhão com a Santíssima Trindade

Refletir sobre a Eucaristia é como ver horizontes se abrindo na nossa frente, nossa visão alcançamos ainda mais longe do que podíamos ver antes. De fato, o horizonte cristológico da comunhão que contemplamos até agora pode ser expandido se considerarmos a Santíssima Trindade. Através da comunhão com Cristo entramos em comunhão com a Trindade. Eu sua oração sacerdotal, Jesus diz ao Pai: “para que sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim” (Jo 17, 22-23). Estas palavras, “eu neles e tu em mim” indicam que Jesus está em nós e que o Pai é Jesus. Logo, não é possível receber a comunhão sem receber ao Pai também. As palavras de Cristo: “Aquele que me vê, vê ao Pai” (Jo 14,9) também significa “aquele que me recebe, recebe ao Pai”.

Isto é verdadeiro se considerarmos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e inseparável natureza divina. Sobre isto escreveu Santo Hilário de Poitiers: “Estamos unidos a Cristo que é inseparável do Pai, mesmo permanecendo junto ao Pai, Cristo permanece unido a nós, logo nós também estamos em unidade com o Pai. De fato, Cristo tem a mesma natureza do Pai, de certo modo nós, também, através de Cristo, também temos a mesma natureza do Pai”.

Durante a Eucaristia o que ocorreu durante a vida terrena de Cristo é sacramentalmente replicado. No momento do nascimento, é o Espírito Santo que traz Cristo ao mundo (pois Maria concebeu através da ação do Espírito Santo), no momento da morte foi Cristo que deu ao mundo o Espírito Santo (ao enviá-lo no dia de Pentecostes). Da mesma maneira, no momento da consagração é o Espírito Santo que age e transforma o pão em Corpo de Cristo e, no momento da comunhão, é Cristo que nos dá o Espírito Santo.

Santo Irineu, doutor da Igreja, diz que o Espírito Santo é nossa comunhão com Cristo. Na comunhão Jesus vem até nós, nos concedendo o Espírito. Não como aquele que há muito tempo enviou o Espírito Santo, mas como um que naquele momento, a cada dia, está nos concedendo o Espírito, ao repetir seu sacrifício no altar, Ele novamente “emite seu Espírito” (cf. Jo 19,30). Tudo isso que expliquei é visualizado no ícone da Santíssima Trindade, que mostra os três anjos ao redor do altar. A Santíssima Trindade nos dá a Eucaristia e através dela recebemos a Santíssima Trindade. A Eucaristia não é apenas nossa Páscoa diária, é também nosso Pentecostes diário!

 -- Frei Raniero Cantalemessa, terceira catequese no Tempo de Quaresma, 25 de Março de 2022. 

20 de ago. de 2022

A Comunhão é a união mística entre Cristo e a Igreja



Na nossa catequese mistagógica sobre a Eucaristia, após a Liturgia da Palavra e a Consagração, alcançamos o terceiro momento, a comunhão.

Este é o momento da Missa que mais claramente expressa a unidade e igualdade de todos batizados, acima de qualquer distinção de ministério ou posição na Igreja. Até este momento a distinção de ministério está presente, na Liturgia da Palavra há uma diferença entre o que ensina e os ouvintes, na consagração há o padre consagrando e o povo participando, mas na Comunhão não há nenhuma diferença. A comunhão recebida por um simples batizado é a mesma recebida pelo padre ou bispo. A comunhão Eucarística é uma proclamação sacramental de que a koinonia* está em primeiro lugar na Igreja e é mais importante que a hierarquia.

Vamos refletir sobre a Comunhão Eucarística a partir de um texto de São Paulo (1Cor 10:16-17):

O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão.

A palavra “corpo” ocorre duas vezes, mas com significados diferentes. Na primeira vez, “o corpo de Cristo”, indica o corpo real de Cristo, nascido de Maria, morto e ressuscitado; na segunda vez, “formamos um só corpo”, indica o corpo místico da Igreja. Não é possível falar de forma mais clara e direta que a Eucaristia é sempre uma comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs, que há uma dimensão vertical e outra horizontal. Vamos falar, agora, da primeira:

Comunhão com Cristo

Que tipo de comunhão é criada entre nós e Cristo na Eucaristia? Em João 6,57  Jesus diz: “Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne viverá por mim.” A preposição “por” indica uma causa e um objetivo. Significa que aquele que recebe o corpo de Cristo vive dEle, isto é, por causa dEle, pela graça da vida que recebe dEle; também significa que vive para servir à sua glória e reino. Assim como Cristo vive em união com o Pai, pelo mistério da sagrada Eucaristia, seu corpo e sangue, vivemos por Jesus e para Jesus.

De fato, é um princípio fundamental da vida que os mais fortes se alimentam dos mais fracos, por exemplo uma planta assimila os minerais do solo, enquanto os animais se alimentam de vegetais, não ao contrário. Em todos os casos da natureza, aquele que come assimila os nutrientes dos mais fracos. No nível espiritual, também é o divino que assimila o humano, não ao contrário, mas, ao contrário da natureza, na Comunhão aquele que é comido que incorpora que o recebe. Para aqueles que se aproximam para recebê-lo, Jesus repete o que disse para São Agostinho: “Não és tu que me receberás, mas Eu que te receberei”.

Um filósofo ateísta diz: “O homem é aquilo que ele come” (F. Feuerbach), indicando que no homem não há qualquer diferença qualitativa entre matéria e espírito, que tudo se resume a compostos orgânicos e matéria. Um ateísta, mesmo sem saber, dá uma excelente formulação do mistério cristão: Graças a Eucaristia, o cristão é realmente aquilo que come! São Leão Magno escreveu a muitos séculos: “Nossa participação no corpo e sangue de Cristo nos transforma naquilo que recebemos”.

Na Eucaristia, portanto, não há somente uma comunhão entre Cristo e nós, mas também assimilação; comunhão não é apenas a união de dois corpos, duas mentes, duas vontades, também é o recebimento de um corpo, de uma mente e da vontade de Cristo: “quem se une ao Senhor torna-se com ele um só espírito.” (1 Cor 6,17).

Mas a nutrição, o comer e beber, não é a única analogia que podemos fazer sobre a Eucaristia, mesmo que seja indispensável. Há algo que ela não pode expressar pois é uma comunhão entre objetos materiais, não entre pessoas. Gostaria de insistir em outra analogia que pode nos ajudar a compreender a natureza da comunhão Eucarísitica como uma comunhão entre pessoas que procuram esta comunhão.

A Carta aos Efésios diz que o casamento é um símbolo da união entre Cristo e a Igreja: “Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne (Gn 2,24). Esse mistério é grande, quero dizer, com referên­cia a Cristo e à Igreja. Em resumo, o que importa é que cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido.” (Ef 5, 31-33). A Eucaristia, para usar uma imagem forte mas verdadeira, é a consumação do casamento entre Cristo e a Igreja. Uma vida cristã sem Eucaristia é como um casamento que não é consumado. No momento da Comunhão, o celebrante diz: “Benditos são aqueles chamados para Ceia do Senhor”,  no livro do Apocalipse, do qual esta expressão foi retirada, diz ainda mais explicitamente: “Ele me diz, então: ‘Escreve: Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro’. Disse-me ainda: ‘Estas são palavras autênticas de Deus.’“ (Ap 19, 9).

Como explica São Paulo, a consequência imediata do casamento é que o corpo, isto é, toda pessoa, do marido pertence à esposa e, vive versa, a esposa pertence ao marido (cf. 1Cor 7,4). Isto significa que a Palavra encarnada, incorruptível, que dá a vida, passa a ser “minha”, mas também que minha carne, minha humanidade, se transforma em Cristo. Na Eucaristia recebemos o corpo e sangue de Cristo, mas Cristo também recebe nosso corpo e sangue! Jesus, conforme escreveu Santo Hilário: “Quando Ele diz ‘Tomai e comei, este é o meu corpo’, nós o recebemos, mas também podemos dizer ‘tome, este é o meu corpo’”.

Tentemos agora entender as consequências de tudo isto. Na sua vida humana, Jesus não teve todas experiências humanas possíveis. Para começar, ele era homem, não mulher, ele não experimentou algumas coisas que metade da humanidade experimenta; ele não foi casado, então não teve a experiência de estar unido à outra pessoa, ter filhos, ou pior, perder um filho; ele morreu jovem, não experimentou a velhice, etc…

Mas agora, através da Eucaristia, Ele tem toda esta experiência. Ele vive a condição de uma mulher, de um doente, de um velho, um pobre imigrante, de uma pessoa sendo bombardeada, etc..

Não há nada em nossa vida que não seja familiar à Cristo. Ninguém deve dizer: “Jesus não sabe o que é ser casado, perder um filho, estar doente, velho ou ser negro!” O que Cristo não viveu enquanto estava neste mundo, Ele vive e experimenta através do Espírito, graças à comunhão espiritual da Sagrada Missa. Santa Isabel da Trindade compreendeu profundamente este mistério e escreveu para sua mãe: “A noiva pertence ao seu noivo. Meu noivo me recebeu, Ele me quer para acrescentar humanidade à Ele”.

Que coisa maravilhosa, que consolação é pensar que nossa humanidade passa a fazer parte da humanidade de Cristo! Mas também que responsabilidade! Se meus olhos se transforma nos olhos de Cristo, minha boca na de Cristo, esta é uma excelente razão para não deixar meus olhos se perderem em imagens lascivas, minha língua não falar contra o próximo, meu corpo não se transformar em instrumento de pecado. “Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo algum!” (1 Cor 6,15).

E ainda, isto não é tudo, a parte mais bela ainda está faltando. O corpo da esposa pertence ao noivo, mas também o corpo do noivo pertence à esposa. Na comunhão, aquele que está dando também está recebendo, recebendo nada mesmo que a santidade de Cristo! Onde este maravilhoso comércio que a liturgia nos fala ocorreria na vida dos fiéis se não fosse no momento da comunhão?

Ali temos a oportunidade de dar para Jesus nossas sujeiras, nossos pecados, e receber o manto da justiça (cf. Is 61,10). De fato, está escrito que “É por sua graça que estais em Jesus Cristo, que, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção” (1 Cor 1,30). Aquilo que se tornou para nós estava destinado para nós, é algo que nos pertence. “Ou não sabeis que o vosso corpo ..., já não vos pertenceis? Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.” (1 Cor 6,19-20). No sentido contrário, também aquilo que pertence a Deus pertence a nós, mas temos que lembrar que pertencemos a Cristo por direito, mas Ele pertence a nós por graça!

Esta é uma descoberta capaz de dar asas a nossas vidas espirituais. Este é um grande passo de fé e devemos rezar a Deus para não morrermos sem fazer esta caminhada.

-- Padre Raniero Cantalamessa, terceira catequese no Tempo de Quaresma, 25 de Março de 2022.

*koinonia é o compartilhamento, a comunhão dos bens espirituais da Igreja; também pode ser estendida aos bens materiais, o que é comum nas ordens religiosas.



11 de jul. de 2022

A vida humana é sagrada

 

* O Papa João Paulo II celebrou uma missa em Washington, capital dos EUA, em 07 de Outubro de 1979. Esta foi a homíla daquela missa. 

O domingo de hoje assinala o princípio do anual "Programa para o respeito da vida", graças ao qual a Igreja dos Estados Unidos pretende insistir na própria convicção da inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases. Renovemos, pois, todos juntos, o nosso respeito pelo valor da vida humana, lembrando-nos que, mediante Cristo, toda a vida humana foi remida.

Não hesito em proclamar, perante todos vós e perante todo o mundo, que cada vida humana — desde o momento da sua concepção e durante todas as fases que se seguem — é sagrada, porque a vida humana é criada à imagem e semelhança de Deus. Nada supera a grandeza nem a dignidade da pessoa humana. A vida humana não é apenas uma ideia ou uma abstracção; a vida humana é a realidade concreta de um ser que é capaz de amor e de serviço para com a humanidade.

Permiti-me que repita aquilo que disse durante a peregrinação à minha terra: "Se se inflige o direito do homem à vida no momento em que ele começa a ser concebido no seio materno, ataca-se indirectamente toda a ordem moral que serve para assegurar os bens invioláveis do homem. A vida ocupa entre eles o primeiro lugar. A Igreja defende o direito à vida, não só por respeito à majestade do Criador que é o primeiro dador desta vida, mas também por respeito ao bem essencial do homem" (João Paulo II, Homilia em Towy Targ; em L'Oss. Rom., ed. port., 15.7.79, p. 6).

A vida humana é preciosa porque é um dom de Deus cujo amor é infinito: e quando Deus dá a vida, dá-a para sempre. A vida é também preciosa porque é a expressão e o fruto do amor. É esta a razão pela qual a vida deve ter origem no contexto dó matrimónio e pela qual o matrimónio e o amor recíproco dos pais devem ser caracterizados pela generosidade em prodigar-se. O grande perigo para a vida da família numa sociedade cujos ídolos são o prazer, a comodidade e a independência, está no fato de os homens fecharem o coração e tornarem-se egoístas. O medo de um compromisso permanente pode transformar o amor mútuo entre marido e mulher em dois amores de si próprios — dois amores que existem um ao pé do outro, até acabarem por separar-se.

No sacramento do matrimônio o homem e a mulher — que pelo Batismo se tornaram membros de Cristo e têm o dever de manifestar na sua vida as atitudes de Cristo — recebem a certeza do auxílio de que têm necessidade para o próprio amor crescer numa união fiel e indissolúvel e para conseguirem responder generosamente ao dom da paternidade. Como declarou o Concílio Vaticano II: "Por meio deste Sacramento, o próprio Cristo torna-se presente na vida dos cônjuges e acompanha-os, a fim de que possam amar-se mutuamente e amar os seus filhós, precisamente como Cristo amou a sua Igreja e se deu a si mesmo por ela" (Cfr. Gaudium et Spes, 48; Ef 5, 25).

Para que o matrimônio cristão favoreça o bem total e o desenvolvimento do casal, deve ser inspirado pelo Evangelho, e assim abrir-se à nova vida — nova vida dada e aceita generosamente. Os cônjuges são também chamados a criar uma atmosfera familiar em que os filhos sejam felizes e vivam plena e dignamente uma vida humana e cristã.

Para ser possível viver-se uma vida familiar alegre, impõem-se sacrifícios quer da parte dos pais quer da parte dos filhos. Cada membro da família deve tornar-se, de modo especial, o servo dos outros compartilhando as cargas deles. É necessário cada um ter a solicitude não só da própria vida, mas também da vida dos outros membros da família: das suas carências, das suas esperanças e dos seus ideais. As decisões a propósito do número dos filhos e dos sacrifícios que daí derivam não devem ser tomadas só em vista de aumentar as próprias comodidades e manter uma existência tranquila. Refletindo neste ponto diante de Deus, ajudados pela graça que vem do Sacramento, e guiados pelos ensinamentos da Igreja, os pais recordarão a si próprios que é mal menor negar aos próprios filhos certas comodidades e vantagens materiais do que privá-los da presença de irmãos e irmãs que poderiam ajudá-los a desenvolver a sua humanidade e a realizar a beleza da vida em todas as suas fases e em toda a sua variedade.

Se os pais compreendessem plenamente as exigências e as oportunidades encerradas neste grande Sacramento, não deixariam de se unir a Maria no hino de louvor ao Autor da vida — a Deus —, que os escolheu como seus colaboradores.

Papa João Paulo II e o Presidente Jimmy Carter

Todos os seres humanos deveriam apreciar a individualidade de cada pessoa como criatura de Deus, chamada a ser irmão ou irmã de Cristo em razão da Encarnação e da Redenção Universal. Para nós a sacralidade da pessoa humana é fundada nestas premissas. E é nestas mesmas premissas que se funda a nossa celebração da vida — de toda a vida humana. Isto explica os nossos esforços para defender a vida humana de qualquer influência ou acção que a possa ameaçar ou debilitar, assim como os nossos esforços para tornar cada vida mais humana em todos os seus aspectos.

Por conseguinte, reagiremos todas as vezes que a vida humana for ameaçada. Quando o caráter sagrado da vida antes do nascimento for atacado, nós reagiremos para proclamar que ninguém tem o direito de destruir a vida antes do nascimento. Quando se falar de uma criança como de um peso ou se considera a mesma como meio para satisfazer uma necessidade emocional, nós interviremos para insistir em que todas as crianças são dom Único e irrepetível de Deus, que têm direito a uma família unida no amor. Quando a instituição do matrimônio for abandonada ao egoísmo humano e reduzida a um acordo temporâneo e condicional que se pode dissolver facilmente, nós reagiremos afirmando a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Quando o valor da família for ameaçado por pressões sociais e econômicas, nós reagiremos reafirmando que a família é necessária não só para o bem privado de cada pessoa, mas também para o bem comum de cada sociedade, nação e estado (João Paulo II, Audiência Geral, 3.1.79). Quando depois a liberdade for usada para sujeitar os fracos, esbanjar as riquezas naturais e a energia, e para negar aos homens as necessidades essenciais, nós reagiremos para reafirmar os princípios da justiça e do amor social. Quando os doentes, os anciãos ou os moribundos forem abandonados, nós reagiremos proclamando que eles são dignos de amor, de solicitude e de respeito.

Faço minhas as palavras que Paulo VI dirigiu o ano passado aos Bispos Americanos: "Estamos convencidos, além disso, que todos os esforços empreendidos para salvaguardar os direitos humanos beneficiam actualmente a vida em si mesma. Tudo o que se dirige — no direito ou nos fatos — a banir a discriminação baseada na 'raça, origem, cor, cultura, sexo ou religião' (cfr. Octogesima Adveniens, 16), é serviço prestado à vida. Quando os direitos das minorias, são protegidos, quando os diminuídos mental ou fisicamente são assistidos, quando é concedida voz aos marginalizados da sociedade, em todos estes casos, são favorecidas a dignidade da vida humana, a plenitude da vida humana e a santidade da vida humana... Em especial, cada contribuição para melhorar o clima moral da sociedade e enfrentar a permissividade e o hedonismo, e ainda toda a assistência à família, que é a fonte da nova vida, tudo isso é favorecer os valores da vida" (Paulo VI, Discurso aos Bispos Americanos, em L'Oss. Rom., ed. port. 4.6.1978. p. 4).

Muito está ainda por fazer a fim de se conseguir ajudar aqueles cuja vida é ameaçada e reavivar a esperança daqueles que têm medo da vida. Requer-se coragem para resistir às pressões e aos falsos "slogans", para proclamar a dignidade suprema de cada vida, e exigir que a própria sociedade a proteja. Desejo pois dirigir uma palavra de louvor a todos os membros da Igreja Católica e das outras Igrejas cristãs, a todos os homens e mulheres da herança judeo-cristã, assim como a todos os homens de boa vontade, a fim de se unirem num esforço comum para a defesa da vida na sua plenitude e para a promoção de todos os direitos humanos:

A nossa celebração da vida faz parte da nossa celebração da Eucaristia. Nosso Senhor e Salvador, mediante a Sua morte e Ressurreição, tornou-se para nós "o pão da vida" e o penhor da vida eterna. N'Ele encontramos a coragem, a perseverança e a inventiva de que temos necessidade para promover e defender a vida nas nossas famílias e no mundo inteiro.

Queridos irmãos e irmãs: temos confiança em que Maria, Mãe de Deus e Mãe da Vida, nos dará a sua ajuda para que o nosso modo de viver reflita sempre a nossa admiração e reconhecimento pelo dom do amor de Deus que é a vida. Sabemos que Ela nos ajudará a usar todos os dias que nos são dados como oportunidade para defender a vida antes do nascimento e para tornar mais humana a vida dos nossos irmãos, onde quer que eles se encontrem.

A intercessão de Nossa Senhora do Rosário, cuja festa celebramos hoje, nos conceda podermos todos chegar um dia à plenitude da vida em Cristo Jesus nosso Senhor. Ámen.

-- Santo Papa João Paulo II, homília de 7 de Outubro de 1979.

27 de jun. de 2022

É ele o Senhor, nosso Deus; nós, povo de suas pastagens


 As palavras que cantamos contêm nossa declaração: somos ovelhas de Deus, porque ele é o Senhor nosso Deus, que nos fez. Ele é o nosso Deus, nós somos o povo de suas pastagens e as ovelhas de suas mãos. Não foram os pastores que fizeram suas ovelhas, não foram eles que criaram os animais que levam a pastar. Mas o Senhor, nosso Deus, por ser Deus e criador, foi ele mesmo que fez para si as ovelhas que possui e que apascenta. Não foi um a criar aquelas que ele apascenta, nem outro a apascentar as que criou!

            Declaramos, pois, neste cântico, que somos as suas ovelhas, o povo de suas pastagens, as ovelhas de suas mãos. Ouçamos agora o que nos diz, a nós, a suas ovelhas. Primeiro, ele falava aos pastores; agora, porém, fala às ovelhas. Postos entre os pastores, nós ouvíamos as suas palavras com tremor, e vós, com segurança. Que acontece nestas palavras de hoje? Será que por alternância, nós com segurança, vós, com tremor? Absolutamente não. Primeiro porque, se somos pastores, o pastor ouve com tremor não apenas o que é dito aos pastores, mas também o que se diz às ovelhas. Se ouve tranquilo o que se diz às ovelhas, pouco se importa com elas. Em seguida, e já o dissemos à vossa caridade, há duas coisas a considerar em nós: uma, que somos cristãos; outra que somos prelados. Por sermos prelados, somos contados entre os pastores, se formos bons. Por sermos cristãos, convosco também somos ovelhas. Portanto, quer fale o Senhor aos pastores, quer fale às ovelhas, temos de ouvir tudo com tremor, sem que diminua a solicitude de nosso coração.

            Ouçamos então, irmãos, a razão pela qual o Senhor castiga as ovelhas más e o que promete às suas. E vós, assim diz, sois minhas ovelhas. Antes do mais, que felicidade ser do rebanho de Deus, tão grande que se alguém nela pensar, irmãos, até mesmo nas lágrimas e nas tribulações de agora, lhe vem imensa alegria. De quem foi dito: Que apascentas Israel, é aquele mesmo de quem se diz: Não cochilará nem há de dormir quem guarda Israel. Por conseguinte, ele vigia sobre nós acordados, vigia sobre nós adormecidos. Se, pois, o rebanho de um homem se sente seguro pelo pastor homem, que segurança não deve ser a nossa por ser Deus mesmo que nos apascenta, e não apenas porque nos alimenta, mas também porque nos fez?

            Vós, ovelhas minhas, assim diz o Senhor Deus: eis que distingo entre ovelha e ovelha, entre bodes e cabritos. Que fazem aqui no rebanho de Deus os cabritos? Nas mesmas pastagens, nas mesmas fontes e, no entanto, cabritos destinados à esquerda se misturam aos da direita. São tolerados antes de ser separados. Provam a paciência das ovelhas à semelhança da paciência de Deus. Ele fará, sim, a separação, uns à esquerda, outros à direita.

-- Santo Agostinho, bispo (século V)

18 de jun. de 2022

Tomai e comei, este é o meu corpo. Tomai e bebei, este é o meu sangue


Agora podemos identificar algumas consequências práticas da doutrina sobre a Eucaristia em nossas vidas diárias. Se na consagração nós [padres] dizemos "Tomai e comei, este é o meu corpo. Tomai e bebei, este é o meu sangue", devemos entender o que as palavras "corpo" e "sangue" significam., isto é, o que estamos ofertando.

Na Bíblia corpo não indica apenas uma parte ou o objeto físico que combinado com a alma e o espírito formam um ser humano completo. Na linguagem bíblica utilizada por Jesus e Paulo, corpo indica também como a pessoa vive, toda condição corporal e mortal da pessoa. Corpo, portanto, significa a vida completa de uma pessoa, seus atos, pensamentos e emoções. Ao instituir a Eucaristia, Jesus nos deixou a sua vida como um dom, do primeiro instante da incarnação até o último momento, com tudo que concretamente se realizou na sua vida: os momentos de silêncio, orações, trabalho, dificuldades, humilhações, etc...

Jesus também disse "Este é o meu sangue", mas por que ele acrescenta a palavra "sangue" se ele já havia dado seu corpo e o sangue é parte do corpo? Ele está acrescentando sua morte! Após nos dar sua vida, Ele também nos deixa a parte mais preciosa da sua vida, sua morte. De fato, o termo sangue não indica apenas uma parte do corpo de uma pessoa, também indica um evento: a morte. Se o sangue é onde reside a vida, como era entendido naquela época, derramar seu sangue é dar sua vida. A Eucaristia é o mistério do corpo e sangue de Jesus, isto é, de sua vida e morte!

Agora pergunto, pensando em nós, ao ofertarmos nosso corpo e nosso sangue junto com o de Jesus na Missa, o que estamos realmente ofertando? Também somos chamados a ofertar o Jesus ofereceu: nossa vida e nossa morte. Com a palavra corpo, estamos dando tudo que constitui nossa vida neste mundo: tempo, saúde, energia, habilidades, afetos, até pequenos gestos como um sorriso. Com a palavra sangue, estamos nos referindo a nossa morte, não necessariamente a morte definitiva, um martírio por Jesus e nossos irmãos. Tudo em nós prepara e antecipa a morte: humiliações, falhas, doenças, limitações da idade, tudo que nos mortifica.

Tudo isto requer que após sairmos da Missa, façamos o nosso mlhor para realizar o que acabamos de dizer, que realmente tentemos, com todas nossas limitações, oferecer aos nossos irmãos e irmãs, nosso corpo, isto é, nosso tempo, energia e atenção, nossa vida. É necessário que após termos dito "tomai e comei", nos deixemos realmente ser consumidos, inclusive por aqueles que não o fazem com todo amor, respeito e delicadeza que desejamos. Santo Inácio de Antioquia, quando estava indo para Roma, onde seria morto, escreveu: "Eu sou trigo de Cristo, que eu seja devorado pelos dentes afiados das feras para me tornar o puro pão do Senhor". Cada um de nós, se olharmos atentamente, possuimos estes dentes afiados das feras, e atacamos com críticas, discussões, brigas abertas ou escondidas, diferentes visões e caráter.

Vamos imaginar o que aconteceria se celebrarmos a Missa com esta participações especial, se todos disséssemos, no momento da consagração, alguns em voz alta, outros em silêncio, "tomai e comei". Um padre e, ainda mais, um bispo, celebra a Missa desta maneira e depois vai pelo resto do dia: ele reza, prega, confessa, recebe pessoas, visita doentes, escuta, ensina, etc.... o dia deve também ser uma Eucaristia. Um grande pregador francês, Pierre Olivaint (1816-1871), costumava dizer: "Na manhã, quando celebro a Missa, eu sou o sacerdote e Jesus a vítima; ao longo do dia, Jesus é o sacerdote e eu sou a vítima". É assim que um padre imita o Bom Pastor, quando ele dá a vida às suas ovelhas.

Nossa participação na Eucaristia

Gostaria de concluir, usando um exemplo bastante humano, o que ocorre na celebração eucarística. Imaginem uma grande família, onde haja um filho, o mais velho, que admira e ama seu pai. Para seu aniversário, ele gostaria dar um presente precioso, mas antes de dar o presente, ele pede a todos seus irmãos e irmãs que também assinem o cartão. O pai recebe o presente como uma prova de amor de todos seus filhos e filhas, sem distinção, quando, na realidade, foi apenas o mais velho que pagou pelo presente. 

Isto é o que acontece no sacrifício eucarístico, Jesus admira e ama o Senhor infinitamente. Ele deseja dar todos os dias, até o final dos tempos, o mais precioso presente que alguém pode imaginar, sua própria vida. Na Missa, Ele convida seus irmãos e irmãs a colocar sua assiantura no presente, para que chegue até o Pai como um presente de todos seus filhos, mesmo que apenas um tenha se sacrificado por ele. E que sacrifício foi o de Jesus!

Nossa participação, nossa assinatura, são as pequenas gotas de água que são acrecentadas ao cálice de vinho. Elas não são nada mais do que água, mas misturadas ao vinho do cálice, tornam-se uma coisa só. A nossa assinatura é o Amém solene que a assembléia pronuncia ou canta, ao final da doxologia "Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória agora e para sempre" respondemos "AMÉM!".

Sabemos que quem assina um contrato deve honrar sua assinatura. Isto significa que ao deixarmos a Missa, devemos fazer da nossa vida um dom de amor ao Pai eplo bem de nossos irmãos e irmãs. Nós, eu repito, não somos apenas chamados a celebrar a Eucaristia, mas fazermos eucaristia. Que Deus possa nos ajudar!

-- Padre Raniero Cantalamessa, segunda catequese no Tempo de Quaresma, 18 de Março de 2022.

--  Esta é a terceira parte de uma catequese sobre Eucaristia. Na primeira parte, Padre Raniero falou da Eucaristia na tradição judaica e como Jesus transformou sua natureza ai dizer: “Este é o meu corpo que eu dou para vós.” e "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós". Na segunda parte, falou do papel dos padres na Eucaristia.


6 de jun. de 2022

Maria, Mãe da Igreja

 

Considerando as estreitas relações de Maria com a Igreja, para a glória da Santa Virgem e para nosso conforto, proclamamos Maria Santíssima Mãe da Igreja, isto é, de todo o povo de Deus, tanto dos fiéis como dos Pastores, que lhe chamam Mãe amorosíssima; e queremos que, com este título suavíssimo, a Mãe de Deus seja doravante ainda mais honrada e invocada por todo o povo cristão.

Trata-se de um título que não é novo para a piedade dos cristãos; pois é justamente com este nome de Mãe, de preferência a qualquer outro, que os fiéis e a Igreja toda costumam dirigir-se a Maria. Na verdade, ele pertence à genuína substância da devoção a Maria, achando sua justificação na própria dignidade da Mãe do Verbo Encarnado.

Efetivamente, assim como a Maternidade divina é o fundamento da especial relação de Maria com Cristo e da sua presença na economia da salvação operada por Cristo Jesus, assim também essa Maternidade constitui o fundamento principal das relações de Maria com a Igreja, sendo ela a Mãe daquele que, desde o primeiro instante da sua Encarnação, no seu seio virginal, uniu a si, como Cabeça, o seu Corpo Místico, que é a Igreja. Maria, pois, como Mãe de Cristo, também é Mãe dos fiéis e de todos os Pastores, isto é, da Igreja.

Portanto, é com ânimo cheio de confiança e de amor filial que elevamos o olhar para ela, não obstante a nossa indignidade e fraqueza. Ela, que em Jesus nos deu a fonte da graça, não deixará de socorrer a Igreja com seu auxílio materno, sobretudo neste tempo em que a Esposa de Cristo se empenha, com novo alento, na sua missão salvadora.

A nossa confiança é ainda mais reavivada e corroborada quando consideramos os laços estreitíssimos que prendem esta nossa Mãe celeste ao gênero humano. Embora na riqueza das admiráveis prerrogativas com que Deus a adornou para fazê-la digna Mãe do Verbo Encarnado, ela está, todavia, pertíssimo de nós. Filha de Adão, como nós, e por isto nossa irmã por laços de natureza, ela é, entretanto, a criatura preservada do pecado original em vista dos méritos de Cristo, e que, aos privilégios obtidos junta a virtude pessoal de uma fé total e exemplar, merecendo o elogio evangélico de: Bem-aventurada és tu, porque acreditaste (Lc 1,45).

Na sua vida terrena, ela realizou a perfeita figura do discípulo de Cristo, espelho de todas as virtudes, e encarnou as bem-aventuranças evangélicas proclamadas por Cristo Jesus. Por isso, toda a Igreja, na sua incomparável variedade de vida e de obras, encontra nela a forma mais autêntica de perfeita imitação de Cristo.

--  Do Discurso de São Paulo VI, papa, no encerramento da terceira sessão do Concílio Vaticano II (21 de novembro de 1964)

4 de jun. de 2022

Quem está comigo, está junto do fogo



 
Prezados irmãos e irmãs!

Na solene celebração do Pentecostes, somos enviados a professar a nossa fé na presença e na ação do Espírito Santo e a invocar a sua efusão sobre nós, sobre a Igreja e sobre o mundo inteiro. Portanto, façamos nossa, e com intensidade particular, a invocação da própria Igreja:  Veni, Sancte Spiritus! Uma invocação tão simples e imediata, mas ao mesmo tempo extraordinariamente profunda, que brota em primeiro lugar do Coração de Cristo. Com efeito, o Espírito é o dom que Jesus pediu e pede continuamente ao Pai pelos seus amigos; o primeiro e principal dom que nos obteve com a sua Ressurreição e Ascensão ao Céu.

Desta oração de Cristo fala-nos o trecho evangélico, que tem como contexto a Última Ceia. O Senhor Jesus disse aos seus discípulos:  "Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos. E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre" (Jo 14, 15-16). Aqui revela-se-nos o Coração orante de Jesus, o seu Coração filial e fraterno. Esta oração alcança o seu ápice e o seu cumprimento na cruz, onde a invocação de Cristo se identifica com o dom total que Ele faz de si mesmo, e deste modo o seu rezar torna-se por assim dizer o próprio selo do seu doar-se em plenitude por amor ao Pai e à humanidade:  invocação e doação do Espírito Santo encontram-se, compenetram-se e tornam-se uma única realidade. "E Eu suplicarei ao Pai e Ele dar-vos-á outro Consolador, a fim de permanecer convosco para sempre". Na realidade, a oração de Jesus – a da Última Ceia e a da cruz – é uma oração que permanece também no Céu, onde Cristo está sentado à direita do Pai. Com efeito, Jesus vive sempre o seu sacerdócio de intercessão a favor do povo de Deus e da humanidade, e portanto reza por todos pedindo ao Pai o dom do Espírito Santo.

A narração do Pentecostes no livro dos Atos dos Apóstolos – ouvimo-lo na primeira leitura – (cf. At 2, 1-11) apresenta o "novo curso" da obra de Deus, baseado na ressurreição de Cristo, obra que envolve o homem, a história e o cosmos. Do Filho de Deus morto e ressuscitado, que voltou para o Pai, emana agora sobre a humanidade com energia inédita o sopro divino, o Espírito Santo. E o que produz esta nova e poderosa autocomunicação de Deus? Onde existem lacerações e estraneidades, ela cria unidade e compreensão. Tem início um processo de reunificação entre as partes da família humana, divididas e dispersas; as pessoas, muitas vezes reduzidas a indivíduos em competição ou em conflito entre si, alcançadas pelo Espírito de Cristo, abrem-se à experiência da comunhão, que pode empenhá-las a ponto de fazer delas um novo organismo, um novo sujeito:  a Igreja. Este é o efeito da obra de Deus:  a unidade; por isso, a unidade é o sinal de reconhecimento, o "cartão de visita" da Igreja no curso da sua história universal. Desde o início, do dia do Pentecostes, ela fala todas as línguas. A Igreja universal precede as Igrejas particulares, as quais devem conformar-se sempre com ela, segundo um critério de unidade e universalidade. A Igreja nunca permanece prisioneira de confins políticos, raciais ou culturais; não se pode confundir com os Estados e nem sequer com as Federações de Estados, porque a sua unidade é de outro tipo e aspira a atravessar todas as fronteiras humanas.

Amados irmãos, disto deriva um critério prático de discernimento para a vida cristã:  quando uma pessoa, ou uma comunidade, se fecha no seu próprio modo de pensar e de agir, é sinal que se afastou do Espírito Santo. O caminho dos cristãos e das Igrejas particulares deve confrontar-se sempre com o da Igreja, una e católica, e harmonizar-se com ele. Isto não significa que a unidade criada pelo Espírito Santo é uma espécie de igualitarismo. Pelo contrário, ela é sobretudo o modelo de Babel, ou seja, a imposição de uma cultura da unidade que poderíamos definir "técnica". Com efeito, a Bíblia diz-nos (cf. Gn 11, 1-9) que em Babel todos falavam uma só língua. Pelo contrário, no Pentecostes os Apóstolos falam línguas diferentes, de modo que cada um compreenda a mensagem no seu próprio idioma. A unidade do Espírito manifesta-se na pluralidade da compreensão. A Igreja é por sua natureza una e múltipla, destinada como está a viver em todas as nações, em todos os povos e nos mais diversificados contextos sociais. Ela responde à sua vocação, de ser sinal e instrumento de unidade de todo o gênero humano (cf. Lumen gentium, 1), apenas se permanece autônoma de qualquer Estado e de toda a cultura particular. Sempre e em cada lugar, a Igreja deve ser verdadeiramente católica e universal, a casa de todos, onde cada um se pode encontrar.

A narração dos Atos dos Apóstolos oferece-nos também outra sugestão muito concreta. A universalidade da Igreja é expressa pelo elenco dos povos, segundo a antiga tradição:  "Somos Partas, Médios, Elamitas...", etc. Pode-se observar aqui que São Lucas vai além do número 12, que já expressa sempre uma universalidade. Ele olha além dos horizontes da Ásia e do noroeste da África, e acrescenta outros três elementos:  os "Romanos", ou seja, o mundo ocidental; os "judeus e prosélitos", incluindo de modo novo a unidade entre Israel e o mundo; e enfim "Cretenses e Árabes", que representam Ocidente e Oriente, ilhas e terra firme. Esta abertura de horizontes confirma ulteriormente a novidade de Cristo na dimensão do espaço humano, da história das gentes:  o Espírito Santo envolve homens e povos e, através deles, supera muros e barreiras.

No Pentecostes, o Espírito Santo manifesta-se como fogo. A sua chama desceu sobre os discípulos reunidos, acendeu-se neles e infundiu-lhes o novo ardor de Deus. Realiza-se assim aquilo que o Senhor Jesus tinha predito:  "Vim lançar fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já tivesse sido ateado!" (Lc 12, 49). Juntamente com os fiéis das diversas comunidades, os Apóstolos levaram esta chama divina até aos extremos confins da Terra; abriram assim um caminho para a humanidade, uma senda luminosa, e colaboraram com Deus que com o seu fogo quer renovar a face da terra. Como é diferente este fogo, daquele das guerras e das bombas! Como é diverso o incêndio de Cristo, propagado pela Igreja, em relação aos que são acendidos pelos ditadores de todas as épocas, também do século passado, que atrás de si deixam terra queimada. O fogo de Deus, o fogo do Espírito Santo, é aquele da sarça que ardia sem se consumir (cf. Êx 3, 2). É uma chama que arde, mas não destrói; aliás, ardendo faz emergir a parte melhor e mais verdadeira do homem, como numa fusão faz sobressair a sua forma interior, a sua vocação à verdade e ao amor.


Um Padre da Igreja, Orígenes, numa das suas Homilias sobre Jeremias, cita um dito atribuído a Jesus, não contido nas Sagradas Escrituras mas talvez autêntico, que reza assim:  "Quem está comigo está junto do fogo" (Homilia sobre Jeremias l. I [III]). Com efeito, em Cristo habita a plenitude de Deus, que na Bíblia é comparado com o fogo. Há pouco pudemos observar que a chama do Espírito Santo arde mas não queima. E todavia, ela realiza uma transformação, e por isso deve consumir algo no homem, as escórias que o corrompem e o impedem nas suas relações com Deus e com o próximo. Porém, este efeito do fogo divino assusta-nos, temos medo de nos "queimar", preferiríamos permanecer assim como somos. Isto depende do facto que muitas vezes a nossa vida é delineada segundo a lógica do ter, do possuir, e não do doar-se. Muitas pessoas crêem em Deus e admiram a figura de Jesus Cristo, mas quando se lhes pede que abandonem algo de si mesmas, então elas recuam, têm medo das exigências da fé. Existe o temor de ter que renunciar a algo de bonito, ao que estamos apegados; o temor de que seguir Cristo nos prive da liberdade, de certas experiências, de uma parte de nós mesmos. Por um lado, queremos permanecer com Jesus, segui-lo de perto, e por outro temos medo das consequências que isto comporta.

Caros irmãos e irmãs, temos sempre necessidade de ouvir o Senhor Jesus dizer-nos aquilo que Ele repetia aos seus amigos:  "Não tenhais medo!". Como Simão Pedro e os outros, temos que deixar que a sua presença e a sua graça transformem o nosso coração, sempre sujeito às debilidades humanas. Temos que saber reconhecer que perder algo, aliás, perder-se a si mesmo pelo Deus verdadeiro, o Deus do amor e da vida, é na realidade ganhar, encontrar-se mais plenamente a si próprio. Quem se confia a Jesus experimenta já nesta vida a paz e a alegria do coração, que o mundo não pode dar, e nem sequer pode tirar, uma vez que foi Deus quem no-las concedeu. Portanto, vale a pena deixar-se tocar pelo fogo do Espírito Santo! A dor que nos causa é necessária para a nossa transformação. É a realidade da cruz:  não é por acaso que, na linguagem de Jesus, o "fogo" é sobretudo uma representação do mistério da cruz, sem o qual o cristianismo não existe. Por isso, iluminados e confortados por estas palavras de vida, elevemos a nossa invocação:  Vinde, Espírito Santo! Ateai em nós o fogo do vosso amor! Sabemos que esta é uma oração audaz, com a qual pedimos para ser tocados pela chama de Deus; mas sabemos sobretudo que esta chama – e só ela – tem o poder de nos salvar. Para defender a nossa vida, não queremos perder a vida eterna que Deus nos quer conceder. Temos necessidade do fogo do Espírito Santo, porque só o Amor redime. Amém! 

-- Papa Bento XVI, Homília na Festa de Pentecostes, 2010.

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