30 de out. de 2010

Por que rezar?

A necessidade de oração é repetida tão insistentemente nas Sagradas Escrituras que nada mais é mais claramente pedido que este dever. Embora o Todo Poderoso conheça nossas necessidades, como Nosso Senhor nos fala no Evangelho segundo São Mateus, Ele deseja que peçamos, e pela oração recebamos como que por mãos espirituais. Escuta Nosso Senhor em São Lucas: é necessário orar sempre sem jamais deixar de fazê-lo (Lc 18,1b) e vigiai, pois, em todo o tempo e orai (Lc 21,36). Escuta o apóstolo: orai sem cessar (1Ts 5,17) e o livro do Eclesiastico: nada te impeça de orar sempre (Eclo 18,22).

Estes preceitos não significam que não devemos fazer outra coisa, mas somente que nunca devemos nos esquecer de tão essencial exercício e fazer uso frequente dele. Isto Nosso Senhor e seus apóstolos nos ensinaram, pois mesmo nunca tendo deixado de rezar, não negligenciaram a pregação ao povo, confirmando suas palavras com sinais e milagres. E deve-se dizer que eles sempre rezavam e com muita frequencia. Neste sentido devem ser compreendidas estas palavras: meus olhos estão sempre fixos no Senhor (Sl 24,15) e também: bendirei continuamente ao Senhor, seu louvor não deixará meus lábios (Sl 33,2) e as palavras sobre os apóstolos: permaneciam no templo, louvando e bendizendo a Deus (Lc 24, 53).

Os frutos da oração são três vantagens: mérito, perdão e graças. Quanto ao mérito da oração, temos o testemunho de Cristo no evangelho: Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á (Mt 6,5-6). Por estas palavras, o Senhor proibe a prece em local público como vanglória, para ser visto pelos outros. Caso contrário, podemos rezar no templo e encontrar uma "quarto" em nosso coração e, então, rezar para Deus "em segredo". As palavras "recompensar-te-á" significam o mérito, pois como Ele disse sobre os fariseus, já receberam sua recompensa, ou seja, reconhecimento humano. Aquele que orar no silêncio de seu coração, que olhar somente para o Senhor, devemos entender que serão recompensadas pelo Pai que vêm em segredo.
Quanto ao perdão pelos pecados cometidos, conhecemos a prática da Igreja, que quando o perdão é desejado, a oração deve-se unir ao jejum e esmolas; embora muitas vezes jejum e esmolas sejam esquecidos, a oração é essencial.

Enfim, pela oração podemos receber muitas graças, como nos ensina São João Crisóstomo em seus escritos sobre a oração, nos quais ele emprega uma comparação com as mãos humanas. Embora o homem nasça nu e necessitado de todas as coisas, não pode queixar-se do Criador, por que recebeu suas mãos, o orgão acima de todos orgãos, através do qual podemos obter alimento, casa e tudo mais. Do mesmo modo, o homem espiritual não pode fazer nada sem a assistência divina; ele possui o poder da oração, o orgão espiritual mais importante, através do qual Deus pode facilmente prover todas as nossas necessidades.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)
 -- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português. O texto em inglês está disponível aqui.

29 de out. de 2010

Há Justiça em Deus?

Parece que em Deus não há justiça.

1. — Pois, a justiça se divide por oposição à temperança. Ora, em Deus não há temperança (pois Deus não tem limites). Logo, nem justiça.

2. Demais. — Quem faz tudo ao bel prazer da sua vontade não obra segundo a justiça. Ora, como diz o Apóstolo:  “Deus realiza todas as coisas segundo o conselho da sua vontade” (Ef 1, 11). Logo, não se lhe deve atribuir justiça.

3. Demais. — É ato de justiça restituir o devido. Ora, Deus a ninguém é devedor. Logo, não lhe cabe a justiça.

4. Demais. — Tudo o que há em Deus é a sua essência. Ora, isto não convém à justiça, pois, conforme Boécio, o bem respeita à essência, mas a justiça, ao ato. Logo, a Deus não convém à justiça.

Mas, em contrário, diz a Escritura: O Senhor é justo e ele amou a justiça (Sl 10, 8).

Representação tradicional da Justiça.


SOLUÇÃO. — Há duas espécies de justiça. Uma consiste no mútuo dar e receber; p. ex., a que consiste na compra e venda ou trocas semelhantes. Esta é chamada pelo Filósofo justiça comutativa ou reguladora das trocas; e essa não convém a Deus, segundo o Apóstolo: Quem lhe deve alguma coisa primeiro para esta lhe haver de ser recompensada?(Rm 11, 35) Outra forma de justiça consiste na distribuição e se chama justiça distributiva, pela qual um governador ou administrador dá segundo a dignidade de cada um. Ora, assim como a ordem devida, na família ou em qualquer multidão governada, demonstra a justiça do governador, assim também a ordem do universo manifesta, tanto nos seres naturais, como nos homens, a justiça de Deus. Por isso diz Dionísio: Devemos ver a verdadeira justiça de Deus no distribuir ele a todos os seres segundo o que convém à dignidade de cada um, e no conservar na natureza a sua ordem própria e virtude.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Das virtudes morais, umas concernem às paixões; assim, a temperança impede a concupiscência; a fortaleza, ao temor e à audácia; a mansidão, à ira. Tais virtudes só se podem atribuir a Deus metaforicamente, porque nele nem há paixões nem apetites, como seria necessário para haver tais virtudes. Porém, outras virtudes morais concernem aos atos; assim, quanto ao dar e ao receber, a justiça, a liberalidade e a magnificência. E tais virtudes não existem no corpo, mas na inteligência; por isso, nada impede sejam atribuídas a Deus. Não, contudo, no concernente às ações civis, mas as convenientes a Deus. Pois, seria ridículo louvar a Deus pelas suas virtudes políticas, como diz o Filósofo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Sendo o bem objeto da vontade, Deus só pode querer aquilo que está na razão da sua sabedoria; e esta é como a lei da justiça, pela qual a sua vontade é reta e justa. Por onde, o que faz por sua vontade justamente o faz; assim como nós fazemos justamente o que fazemos de acordo com a lei; nós, porém, pela lei de um superior, ao passo que Deus, pela sua própria lei.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A cada um é devido o que lhe pertence. Ora, dizemos que uma coisa pertence a alguém quando se lhe ordena. Assim, o servo pertence ao senhor e não, inversamente. Por onde, a palavra devido implica uma certa ordem de exigência ou necessidade de um ser em relação a outro. Ora, há uma dupla ordem a se considerar nas coisas. Uma, pela qual uma pessoa se ordena para outra; assim, as partes, ao todo, e cada coisa, ao seu objetivo. Outra, pela qual todas as criaturas se ordenam para Deus. Por onde, o devido também pode ser considerado à dupla luz, quanto à obra divina. Ou enquanto algo é devido a Deus, ou, a uma criatura. E de um e outro modo, Deus paga o devido. Pois, é devido a Deus o cumprirem os seres aquilo que a sua sabedoria e vontade estabeleceram e que manifesta a sua bondade. E deste modo a justiça de Deus concerne à sua dignidade, atribuindo-se a si o que lhe é devido.

Por outro lado, é devido a uma pessoa ter aquilo que se lhe ordena, como ao homem ter mãos e lhe servirem os outros animais. E assim, também Deus faz justiça, dando-lhe o devido, segundo a exigência da natureza e à condição de cada um. Mas este débito depende do primeiro, porque a cada pessoa é devido o que se lhe ordena pela ordem da divina sabedoria. E, embora Deus dê, deste modo, o devido a cada uma, contudo, não é devedor, pois Deus não se ordena para satisfazer os outros seres, mas estes, para ele. Por isso, dizemos que a justiça é, umas vezes, em Deus, conveniência com a sua bondade, e outras, retribuição dos méritos. E a um e outro modo alude Anselmo dizendo: És justo punindo os maus, por isso lhes convir aos méritos; mas também o és justo perdoando-lhes, por convir isso à tua bondade.
RESPOSTA À QUARTA. — Por dizer respeito ao ato, não resulta que a justiça deixe de ser a essência de Deus, pois, também aquilo que é da essência de um ente pode ser princípio de ação. Mas, o bem nem sempre concerne ao ato, pois, dizemos que um ser é bom, não somente pela ação, mas também pela perfeição essencial. Por isso, no mesmo lugar, se diz que o bem está para o justo, como o geral, para o especial.

-- Do Livro Suma Teológica, 1a parte, Do Tratado do Deus Uno, Questão 21, Artigo 1, de São Tomas de Aquino (século XIII)

27 de out. de 2010

Sigamos o caminho da verdade

Revistamo-nos de concórdia; e humildes e moderados, rejeitemos para longe toda murmuração e maledicência, justificando-nos não por palavras, mas por obras. Pois se disse: Quem fala muito, ouvirá por sua vez; ou acaso se julga justo o homem falador? (Jó 11.,2)

Cumpre-nos, portanto, estar prontos a fazer o bem; de Deus tudo nos procede. Pois ele nos predisse: Eis o Senhor, e sua recompensa está diante dele para dar a cada um segundo suas obras (Ap 22,12), Por isso exorta-nos a nós que nele cremos de todo o coração, a não sermos preguiçosos e indolentes em toda a obra boa. Nele nos gloriemos, nele confiemos. Submetamo-nos à sua vontade e, atentos, observemos a multidão dos anjos, como a seu redor cumprem sua vontade. A Escritura conta: Miríades de miríades assistiam-no e milhares e milhares o serviam e clamavam: Santo, santo, santo, Senhor dos exércitos; toda a criação está cheia de sua glória (Dn 7,10; Is 6,3).

Assim, pois, a fim de participarmos dos dons prometidos, empreguemos todo o empenho em sermos contado no número dos que o esperam. E como se fará isto, diletos? Far-se-á, se pela fé nosso pensamento se estabilizar em Deus, se procurarmos com diligência aquilo que lhe é agradável e aceito, se fizermos tudo quanto se relaciona com sua vontade irrepreensível e seguirmos a via da verdade, rejeitando para longe de nós toda injustiça.

-- Da Carta aos coríntios, de São Clemente I, papa (século I)

25 de out. de 2010

Carta aos Coríntios, São Clemente I

Veneremos o Senhor Jesus, cujo sangue foi derramado por nós, respeitemos nossos superiores, honremos os anciãos, eduquemos os jovens na disciplina do temor de Deus, encaminhemos nossas esposas para todo o bem. Manifestem o amável procedimento de castidade, mostrem seu puro e sincero propósito de mansidão, pelo silêncio dêem a conhecer a moderação da língua, tenham igual caridade sem acepção de pessoas para com aqueles que santamente temem a Deus.


Papa São Clemente I, Romano
Participem vossos filhos da ciência de Cristo. Aprendam que grande valor tem para Deus a humildade, o poder da casta caridade junto de Deus, como é bom e imenso seu temor, protegendo a todos que nele se demoram na santidade de um coração puro. Porque ele é o perscrutador dos pensamentos e resoluções da mente. Seu Espírito está em nós, e, quando quer, retira-o.
A fé em Cristo tudo confirma. Ele, pelo Espírito Santo, nos incita: Vinde, filhos, ouvi-me; ensinar-vos-ei o temor do Senhor. Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias bons? Afasta tua língua do mal e não profiram teus lábios a mentira. Desvia-te do mal e faze o bem. Busca a paz e persegue-a (Sl 33,12-15).

Misericordioso em tudo, o Pai benigno tem amor pelos que o temem, concede com bondade e doçura suas graças àqueles que se lhe aproximam com simplicidade. Por isso não sejamos fingidos nem insensíveis a seus dons gloriosos.

-- Da Carta aos Coríntios, de São Clemente I, papa (século I)

24 de out. de 2010

Três virtudes morais: piedade, justiça e sobriedade.

Embora as três virtudes teologais fé, esperança e caridade incluam todas as regras para viver bem e, portanto, morrer bem; o Espírito Santo, autor de todos os livros da Sagrada Escritura, para melhor compreensão da necessária arte de viver corretamente, acrescentou piedade, justiça e piedade, das quais fala o apóstolo Paulo na Epístola a Tito: Manifestou-se, com efeito, a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens. Veio para nos ensinar a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver neste mundo com toda sobriedade, justiça e piedade, na expectativa da nossa esperança feliz, a aparição gloriosa de nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo (Tt 2, 11-13).

Este, portanto, é o sexto conselho para viver e morrer corretamente: que negando a impiedade e os desejos do mundo, nós vivamos sóbria, justa e piedosamente neste mundo. Aqui um resumo para toda lei divina, reduzida a uma curta sentença: Aparta-te do mal e faze o bem, para que permaneças para sempre (Sl 36, 27). No mal há duas coisas; a distância de Deus e proximidade com as criaturas, de acordo com o profeta Jeremias: Porque meu povo cometeu uma dupla perversidade: abandonou-me, a mim, fonte de água viva, para cavar cisternas, cisternas fendidas que não retêm a água (Jr 2, 13). O que o homem deve fazer para afastar-se do mal? Ele deve negar a impiedade e os desejos carnais. A impiedade nos afasta de Deus e os desejos carnais nos tornam meras criaturas do mundo. Para fazer o bem, nós devemos cumprir a lei e viver sóbria, justa e piedosamente. Sóbrios em relação a nós, justos em relação ao próximo, piedosamente em relação a Deus.

Mas nós entraremos um pouco mais em detalhes, com o objetivo de facilitar a prática deste salutar conselho. O que é, então, a impiedade? O contrário da piedade. O que é a piedade? A virtude ou dom do Espírito Santo, pelo qual reconhecemos o Senhor, adoramos a Deus e o veneramos como nosso Pai. O Espírito Santo nos ajuda a compreendermos que se desejarmos agradar a Deus, devemos cari de amores por ele piedosamente a ponto de não admitir impiedade. Pois há muitos cristãos que parecem ser piedosos rezando a Deus, participando do adorável sacrifício, ouvindo sermões e catequeses, mas, ao mesmo tempo, blasfemam contra Deus, juram em falso ou quebram seus votos. E o que mais é isto senão fingir ser piedoso, mas ao mesmo tempo ser impiedoso?

É proveitoso para aqueles que desejam viver corretamente, adorar a Deus e negar toda impiedade. Sim, qualquer sombra de impiedade. Pois será de pouco lucro ouvir a missa diária se também blasfemar contra Deus ou jurar por seu santo nome, Temos que cuidadosamente alertar que o apóstolo não diz apenas para evitar a impiedade, mas toda impiedade, ou seja, qualquer tipo de impiedade, nào apenas as mais graves, mas também as leves. E isto é dito contra quem não hesita jurar sem necessidade; quem em lugares sagrados olha para mulheres de modo inconveniente, para não dizer lascivo; quem conversa durante a missa; e comete outras ofensas; como se não acreditasse que Deus está presente e observasse até mesmo os mais leves pecados. Nosso Deus é um Deus ciumento: Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto. Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso que vingo a iniqüidade dos pais nos filhos, nos netos e nos bisnetos daqueles que me odeiam, mas uso de misericórdia até a milésima geração com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos (Ex 20, 5-6).

Isto o próprio filho de Deus nos ensinou com seu exemplo. Embora manso e humilde de coração, “ultrajado, não retribuía com idêntico ultraje; ele, maltratado, não proferia ameaças” (1Pe 2,23), mas quando “encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas”, com grande zelo, “fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos que vendiam as pombas: Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes”(Jo 2, 14-16). E isto ele fez duas vezes no primeiro ano de sua pregação, e novamente no último ano de seu ministério, de acordo com o testemunho dos três evangelistas.

Vamos proceder agora para a segunda virtude, que direciona nossas ações ao próximo. Esta é a virtude da justiça, da qual o apóstolo fala que negando os desejos do mundo, vivemos justamente. Aqui, no dito “afastai-vos do mal, fazei o bem” é incluída; pois não é possível alcançar a verdadeira justiça para com o próximo quando os desejos carnais prevalecem. Os desejos carnais significam “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida”(1Jo 2, 16). Estas não são de Deus, mas do mundo. Assim como a justiça não pode ser injusta, os desejos carnais não podem, de nenhuma maneira, estarem unidos a verdadeira justiça. Uma criança deste mundo pode, de fato, afetar a justiça em suas palavras, mas não pode realizá-la em obras e verdade. O apóstolo diz que não apenas devemos viver justamente, mas ele explicou que devemos negar os desejos carnais, temos que compreender que o veneno da concupiscência deve primeiro ser extirpado antes que a boa árvore da justiça possa ser plantada em nosso coração. Ninguém pode questionar o que significa viver justamente, pois todos nós sabemos que a justiça nos leva a dar a cada um o respeito devido, como diz o apóstolo: Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito (Rm 13, 7). Para o comerciante, devemos o preço acordado; para o trabalhor, seu salário; e assim em todas atividades. E com muito maior razão aqueles a que esta atribuída a administração dos bens públicos, devem agir com a máxima atenção, não deixando-se influenciar por pessoas, sejam parentes ou amigos próximos. Se, então, nós desejamos aprender a arte de morrer justamente, ouçamos o que diz o homem sábio clamando: "amai a justiça, vós que sois juízes na terra". Escutemos São Tiago em sua epístola: Eis que o salário, que defraudastes aos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, clama, e seus gritos de ceifadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos (Tg 5,4).

Agora falemos da terceira virtude, chamada sobriedade, para a qual os desejos carnais não são menos contrários que para a justiça. E aqui não entendemos a sobridade apenas como a virtude contrária a bebedeira, mas como a virtude da temperança ou moderação, que faz um homem regular os desejos de seu corpo de acordo com a razão, não de acordo com suas paixões. Atualmente esta virtude é raramente encontrada entre os homens; os desejos carnais parecem parecem ter se apoderado dos ricos deste mundo. Mas aqueles que são sábios não seguem o exemplo dos tolos, embora estes sejam quase inumeráveis, devemos seguir somente o exemplo dos sábios. Salomão, que era certamente o mais sábio dos homens, pediu a Deus: Eu te peço duas coisas, não mas negues antes de minha morte: afasta de mim falsidade e mentira, não me dês nem pobreza nem riqueza, concede-me o pão que me é necessário, para que, saciado, eu não te renegue (Pv 30, 7-9a). E o sábio apóstolo Paulo diz: Porque nada trouxemos ao mundo, como tampouco nada poderemos levar. Tendo alimento e vestuário, contentemo-nos com isto. (1 Tm 6,7-8).

Estas são palavras muito sábias, pois por que cuidarmos de acumular riquezas, quando não podemos carregá-las conosco para o lugar que a morte nos conduzir. Cristo, nosso Senhor era mais sábio que Salomão e Paulo, pois ele era a Sabedoria propriamente dita, também disse: Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus! (Mt 5, 3) e de si mesmo: As raposas têm covas e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (Lc 9, 5).Quanto mais devem ser verdadeiras estas palavras que sai boca destes três sábios homens? E, se a isto acrescentarmos que nossas desnecessárias riquezas não são nossas, mas pertencem aos pobres, como é a opinião dos santos padres, não são os homens estúpidos que cuidadosamente cuidam das coisas da terra que irão ser condenados ao inferno?

E se, então, queremos aprender a arte de viver e morrer corretamente, não sigamos a multidão que acredita e valoriza o que vê, mas sigamos a Jesus Cristo e aos apóstolos, que pela palavra e exemplo nos ensinaram que as coisas presentes devem ser desprezadas e a glória do grande Deus e Salvador Jesus Cristo deve ser desejada a esperada. E, verdadeiramente, tão grande é esta glória, que esperamos pelo retorno de nosso Senhor Jesus Cristo, que todas as glórias passadas, riquezas e alegrias deste mundo, serão consideradas como nada, e aqueles chamados tolos e infelizes, que confiaram em assuntos tão importantes em palavras sábias, serão salvos.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, capítulo VI, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)

21 de out. de 2010

No amor Deus estamos seguros das tentações

Pois, nosso bom Mestre, dai-nos algum remédio para vivermos sem muito sobressalto em guerra tão perigosa.

Aquele que podemos ter, filhas, e por Sua Majestade nos foi dado, é amor e temor. O amor nos fará apressar o passo; o temor nos fará ir vendo onde pomos os pés para não cair em caminho onde há tanto em que tropeçar, como é este em que caminhamos todos os que vivemos. E com isto é bem certo não sermos enganados.

Quem deveras ama a Deus, todo o bem ama, todo o bem quer, todo bem favorece, todo o bem louva, com os bons se junta sempre e os favorece e defende; não ama senão verdades e coisa que seja digna de se amar. Pensais que é possível, a quem muito ama a Deus, amar vaidades, ou riquezas, ou coisas de deleites do mundo, ou honras, ou tenha contendas ou invejas? Não, que nem pode; e tudo, porque não pretende outra coisa senão contentar ao Amado. Andam estes morrendo para que Ele os ame, e assim dariam a vida para entender como mais Lhe hão-de agradar.

O amor de Deus, se deveras é amor, é impossível que esteja muito encoberto. Senão, olhai um São Paulo, uma Madalena: em três dias um começou a dar mostras de estar enfermo de amor: foi São Paulo. A Madalena, desde o primeiro dia; e como o deu bem a entender! Que isto tem o amor: há mais e menos; e assim se dá a conhecer conforme a força que ele tem. Se é pouco, dá-se pouco a conhecer; se é muito, muito; mas pouco ou muito, caso haja amor de Deus, sempre se conhece.

Mas se sentis este amor de Deus que digo, e o temor que agora direi, andai alegres e sossegadas; pois, para vos perturbar a alma a fim de não gozar tão grandes bens, o demónio meter-vos-á mil temores falsos e fará com que outros também vo-los metam. Já que não pode apanhar-vos, ao menos procura fazer-vos perder alguma coisa, assim como aos que poderiam lucrar muito se acreditassem serem de Deus as tão grandes mercês feitas a uma criatura tão ruim, e julgassem ser isso possível. Parece algumas vezes que esquecemos as Suas antigas misericórdias.
Pensais que importa pouco ao demónio meter estes temores? - Não! mas muito, porque causa dois danos.  Um, é atemorizar os que o escutam e temem assim de se chegarem à oração, pensando poderem também ser enganados. O outro, é que muitos se chegariam mais a Deus, vendo que é tão bom, - como digo - e que é possível comunicar-se agora tanto aos pecadores, desperta-lhes o desejo da mercê e têm razão que eu conheço algumas pessoas a quem isto animou e começaram a ter oração e em pouco tempo saíram verdadeiros contemplatívos, fazendo-lhes o Senhor grandes mercês.

Praza a Sua Majestade nos dê o Seu amor antes de nos tirar desta vida, porque será grande coisa, à hora da morte, ver que vamos ser julgados por Aquele a quem temos amado sobre todas as coisas. Poderemos ir seguras do pleito de nossas dívidas; não vamos para terra estranha, mas para a nossa própria, pois é a d'Aquele a quem tanto amamos e nos ama. Lembrai-vos, aqui, filhas minhas, do lucro que traz consigo este amor, e da perda de o não ter, que nos põe nas mãos do tentador, em mãos tão cruéis, mãos tão inimigas de todo o bem, e tão amigas de todo o mal.

-- Do Livro O Caminho da Perfeição, de Santa Teresa de Ávila (século XVI)

20 de out. de 2010

A Noite Escura, São João da Cruz


São João da Cruz
Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
´stando já minha casa sossegada.
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
´stando já minha casa sossegada.

Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa alguma,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em lugar onde ninguém aparecia.

Oh! noite, que me guiaste,
Oh! noite, amável mais do que a alvorada
Oh! noite, que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!

Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.

Comentário de São João da Cruz
A alma conta nesta primeira canção o modo e maneira que teve de sair, segundo sua visão, de si e todas as coisas do mundo, morrendo por verdadeira mortificação de todas elas e de si mesma, para viver a vida doce e saborosa de Deus. E diz que este sair de si e todas as coisas foi uma noite escura, que aqui se entende pela contemplação purgativa, que causa passivamente na alma uma negação de si mesma e todas as coisas.

E esta saída, diz ela aqui, que pode fazer com a força e calor que para tanto lhe deu o amor de seu Esposo na dita contemplação escura. Enfatiza a boa sorte que teve em caminhar com Deus por esta noite, com tão grande sucesso que nenhum dos três inimigos, que são o mundo, o demonio e a carne, que sempre contrariam este caminho, puderam lhe impedir; por quanto esta noite de contemplação purificativa fez adormecer e amortecer na casa de sua sensualidade todas as paixões e apetites através de desejos e movimentos contrários.

19 de out. de 2010

Oração do Senhor

Temos necessidade de palavras para incitar-nos e ponderarmos o que pediremos, e não com a intenção de dá-lo a saber ao Senhor ou a comovê-lo.
 
Quando, pois, dizemos:
 
Santificado seja o teu nome, exortamo-nos a desejar que seu nome, imutavelmente santo, seja também considerado santo pelos homens, isto é, não desprezado. O que é de proveito para os homens, não para Deus.
 
E ao dizermos: Venha teu reino que, queiramos ou não, virá sem falta, acendemos o desejo deste reino; que venha para nós e nele mereçamos reinar.

Ao dizermos: Faça-se a tua vontade assim na terra como no céu, pedimos-lhe conceder-nos esta obediência de sorte que se faça em nós sua vontade do mesmo modo como é feita no céu por seus anjos.
 
Dizemos: O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Pela palavra hoje se entende este nosso tempo. Ou, com a menção da parte principal,indicando o todo pela palavra pão, pedimos aquilo que nos basta. O sacramento dos fiéis, necessário agora, não, porém, para a felicidade deste tempo, mas para alcançarmos a felicidade eterna.

Dizendo: Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos a nossos devedores, tomamos consciência do que pedimos e do que temos de fazer para merecer obtê-lo.
 
Ao dizer: Não nos leves à tentação, advertimo-nos a pedir que não aconteça que, privados de seu auxílio em alguma tentação, iludidos, consintamos nela, ou cedamos perturbados.
 
Dizer: Livra-nos do mal nos leva a pensar que ainda não estamos naquele Bem em que não padeceremos de mal algum. E este último pedido da oração dominical é tão amplo, que o cristão em qualquer tribulação em que se veja, por ele pode gemer, nele derramar lágrimas, daí começar, nele demorar-se, nele terminar a oração. É preciso guardar em nossa memória, por meio destas palavras, as realidades mesmas.
 
Pois quaisquer outras palavras que dissermos – tanto as formadas pelo afecto que as precede e esclarece, quanto as que o seguem e crescem pela atenção dele – não dirão nada que não se encontre nesta oração dominical, se orarmos como convém. Quem disser algo que não possa ser contido nesta prece evangélica, sua oração, embora não ilícita, é carnal; contudo não sei como não ser ilícita, uma vez que somente de modo espiritual devem orar os renascidos do Espírito.

-- Da Carta a Proba, de Santo Agostinho, bispo (século V)

Outros textos sobre o Pai Nosso:



 

16 de out. de 2010

O erro dos ricos deste mundo

Além de tudo que já foi ditto, eu devo acrescentar uma refutação a certo erro muito prevalente entre os ricos deste mundo, que muito os afasta de uma vida correta e uma boa morte. O erro consiste nisto: o rico supõe que toda riqueza que possui é absolutamente sua propriedade, se justamente adquirida; e, portanto, podem legalmente gastá-la ou disperdiçá-la e ninguém pode lhes dizer: “Por que você fez isto? Por que se vestir tão ricamente? Por que organizar festas tão suntuosas? Por que gastar tão prodigamente com teus cachorros e falcões? Por que gastar tanto em jogos e outros prazeres semelhantes”. E eles respondem: “O que é isto para ti? Não é correto eu gastar o meu dinheiro para fazer aquilo que eu desejar?”

Este erro é sem dúvida, mais grave e pernicioso: considerar que os ricos são mestres das suas propriedades com relação aos demais homens; embora, em relação a Deus, eles não sejam mestres, mas apenas administradores. Esta verdade pode ser provada com muitos argumentos: Do Senhor é a terra é o que nela existe, o mundo e seus habitantes (Sl 24, 1). E ainda: Não preciso do novilho do teu estábulo, nem dos cabritos de teus apriscos, pois minhas são todas as feras das matas; há milhares de animais nos meus montes. Conheço todos os pássaros do céu, e tudo o que se move nos campos. Se tivesse fome, não precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela contém. (Sl 50, 9-12).

E no primeiro livro de Crônicas, quando Davi ofereceu para a construção do templo três mil moedas de ouro e sete mil moedas de prata e mármore em grande abundância; e quando movidos pelo exemplo do Rei, os príncipes das tribos ofereceram cinco mil moedas de ouro, dez mil moedas de prata, dezoito mil de bronze e cem mil de ferro, então Davi disse ao Senhor: A vós, Senhor, a grandeza, o poder, a honra, a majestade e a glória, porque tudo que está no céu e na terra vos pertence. A vós, Senhor, a realeza, porque sois soberanamente elevado acima de todas as coisas. É de vós que vêm a riqueza e a glória, sois vós o Senhor de todas as coisas; é em vossa mão que residem a força e o poder. E é vossa mão que tem o poder de dar a todas as coisas grandeza e solidez. Agora, ó nosso Deus, nós vos louvamos e celebramos vosso nome glorioso. Quem sou eu, e quem é meu povo, para que possamos fazer-vos voluntariamente estas oferendas? Tudo vem de vós e não oferecemos senão o que temos recebido de vossa mão. (1Cr 29, 11-14) O testemunho de Deus pode ser acrescentado através das palavras do profeta Ageu: A prata e o ouro me pertencem - oráculo do Senhor dos exércitos (Ag 2,8). Assim falou o Senhor, para que o povo compreendesse que nada seria necessário caso o Senhor ordenasse sua construção, pois a Ele pertencem todo ouro e prata deste mundo.

Devo acrescentar dois outros testemunhos das palavras de Cristo, no Novo Testamento: Havia um homem rico que tinha um administrador. Este lhe foi denunciado de ter dissipado os seus bens. Ele chamou o administrador e lhe disse: Que é que ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, pois já não poderás administrar meus bens (Lc 16, 1-2). O “homem rico”, aqui, significa Deus, como dissemos a pouco, pois como diz o profeta Ageu, dele é o ouro e a prata. Por “administrador”entenda-se os homens ricos, como explicam os santos padres Agostinho, Ambrósio e o Venerável Beda sobre esta passagem.

Se o Evangelho, então, deve ser acreditado, todo homem rico deste mundo deve reconhecer que suas riquezas, justa ou injustamente adquiridas, não são suas: se ele as adquiriu corretamente, ele é apenas o administrador; se injustamente, ele não é nada além de um ladrão. E desde que o homem rico não é mestre de suas riquezas, por consequencia, quando acusado de uma injustiça frente a Deus, Deus pode retirá-las através da morte ou tomando-as, pois assim esta indicado nestas palavras: Presta contas da tua administração, pois já não poderás administrar meus bens. Para Deus sempre haverá meios de reduzir um rico à probreza, retirando os bens de sua custódia. Naufrágios, roubos, tempestades de granizo, pragas, muita chuva, seca e outras aflições são as muitas vozes de Deus dizendo ao rico: já não poderás administrar meus bens.

Mas, então, ao final da parábola, nosso Senhor diz: fazei amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16, 9). Ele não quer dizer que as esmolas são dadas a Ele, mas que os ricos não são ricos, propriamente falando, mas somente sombras Dele. Isto é evidente em outra passagem do Evangelho de São Lucas: Se, pois, não tiverdes sido fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? (Lc 16, 11)

O significado destas palavras é: se nas injustas riquezas ou seja, nas falsas riquezas, não tiverdes sido fiéis dando tudo liberalmente aos pobres, quem vos confiará as verdadeiras que fazem um homem realmente rico? Esta é a explicação dada por São Cipriano e Santo Agostinho.

Em outra passagem do mesmo evangelho, que pode ser considerada como um comentário sobre o administrador injusto: Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico... Até os cães iam lamber-lhe as chagas. Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. estando ele nos tormentos do inferno (Lc 16, 19-23a). Este rico era certamente um daqueles que supõe ser mestre de seu próprio dinheiro e não adminsitrador, e portanto ele imaginou não estar ofendendo a Deus quando estava vestido de púrpura e linho, e celebrava suntuosamente todos os dias, tinha seus cães e bufões. Talvez tenha dito a si mesmo: eu gasto o meu dinheiro, não ataco ninguém, eu não violo as leis de Deus, eu não blasfemo nem juro em falso, observo os dias santos, honro pai e mãe, não mato, não sou adultero, não roubo, não dou falso testemunho, não desejo a mulher do próximo, nào faço nada disto. Mas se é este caso, por que ele foi para o Inferno, ser atormentado no fogo? Devemos reconhecer que aqueles enganados, que supõe ser mestres absolutos de seu dinheiro, devem responder por muitos graves pecados, que as Santas Escrituras deveriam mencionar. Mas como nada mais é dito, entendemos que os adornos supérfluos e caros, seus magníficos banquetes, a multidão de servos e cães, enquanto não possuía nenhuma compaixão pelo pobre é causa suficiente para condená-lo aos tormentos eternos.

Portanto, podemos estabelecer uma regra clara para viver e morrer bem, e sempre considerar que iremos prestar contas a Deus de nosso palácios luxuosos, jardins, muitos servos, esplendor nas vestimentas, banquetes, gastos desnecessários, que afetam a multidão de pobres e doentes, que procuram pelos nossos superfluos, que chorar a Deus, e no dia do julgamento não pararão de clamar contra todos homens ricos, até que sejam condenados às chamas eternas.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, capítulo V, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)

15 de out. de 2010

Lembremo-nos sempre do amor de Cristo

O que mais queremos, do que ter ao nosso lado tão bom amigo (Jesus Cristo), que não nos deixará nos trabalhos e tribulações, como fazem os amigos deste mundo? Bem-aventurado quem o amar de verdade e sempre o trouxer junto de si. Olhemos o glorioso São Paulo de cujos lábios, por assim dizer, não saía senão o nome de Jesus, tão bem gravado o tinha no coração. Desde que entendi isto, tenho considerado atentamente alguns santos, grandes contemplativos, tais como São Francisco, Santo Antônio de Pádua, São Bernardo, Santa Catarina de Sena. Com liberdade havemos de andar neste caminho, entregues às mãos de Deus. Se Sua Majestade quiser elevar-nos à categoria de seus íntimos e confidentes dos seus segredos, vamos de boa vontade.

Quando pensarmos em Cristo, sempre nos lembremos do amor com que nos concedeu tantas graças e da grande ternura que nos testemunhou em nos dar tal penhor do muito que nos ama, pois amor pede amor. Procuremos sempre ir considerando estas verades e estimulando-nos a amar. Porque, uma vez conceda o Senhor a graça de que este amor nos seja impresso no coração, tudo nos será mais fácil: faremos muitas coisas muito depressa e com pouco trabalho.

-- Das Obras de Santa Teresa de Ávila, virgem (século XVI)

14 de out. de 2010

Entregar-se

Várias vezes, Nosso Senhor já havia me dado conhecer o quanto era útil, para o progresso de uma alma desejosa de perfeição, entregar-se sem reserva à ação do Espírito Santo. Mas, nesta manhã, a divina Bondade dignou-se me agraciar com uma visão toda particular. Estava me preparando para começar minha meditação, quando ouvi o ressoar de vários sinos chamando os fiéis para assistir aos divinos Mistérios. Neste momento, desejei unir-me a todas as missas que estavam sendo celebradas e com este intuito, dirigi a minha intenção para que participasse de todas elas. Tive então uma visão geral de todo o universo católico e de uma profusão de altares nos quais se imolava, ao mesmo tempo, a adorável Vítima.

O Sangue do Cordeiro sem mancha corria abundante sobre cada um desses altares que me pareciam envoltos numa leve fumaça que subia para o céu. Minha alma era tomada e penetrada por um sentimento de amor e de gratidão à vista dessa tão abundante satisfação a nós oferecida por Nosso Senhor. Mas também surpreendia-me muito o fato de que o mundo inteiro não se achasse santificado em conseqüência. Perguntava-me como era possível que o Sacrifício da Cruz, oferecido uma só vez, tenha sido suficiente para salvar todas as almas e que, renovado tantas vezes, não bastasse para santificá-las todas. Eis a resposta que julgo ter ouvido: - O Sacrifício é sem dúvida suficiente por si mesmo e o Sangue de Jesus Cristo mais que suficiente para a santificação de um milhão de mundos, mas às almas falta corresponder generosamente. Pois o grande meio para entrar na via da perfeição e da Santidade – é o de entregar-se ao nosso Bom Deus.

Mas que significa entregar-se? Percebo toda a extensão desta expressão “entregar-se”, porém não posso explicitá-la. Sei apenas que é muito extensa e abrange o presente e o porvir.

Entregar-se é mais que se dedicar; é mais que se doar; é até maior que se abandonar a Deus. Entregar-se, finalmente, significa morrer a tudo e a si mesmo, não se preocupar mais com o eu a não ser para mantê-lo sempre orientado para Deus.
Entregar-se é ainda mais que não se procurar a si mesmo em nada, nem no espiritual, nem no corporal; quer dizer deixar de procurar a satisfação própria, mas unicamente o bel-prazer divino.

É preciso acrescentar que “entregar-se” significa, também, esse espírito de desapego que não se prende em nada, nem nas pessoas, nem nas coisas, nem no tempo, nem nos lugares. É aderir a tudo, submeter-se a tudo.
Mas, talvez se acredita que isso seja muito difícil de se conseguir. Desenganem-se, não existe nada mais fácil de se fazer e nada tão suave de se praticar. Tudo consiste em fazer uma só vez um ato generoso, dizendo com toda a sinceridade de sua alma: “Meu Deus, quero ser inteiramente seu (sua), queira aceitar minha oferenda”. E tudo será dito.


Santa Teresa Couderc

Permanecer de agora em diante nesta disposição de alma e não recuar diante de nenhum dos pequenos sacrifícios que possam servir ao nosso progresso em virtude. Lembrar-se que se entregou.
Rogo a Nosso Senhor que forneça o entendimento desta expressão a todas as almas desejosas de Lhe agradar, inspirando-lhes um meio de santificação tão fácil. Oxalá fosse possível compreender de antemão toda a suavidade e toda a paz que se desfruta quando não se guarda reserva com nosso Bom Deus!

De que forma Ele se comunica com a alma que O procura com sinceridade e que soube entregar-se. Experimentem e vereis que lá é que se acha a felicidade procurada em vão alhures.
A alma entregue encontrou o Paraíso na Terra, pois ali goza esta paz suave que constitui em parte a felicidade dos eleitos.
 
-- Escrito por Santa Teresa Couderc, século XIX

13 de out. de 2010

O Pai Nosso, a Oração do Senhor

E se percorreres todas as palavras das santas preces (do Pai Nosso), em meu parecer, nada encontrarás que não esteja contido nesta oração dominical ou que ela não encerre. Por isto cada qual ao orar é livre de dizer estas ou aquelas palavras, mas não pode sentir-se livre de dizer coisa diferente.

Sem a menor dúvida, é isso que devemos pedir na oração, por nós, pelos nossos, pelos estranhos e até pelos inimigos; uma coisa para este, outra para aquele, conforme o parentesco mais próximo ou mais afastado, segundo brote ou inspire o sentimento no coração do orante.

Sabes, agora, assim penso, não apenas como rezar, mas o que rezar; não fui eu o mestre, mas aquele que se dignou ensinar-nos a todos nós.

A vida feliz, a ela temos de tender, temos de pedi-la ao Senhor Deus. O que seja ser feliz tem sido muito e por muitos discutido. Nós, porém, para que irmos atrás de muitos e de muitas coisas? Na Escritura de Deus, com toda a verdade e concisão, se diz: Feliz o povo que tem por Senhor o próprio Deus (Sl 143,15). Para sermos deste povo, chegar a contemplar a Deus e com ele viver sem fim, a meta do preceito é a caridade com um coração puro, consciência boa e fé sem hipocrisia (cf. 1Tm 1,5).
Nestes três objetivos, a esperança corresponde à boa consciência. Portanto a fé, a esperança e a caridade levam a Deus o orante, aquele que crê, que espera, que deseja e que presta atenção ao que pede ao Senhor na oração dominical.
 
-- Da Carta a Proba, de Santo Agostinho, bispo (século V)

11 de out. de 2010

A Devoção à Nossa Senhora

“Viva a Mãe de Deus e nossa, sem pecado concebida! Viva a Virgem Imaculada, a Senhora Aparecida!” Desde que pus os pés em terra brasileira, nos vários pontos por onde passei, ouvi este cântico. Ele é, na ingenuidade e singeleza de suas palavras, um grito da alma, uma saudação, uma invocação cheia de filial devoção e confiança para com aquela que, sendo verdadeira Mãe de Deus, nos foi dada por seu Filho Jesus no momento extremo da sua vida para ser nossa Mãe.

Sim, amados irmãos e filhos, Maria, a Mãe de Deus, é modelo para a Igreja, é Mãe para os remidos. Por sua adesão pronta e incondicional à vontade divina que lhe foi revelada, torna-se Mãe do Redentor, com uma participação íntima e toda especial na história da salvação. Pelos méritos de seu Filho, é Imaculada em sua Conceição, concebida sem a mancha original, preservada do pecado e cheia de graça.

Ao confessar-se serva do Senhor (Lc 1,38) e ao pronunciar o seu sim, acolhendo “em seu coração e em seu seio” o mistério de Cristo Redentor, Maria não foi instrumento meramente passivo nas mãos de Deus, mas cooperou na salvação dos homens com fé livre e inteira obediência. Sem nada tirar ou diminuir e nada acrescentar à ação daquele que é o único Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, Maria nos aponta as vias da salvação, vias que convergem todas para Cristo, seu Filho, e para a sua obra redentora.

Maria nos leva a Cristo, como afirma com precisão o Concílio Vaticano II: “A função maternal de Maria, em relação aos homens, de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; antes, manifesta a sua eficácia. E de nenhum modo impede o contato imediato dos fiéis com Cristo, antes o favorece”.

Mãe da Igreja, a Virgem Santíssima tem uma presença singular na vida e na ação desta mesma Igreja. Por isso mesmo, a Igreja tem os olhos sempre voltados para aquela que, permanecendo virgem, gerou, por obra do Espírito Santo, o Verbo feito carne. Qual é a missão da Igreja senão a de fazer nascer o Cristo no coração dos fiéis, pela ação do mesmo Espírito Santo, através da evangelização? Assim, a “Estrela da Evangelização”, como a chamou o meu Predecessor Paulo VI, aponta e ilumina os caminhos do anúncio do Evangelho. Este anúncio de Cristo Redentor, de sua mensagem de salvação, não pode ser reduzido a um mero projeto humano de bem-estar e felicidade temporal. Tem certamente incidências na história humana coletiva e individual, mas é fundamentalmente um anúncio de libertação do pecado para a comunhão com Deus, em Jesus Cristo. De resto, esta comunhão com Deus não prescinde de uma comunhão dos homens uns com os outros, pois os que se convertem a Cristo, autor da salvação e princípio de unidade, são chamados a congregar-se em Igreja, sacramento visível desta unidade humana salvífica.

Por tudo isto, nós todos, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo, com total aderência à tradição antiga e com pleno respeito e amor pelos membros de todas as comunidades cristãs, desejamos unir-nos a Maria, impelidos por uma profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade. Discípulos de Jesus Cristo neste momento crucial da história humana, em plena adesão à ininterrupta Tradição e ao sentimento constante da Igreja, impelidos por um íntimo imperativo de fé, esperança e caridade, nós desejamos unir-nos a Maria. E queremos fazê-lo através das expressões da piedade mariana da Igreja de todos os tempos.

A devoção a Maria é fonte de vida cristã profunda, é fonte de compromisso com Deus e com os irmãos. Permanecei na escola de Maria, escutai a sua voz,segui os seus exemplos. Como ouvimos no Evangelho, ela nos orienta para Jesus: Fazei o que ele vos disser (Jo 2,5). E, como outrora em Caná da Galiléia, encaminha ao Filho as dificuldades dos homens, obtendo dele as graças desejadas. Rezemos com Maria e por Maria: ela é sempre a “Mãe de Deus e nossa”.

-Da Homília na Dedicação da Basílica Nacional de Aparecida, do Papa João Paulo II (século XX).

9 de out. de 2010

Três Conselhos Evangélicos

Assim nos fala São Lucas: Tendes os rins cingidos e acesas as vossas lâmpadas. Sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor ao voltar das núpcias para lhe abrirem a porta quando ele chegar e bater (Lc 12, 35-36). Esta parábola pode ser entendida de duas maneiras: como preparação para a chegada do Senhor nos últimos dias; ou para Sua chegada no dia da morte de cada um. Nós iremos explicar esta parábola pelo segundo sentido, entendida como preparação para a morte, que sobre todas as coisas é tão absolutamente necessária para nós.
As núpcias do Senhor

O Senhor nos ordena a observar três coisas: primeiro, nós devemos "cingir os rins"; depois, devemos ter "lâmpadas queimando nossas mãos"; terceiro, estarmos atentos "vigiando" em expectativa a chegada de nosso julgamento, estando ignorantes do momento de sua chegada, assim como ignoramos a chegada dos ladrões.

Expliquemos estas palavras: "cingir os rins". O sentido literal destas palavras é que devemos estar preparados ara seguirmos adiante e encontrar o Senhor quando a morte nos chamar para nosso particular julgamento. A comparação comas vestimentas estarem cingidas é relacionada aos costumes das nações orientais de utilizarem longas vestes; e quando estão preparados para iniciar uma longa jornada, eles tomam suas vestes e as cingem, isto é, apertam, para evitar que nelas tropecem. De acordo com o mesmo costume dos orientais, São Pedro escreve: Cingi, portanto, os rins do vosso espírito, sede sóbrios e colocai toda vossa esperança na graça que vos será dada no dia em que Jesus Cristo aparecer.(1Pe 1, 13). E São Paulo na Epístola aos Efésios diz: Ficai alerta, à cintura cingidos com a verdade, o corpo vestido com a couraça da justiça (Ef 6,14).

Ter nossos "rins cingidos" significa duas coisas: primemiro, a virtude da castidade; segundo, estar pronto para encontrar nosso Senhor vindo para o julgamento, particular ou geral. Os Santos Basílio, Agostinho e Gregório Magno citam a primeira explicação. E, verdadeiramente, a concupiscência da carne, sobre todas as paixões, nos impede de estarmos prontos para encontrar Cristo; por outro lado, nada nos faz mais prontos para encontrar o Senhor, que a castidade virginal. Isto podemos ler nos Apocalipse, sobre as virgens que seguem o Senhor. E o apóstolo diz: O solteiro cuida das coisas que são do Senhor, de como agradar ao Senhor. O casado preocupa-se com as coisas do mundo, procurando agradar à sua esposa. A mesma diferença existe com a mulher solteira ou a virgem. Aquela que não é casada cuida das coisas do Senhor, para ser santa no corpo e no espírito; mas a casada cuida das coisas do mundo, procurando agradar ao marido (1Cor 7,32-34).

Agora expliquemos outro dever do servo fiel e diligente: äs lâmpadas devem estar acesas". Não é suficiente para o servo ter os "rins cingidos", para que possa facil e livremente encontrar o Senhor. Uma lâmpada acesa é requerida para mostrá-lo o caminho, por que à noite deve estar vigilante à Sua espera, quando retornar do banquete nupcial. Aqui, "lâmpada" significa a lei de Deus que aponta o caminho correto. Diz Davi: Vossa palavra é um facho que ilumina meus passos, uma luz em meu caminho (Sl 119, 105).

A "lei é uma luz" diz Salomão no Livro dos Provérbios. Mas a lâmpada não pode iluminar ou apontar o caminho se estiver dentro da casa, ela deve ser erguida pelas nossas mãos. Muitos existem que conhecem as leis divinas e humanas, mas cometem muitos pecados, ou se omitem de bons e necessários trabalhos, por que não possuam uma lâmpada erguida em suas mãos, por que seu conhecimento não se estende às atividades diárias. Quantos homens existem que ouviram a palavra e cometem sérios pecados, por que quando agem não consultam a lei do Senhor, mas suas vontades, desejos e paixões. Se o Rei Davi, quando viu Bersabéia nua, tivesse lembrado da lei "não desejai a mulher do próximo", ele nunca teria cometido tão grave crime; mas como estava deliciado com a beleza da mulher, esqueceu a lei divina. Este homem, tão justo e abençoado, cometeu adultério. Donde, nós devemos ter a lâmpada da lei, não escondida no nosso quarto, mas em nossas mãos, e obedecer estas palavras do Espírito Santo, que nos diz para meditarmos sobre os mandamentos dia e noite. Aquele que mantém em frente a seus olhos os mandamentos, sempre estará pronto para encontrar o Senhor, não importa o momento de sua chegada.

O terceiro é último dever do servo é "vigiar" estando incerto sobre quando chegará o Senhor: Bem-aventurados os servos a quem o senhor achar vigiando, quando vier! (Lc 12, 37) Nosso Senhor não quer que saibamos o momento de nossa morte, para que possamos pecar à vontade, e empreendermos nossa conversão pouco antes da morte. A Divina providência dispos as coisas de tal modo que nada é mais incerto que a hora da morte: alguns morrem no ventre da mãe, alguns tão logo nascem, outros já muito velhos, alguns na flor da juventude; alguns sofrem por um bom tempo, ou morrem subitamente, ou se recuepram de doenças gravese quase incuráveis; e quando parecem estar sãos e curados, a doença ataca novamente. Esta incerteza Jesus alude nos Evangelhos: Se vier na segunda ou se vier na terceira vigília e os achar vigilantes, felizes daqueles servos! Sabei, porém, isto: se o senhor soubesse a que hora viria o ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria forçar a sua casa. Estai, pois, preparados, porque, à hora em que não pensais, virá o Filho do Homem (Lc 12, 38-40). Para nos convencer da incerteza do momento de nossa morte ou de quando virá nos julgar, nada é mais frequente nas Escrituras que a palavra "vigiar" e também a comparação com o ladrão.

Destas considerações resta evidente como grande pode ser a negligência e ignorência, para não dizer cegueira e loucura da parte da humanidade, que, mesmo estando advertida pelo Espírito da Verdade, que não pode mentir, que deve estar preparada a morte, esta grande e difícil questão, da qual depende eterna felicidade ou miséria, ainda poucos deixam-se elevar pelas palavras ou poder do Espírito Santo.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)


-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português.

8 de out. de 2010

A Doutrina Social da Igreja

Finalidade imediata da doutrina social é a de propor os princípios e os valores que possam suster uma sociedade digna do homem. Entre estes princípios, o da solidariedade em certa medida compreende todos os demais: ele constitui um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política.

Basílica de São Pedro - Vaticano
Tal princípio é iluminado pelo primado da caridade "sinal distintivo dos discípulos de Cristo" (cf. Jo 13, 35). Jesus "nos ensina que a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o mandamento novo do amor" (cf. Mt 22, 40; Jo 15,12; Col 3,14; Tg 2,8). O comportamento da pessoa é plenamente humano quando nasce do amor, manifesta o amor, e é ordenado ao amor. Esta verdade vale também no âmbito social: é necessário que os cristãos sejam testemunhas profundamente convictos e saibam mostrar, com a sua vida, como o amor seja a única força (cf. 1 Cor 12,31-14,1) que pode guiar à perfeição pessoal e social e mover a história rumo ao bem.

Os ensinamentos de João XXIII, do Concílio Vaticano II, de Paulo VI ofereceram amplas indicações da concepção dos direitos humanos delineada pelo Magistério. Na Encíclica Centesimus annus, João Paulo II sintetizou-as num elenco: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa.

 
O primeiro direito a ser enunciado neste elenco é direito à vida, desde o momento da sua concepção até ao seu fim natural, que condiciona o exercício de qualquer outro direito e comporta, em particular, a ilicitude de toda forma de aborto procurado e de eutanásia. É sublinhado o altíssimo valor do direito à liberdade religiosa: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros. O respeito de tal direito assume um valor emblemático do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes.

Quando em âmbitos e realidades que remetem a exigências éticas fundamentais se propõem ou se efetuam opções legislativas e políticas contrárias aos princípios e aos valores cristãos, o Magistério ensina que a consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a atuação de um programa político ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos.

 
Um âmbito particular de discernimento dos fiéis leigos diz respeito as escolhas dos instrumentos políticos, ou seja, a adesão a um partido e às outras expressões da participação política. É preciso operar uma escolha coerente com os valores, tendo em conta as circunstâncias efetivas. Em todo o caso, qualquer escolha deve ser radicada na caridade e voltada para a busca do bem comum. As instâncias da fé cristã dificilmente são assimiláveis a uma única posição política: pretender que um partido ou uma corrente política correspondam completamente às exigências da fé e da vida cristã gera equívocos perigosos. O cristão não pode encontrar um partido plenamente às exigências éticas que nascem da fé e da pertença à Igreja: a sua adesão a uma corrente política não será jamais ideológica, mas sempre crítica, a fim de que o partido e o seu projeto político sejam estimulados a realizar formas sempre mais atentas a obter o verdadeiro bem comum, inclusive os fins espirituais do homem.
-- Trechos do Compêndio da Doutrina Social da Igreja. O texto completo está disponível no site do Vaticano - aqui.

7 de out. de 2010

Se Deus quer o mal

O nono artigo discute-se assim. — Parece que Deus quer o mal.

1. — Pois, quer todo o bem que existe. Ora, é bom que o mal exista, conforme Agostinho: Embora o mal em si não seja bem, contudo é bom que exista, para que não somente exista o bem, mas também o mal. Logo, Deus quer o mal.

2. Demais. — Dionísio diz: O mal contribui para a perfeição de todo o universo. E Agostinho: A admirável beleza do universo resulta de todos os seres; e nela, mesmo o que é mal, bem ordenado e posto no seu lugar, põe mais em evidência o bem, de modo que este mais agrade e seja mais louvável, quando comparado com o mal. Ora, Deus quer tudo o que pertence à perfeição e à beleza do universo, pois isso é o que ele sobretudo quer nas criaturas. Logo, quer o mal.

3. Demais. — Ser feito e não ser feito o mal são opostos contraditórios. Ora, Deus não quer que o mal não se faça, porque praticando-se certos males nem sempre se cumpriria a vontade de Deus. Logo, Deus quer que o mal se faça.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Ninguém se torna pior por causa de um homem sábio. Mas, Deus vale mais que qualquer sábio. Logo, com maior razão, ninguém se torna pior por causa de Deus. Pois, uma coisa tem como autor a quem voluntariamente a fez. Logo, pela vontade de Deus o homem não se torna pior: Mas, sabemos que por qualquer mal uma coisa se torna pior. Portanto, Deus não quer o mal.

SOLUÇÃO. — Sendo o bem por natureza agradável e o mal se lhe opondo, é impossível o mal como tal ser apreciado, quer pelo desejo natural, quer pelo animal, ou pelo intelectual, que é a vontade. Mas ao mal podemos apreciar por acidente, enquanto conduz a algum bem. E isto se dá com qualquer desejo, pois, o agente natural não busca a privação ou a corrupção; mas uma forma concomitante à privação de outra e à geração de um ser, que é a corrupção de outro. Assim, o leão, matando o cervo, busca o alimento, que não é possível sem a morte deste animal. Semelhantemente, o impudico busca o prazer, que não é possível sem a deformidade da culpa. Ora, o mal que acompanha um bem é a privação de outro bem; pois, nunca seria apreciado o mal, nem mesmo por acidente, se o bem, que vem junto com ele, não fosse mais apreciado do que o outro bem de que ele priva. Ora, Deus nada quer mais do que a sua bondade: mas, quer mais um bem que outro. Donde, Deus de nenhum modo quer o mal da culpa, que priva da ordem para o bem divino; mas, aceita o mal do defeito natural, ou o da pena, querendo algum bem que daí resulte.

São Tomas de Aquino,
doutor da Igreja
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Alguns disseram, que, embora Deus não queira o mal, quer, contudo, que ele exista ou seja praticado. E isto diziam porque o mal em si mesmo, se ordena para algum bem; e essa ordem acreditam estar implicada no dizerem — o mal existir ou ser praticado. Mas, esta opinião não é verdadeira, porque o mal não se ordena ao bem, a não ser por acidente. Pois, não está na intenção do pecador que, do pecado, resulte algum bem, assim como não estava na intenção do tirano que, pelas suas perseguições, brilhasse a paciência dos mártires. E, portanto, não se pode dizer que tal ordem para o bem se subentenda no dizer-se que é bom que o mal exista ou seja praticado. Porque não se julga uma coisa pelo que lhe resulta acidentalmente, senão essencialmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O mal não contribui para a perfeição ou beleza do universo, senão por acidente, como dissemos. Por onde, que o mal contribui para a perfeição do universo é uma conclusão que Dionísio considera como inconveniente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora o ato de praticar o mal se oponha contraditoriamente ao de não praticá-lo, contudo, querer que o mal seja praticado e que não o seja não se opõem contraditoriamente, pois, ambas são proposições afirmativas. Assim, Deus nem quer que o mal seja praticado, nem que não o seja; mas, quer permitir que o seja, e isto é bem.
 
-- Do Livro Suma Teológica, de São Tomas de Aquino, vol. 1, questão 19, artigo 9.

6 de out. de 2010

Do mode de servir e de trabalhar

Os irmãos que forem capazes de trabalhar, trabalhem; e exerçam a profissão que aprenderam, enquanto não prejudicar o bem de sua alma e eles puderem exercê-la honestamente. Porquanto diz o profeta: Viverás do trabalho de tuas mãos: serás feliz e terás bem-estar (Sl 127,2).; e o Apóstolo: Quem não quer trabalhar, não coma (2Ts 3,10). Cada qual permaneça naquele ofício e cargo para o qual foi chamado (1Cor 7,24). E como retribuição pelo trabalho podem aceitar todas as coisas de que rpecisam, exceto dinheiro. E, se for necessário, podem pedir esmolas como outros pobres. E podem ter as ferramentas necessárias ao seu ofício. 

Todos os irmãos se esforcem seriamente em praticar boas obras, pois está escrito: “Vê se estás sempre empenhado em praticar alguma boa obra, para que o diabo te encontre ocupado”; e ainda: “A ociosidade é inimiga da alma”. Por isso os servos de Deus devem estar sempre entregues à oração ou a qualquer outra boa obra.

Cuidem os irmãos, onde quer que estejam, nos eremitérios ou em outros lugares, de não apropriar-se de qualquer lugar nem disputá-lo a outrem. E todo aquele que deles se acercar, seja amigo ou adversário, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade. E onde quer que estejam os irmãos, e sempre que se encontrarem em algum lugar, devem respeitar-se e honrar-se espiritualmente e diligentemente uns aos outros, sem murmuração (1Pd 4,9). E guardem-se os irmãos de se mostrarem em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas. Mas antes comportem-se como gente qu8e se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como convém.

-- Da Regra não-bulada, de São Francisco de Assis, século XIII

4 de out. de 2010

Carta aos fiéis de São Francisco de Assis

Ó como são felizes e benditos aqueles que amam o Senhor e fazem o que o mesmo Senhor diz no evangelho: Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, e amarás o teu próximo como a ti mesmo (Lc 10,27).

Amemos, pois, a Deus e adoremo-lo com o coração e espírito puros, porque, acima de tudo, disto está ele à procura e diz: Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois todo aquele que o adorar deve adorá-lo em espírito e verdade (Jo 4,23). É necessário que todos que o adoram, o adorem no espírito da verdade. E dia e noite elevemos para ele louvores e orações, dizendo: Pai nosso que estais nos céus, pois é preciso orar em todo o tempo e não desfalecer (cf. Lc 18, 1).


O trânsito de São Francisco

Além disso, produzamos dignos frutos de penitência (cf Mt 3,8). E amemos os próximos como a nós mesmos. Tenhamos caridade e humildade e façamos esmolas, já que estas lavam as almas das manchas dos pecados. Os homens perdem tudo o que deixam neste mundo. Levam consigo somente a paga da caridade e as esmolas que fizeram: delas receberão do Senhor o prêmio e a justa recompensa.
 
Não nos convém sermos sábios e prudentes segundo a carne, mas antes temos antes de ser simples, humildes e puros. Jamais desejemos ficar acima dos outros, mas prefiramos ser servos e submissos a toda criatura humana, por causa de Deus. Sobre todos os que assim agirem e perseverarem até o fim repousará o Espírito do Senhor e fará neles sua casa e mansão. Serão filhos do Pai celeste, pois fazem suas obras, e são esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo.
 
-- Da carta aos fiéis, de São Francisco de Assis, frade, século XIII.
 

2 de out. de 2010

As três virtudes teologais

Estátua da Esperança - Jacques du Brouecq
A finalidade desta admoestação é a caridade, que procede de coração puro, de boa consciência e de fé sem hipocrisia. (1Tm 1 ,5)

 
Vamos iniciar pela fé, que é a primeira das virtudes que existem no coração do homem justificado pela fé. Não sem razão, o apóstolo acrescenta "sem hipocrisia" a fé. Pela fé vêm a justificação, desde que seja verdadeira e sincera, não falsa e afetada. A fé dos heréticos não conduz à justificação, pois não é verdadeira, é falsa; a fé dos maus católicos não conduz à justificação por que não é sincera, mas afetada. É afetada de duas maneiras: quando nós não acreditamos realmente, mas somente fingimos acreditar; ou quando, apesar de acreditar, não é vivida, como acreditamos que deve ser. Nestas duas situações é que as palavras de São Paulo na epístola a tito devem ser compreendidas: "Afirmam conhecer a Deus, mas negam-no com seus atos". (Tt 1,16a) Desta maneira os santos padres Jerônimo e Agostinho interpretam estas palavras do apóstolo.

Agora, desta primeira virtude de um homem justo, nós podemos facilmente entender quão grande deve se a multidão daqueles que não vivem bem, e, da mesma maneira, morrem no pecado. Eu vejo infiéis, pagãos, heréticos e ateístas que são completamente ignorantes da arte de morrer bem. E entre católicos, quantos existem que "afirmam conhecer a Deus, mas negam-no com seus atos". Quem reconhece ser virgem a mãe de Nosso Senhor, mas não teme blasfemar contra ela? Quem preza orar, jejuar, ser caridoso e outras boas obras, mas ainda se permite vícios opostos? Eu omito outras coisas que são conhecidas de todos. Aqueles dizem possuir fé "sem hipocrisia", que não acreditam naquilo que dizem crer, ou não vivem de acordo com os mandamentos da Igreja Católica; e, por isso, demonstram pela sua conduta que ainda não começaram a viver bem, nem podem tr esperança de uma morte feliz, exceto se por uma graça de Deus aprenderam a arte de morrer bem.

Outra virtude de um homem justo é a esperança, ou uma "boa consciência", como São Paulo no ensina. Esta virtude vêm da fé, pois não há como ter esperança em Deus sem conhecer o Deus verdadeiro ou não acreditar Nele como todo-poderoso e misericordioso. Mas, para exercitar e fortalecer nossa fé, para que possa ser chamada não apenas esperança, mas também confiança, uma boa consciência é necessária. Como se aproximar de Deus e pedir seus favores, quando sabe ter cometido pecados e não tê-los expiados por uma correta penitência? Quem pede um benefício ao inimigo? Quem pode esperar ser perdoado por ele, se reconhece ter estado contra ele?

Escute o que um homem sábio pensa da esperança dos ímpios: "A esperança do ímpio é como a palha levada pelo vento, como espuma miúda que a tempestade espalha; é dispersa como fumaça pelo vento, fugaz como a lembrança do hóspede de um dia" (Sb 5, 14). Assim o sábio admoesta o ímpio, que sua esperança é fraca, não forte; fugaz, não persistente; eles, enquanto estão vivos, ainda tem alguma esperança, em algum momento devem se arrepender e reconciliar-se com Deus; mas quando a morte lhes chegar, a menos que o Todo Poderoso por alguma graça especial mover seus corações e inspirá-los verdadeiro arrependimento, sua esperança será transformada em desespero, e eles dirão junto aos demais ímpios: "Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não brilhou sobre nós, para nós nãsceu o Sol. Cansamo-nos nas veredas da iniqüidade e perdição, percorremos desertos intransitáveis, mas não conhecemos o caminho do Senhor! Que proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviram riqueza e arrogância? Tudo isso se passou como uma sombra" (Sb 5, 6-9a).

Portanto, deixemos o sábio nos corrigir, se queremos viver e morrer bem, nós não devemos permanecer no pecado, mesmo que por um momento, nem nos permitir enganar por um vã confiança, que ainda teremos muitos anos para viver e e poderemos utilizar estes anos para ganhar nosso perdão.
 
-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)

-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não ter encontrado disponível em Português. Minha fonte está disponível aqui.

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