16 de out. de 2010

O erro dos ricos deste mundo

Além de tudo que já foi ditto, eu devo acrescentar uma refutação a certo erro muito prevalente entre os ricos deste mundo, que muito os afasta de uma vida correta e uma boa morte. O erro consiste nisto: o rico supõe que toda riqueza que possui é absolutamente sua propriedade, se justamente adquirida; e, portanto, podem legalmente gastá-la ou disperdiçá-la e ninguém pode lhes dizer: “Por que você fez isto? Por que se vestir tão ricamente? Por que organizar festas tão suntuosas? Por que gastar tão prodigamente com teus cachorros e falcões? Por que gastar tanto em jogos e outros prazeres semelhantes”. E eles respondem: “O que é isto para ti? Não é correto eu gastar o meu dinheiro para fazer aquilo que eu desejar?”

Este erro é sem dúvida, mais grave e pernicioso: considerar que os ricos são mestres das suas propriedades com relação aos demais homens; embora, em relação a Deus, eles não sejam mestres, mas apenas administradores. Esta verdade pode ser provada com muitos argumentos: Do Senhor é a terra é o que nela existe, o mundo e seus habitantes (Sl 24, 1). E ainda: Não preciso do novilho do teu estábulo, nem dos cabritos de teus apriscos, pois minhas são todas as feras das matas; há milhares de animais nos meus montes. Conheço todos os pássaros do céu, e tudo o que se move nos campos. Se tivesse fome, não precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela contém. (Sl 50, 9-12).

E no primeiro livro de Crônicas, quando Davi ofereceu para a construção do templo três mil moedas de ouro e sete mil moedas de prata e mármore em grande abundância; e quando movidos pelo exemplo do Rei, os príncipes das tribos ofereceram cinco mil moedas de ouro, dez mil moedas de prata, dezoito mil de bronze e cem mil de ferro, então Davi disse ao Senhor: A vós, Senhor, a grandeza, o poder, a honra, a majestade e a glória, porque tudo que está no céu e na terra vos pertence. A vós, Senhor, a realeza, porque sois soberanamente elevado acima de todas as coisas. É de vós que vêm a riqueza e a glória, sois vós o Senhor de todas as coisas; é em vossa mão que residem a força e o poder. E é vossa mão que tem o poder de dar a todas as coisas grandeza e solidez. Agora, ó nosso Deus, nós vos louvamos e celebramos vosso nome glorioso. Quem sou eu, e quem é meu povo, para que possamos fazer-vos voluntariamente estas oferendas? Tudo vem de vós e não oferecemos senão o que temos recebido de vossa mão. (1Cr 29, 11-14) O testemunho de Deus pode ser acrescentado através das palavras do profeta Ageu: A prata e o ouro me pertencem - oráculo do Senhor dos exércitos (Ag 2,8). Assim falou o Senhor, para que o povo compreendesse que nada seria necessário caso o Senhor ordenasse sua construção, pois a Ele pertencem todo ouro e prata deste mundo.

Devo acrescentar dois outros testemunhos das palavras de Cristo, no Novo Testamento: Havia um homem rico que tinha um administrador. Este lhe foi denunciado de ter dissipado os seus bens. Ele chamou o administrador e lhe disse: Que é que ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, pois já não poderás administrar meus bens (Lc 16, 1-2). O “homem rico”, aqui, significa Deus, como dissemos a pouco, pois como diz o profeta Ageu, dele é o ouro e a prata. Por “administrador”entenda-se os homens ricos, como explicam os santos padres Agostinho, Ambrósio e o Venerável Beda sobre esta passagem.

Se o Evangelho, então, deve ser acreditado, todo homem rico deste mundo deve reconhecer que suas riquezas, justa ou injustamente adquiridas, não são suas: se ele as adquiriu corretamente, ele é apenas o administrador; se injustamente, ele não é nada além de um ladrão. E desde que o homem rico não é mestre de suas riquezas, por consequencia, quando acusado de uma injustiça frente a Deus, Deus pode retirá-las através da morte ou tomando-as, pois assim esta indicado nestas palavras: Presta contas da tua administração, pois já não poderás administrar meus bens. Para Deus sempre haverá meios de reduzir um rico à probreza, retirando os bens de sua custódia. Naufrágios, roubos, tempestades de granizo, pragas, muita chuva, seca e outras aflições são as muitas vozes de Deus dizendo ao rico: já não poderás administrar meus bens.

Mas, então, ao final da parábola, nosso Senhor diz: fazei amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16, 9). Ele não quer dizer que as esmolas são dadas a Ele, mas que os ricos não são ricos, propriamente falando, mas somente sombras Dele. Isto é evidente em outra passagem do Evangelho de São Lucas: Se, pois, não tiverdes sido fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? (Lc 16, 11)

O significado destas palavras é: se nas injustas riquezas ou seja, nas falsas riquezas, não tiverdes sido fiéis dando tudo liberalmente aos pobres, quem vos confiará as verdadeiras que fazem um homem realmente rico? Esta é a explicação dada por São Cipriano e Santo Agostinho.

Em outra passagem do mesmo evangelho, que pode ser considerada como um comentário sobre o administrador injusto: Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico... Até os cães iam lamber-lhe as chagas. Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. estando ele nos tormentos do inferno (Lc 16, 19-23a). Este rico era certamente um daqueles que supõe ser mestre de seu próprio dinheiro e não adminsitrador, e portanto ele imaginou não estar ofendendo a Deus quando estava vestido de púrpura e linho, e celebrava suntuosamente todos os dias, tinha seus cães e bufões. Talvez tenha dito a si mesmo: eu gasto o meu dinheiro, não ataco ninguém, eu não violo as leis de Deus, eu não blasfemo nem juro em falso, observo os dias santos, honro pai e mãe, não mato, não sou adultero, não roubo, não dou falso testemunho, não desejo a mulher do próximo, nào faço nada disto. Mas se é este caso, por que ele foi para o Inferno, ser atormentado no fogo? Devemos reconhecer que aqueles enganados, que supõe ser mestres absolutos de seu dinheiro, devem responder por muitos graves pecados, que as Santas Escrituras deveriam mencionar. Mas como nada mais é dito, entendemos que os adornos supérfluos e caros, seus magníficos banquetes, a multidão de servos e cães, enquanto não possuía nenhuma compaixão pelo pobre é causa suficiente para condená-lo aos tormentos eternos.

Portanto, podemos estabelecer uma regra clara para viver e morrer bem, e sempre considerar que iremos prestar contas a Deus de nosso palácios luxuosos, jardins, muitos servos, esplendor nas vestimentas, banquetes, gastos desnecessários, que afetam a multidão de pobres e doentes, que procuram pelos nossos superfluos, que chorar a Deus, e no dia do julgamento não pararão de clamar contra todos homens ricos, até que sejam condenados às chamas eternas.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, capítulo V, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)

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