31 de jan. de 2011

Sonhos de São João Bosco - O Sonho dos Corvos

Conta a Crônica de Dom Ruffino:

"Nos dia 14 de abril, (São) João Dom Bosco falou de noite com os estudantes e, ao dia seguinte, aos artesãos também, depois das orações. Relatou em tal ocasião os dois sonhos seguintes que teve, um antes e o outro depois dos Exercícios Espirituais. Assegurava o (Santo) que aqueles sonhos produziram-lhe um profundo terror.

Era a noite precedente à Dominica in Albis, e pareceu encontrar-me no balcão de minha habitação vendo como os jovens se divertiam. Quando eis aqui que vejo aparecer um enorme tecido branco que cobria todo o pátio, debaixo do qual os jovens continuavam seus jogos. Enquanto contemplava aquela cena, vejo uma grande quantidade de corvos que começaram a voar sobre o tecido, a girar por uma parte e por outra até que introduzindo-se pela extremidade do mesmo, jogaram-se sobre os moços para picar-lhes.

O espetáculo que se ofereceu a minha vista foi desolador: a uns tiravam os olhos; a outros picavam a língua, fazendo-lhe mil pedaços; a este davam bicadas na frente e a aquele outro feriam o coração. Mas, o que mais admiração causava, era como eu me dizia mesmo, que nenhum dos jovens gritava ou se lamentava, mas sim todos permaneciam indiferentes, como insensíveis, sem tentar sequer defender-se.

— Estou sonhando — me dizia a mim mesmo — ou estou acordado? É possível que estes se deixem ferir sem lançar um grito de dor?

Mas ao momento senti um clamor geral e depois vejo os feridos que começam a agitar-se, que gritam, que fazendo grande ruído se separam os uns dos outros. Maravilhado ante aquele espetáculo, comecei a pensar no significado de quanto via.

—Talvez, — pensava em mim — como é na sábado in Albis, o Senhor me quer dar a entender seu desejo de nos cobrir a todos com sua graça. Esses corvos serão os demônios que assaltam aos jovens.

Mas, qual não seria minha surpresa, ao comprovar que na segunda-feira diminuíam as Comunhões, na terça-feira muito mais e na quarta-feira de uma maneira alarmante; até o ponto de que, mediada a Missa, já tinha terminado de confessar.

Nada quis dizer, pois estando próximos os Exercícios Espirituais esperava que tudo ficaria solucionado.

Ontem, 13 de abril, tive outro sonho. Com o passar do dia tinha estado confessando; portanto, minha imaginação estava ocupada com o pensamento das almas dos jovens, como o está quase sempre. De noite fui descansar, mas não podia fazê-lo; estava meio dormido, meio acordado, até que ao fim fiquei adormecido.

Então, pareceu-me encontrar-me outra vez no balcão seguindo com a vista o recreio dos jovens.

Vi todos aqueles que tinham sido feridos pelos corvos e os observei atentamente. Mais, de repente, apareceu um personagem com um vaso cheio de um bálsamo numa mão. Ia acompanhado de outro que levava um pano. Ambos dedicaram-se a curar as feridas dos jovens, as quais, ao contato com o bálsamo, ficavam imediatamente cicatrizadas. Houve, entretanto, alguns que ao ver aqueles dois personagens aproximar-se, separaram-se deles e não quiseram ser curados. E, o que mais me desagradou, foi que os tais formavam um número bastante respeitável. Preocupei-me de escrever seu nome em uma parte de papel, pois os conhecia todos, mas enquanto o fazia despertei e encontrei-me sem o papel.

Contudo, fiz um esforço para retê-los na memória, e guarda a lembrança de quase todos. Talvez poder-me-ia esquecer de algum, mas acredito que seriam contados. Agora irei falando, pouco a pouco, com os interessados e procurarei induzir-lhes a sanar de suas feridas.

Dêem a importância que queiram a este sonho; o que lhes posso assegurar é que se lhe emprestarem plena fé não causarão prejuízo algum a suas almas.

Recomendo-lhes encarecidamente que estas coisas não saiam do Oratório. Eu o conto todo, mas desejo que tudo permaneça em casa.

-- Há um blog exclusivamente com relatos dos sonhos. São João Bosco recebia em sonhos informações, prenúncios, avisos e comunicações providenciais. Com relação aos sonhos de São João Bosco, o Papa Pio IX, ordenou-lhe que consignasse tudo por escrito, em seu sentido literal e de forma detalhada, para maior estímulo dos filhos da Congregação Salesiana.


Educar com amor

Antes de mais nada, se queremos ser amigos do verdadeiro bem dos nossos alunos e levá-los ao cumprimento de seus deveres, é indispensável jamais vos esquecerdes de que representais os pais desta querida juventude. Ela sempre foi o terno objeto dos meus trabalhos, dos meus estudos e do meu ministério sacerdotal; não apenas meu, mas da cara congregação salesiana.

Ordenado sacerdote, São João Bosco consagrou todas as
suas energias à educação da juventude, para formá-la na
prática cristã e exercício de uma profissão. Foi o fundador
dos Salesianos e outras congregrações.
Quantas vezes, meus filhinhos, no decurso de toda a minha vida, tive de me convencer desta grande verdade! É mais fácil encolerizar-se do que ter paciência, ameaçar uma criança do que persuadi-la. Direi mesmo que é mais cômodo, para nossa impaciência e nossa soberba, castigar os que resistem do que corrigi-los, suportando os com firmeza e suavidade.

Tomai cuidado para que ninguém vos julgue dominados por um ímpeto de violenta indignação. É muito difícil, quando se castiga, conservar aquela calma tão necessária para afastar qualquer dúvida de que agimos para demonstrar a nossa autoridade ou descarregar o próprio mal humor.

Consideremos como nossos filhos aqueles sobre os quais exercemos certo poder. Ponhamo-nos a seu seviço, assim como Jesus, que veio para obedecer e não para dar ordens; envergonhemo-nos de tudo o que nos possa dar aparência de dominadores; e se algum domínio exercemos sobre eles, é para melhor servirmos.

Assim procedia Jesus com seus apóstolos; tolerava-os na sua ignorância e rudeza, e até mesmo na sua pouca fidelidade. A afeição e a familiaridade com que tratava os pecadores eram tais que em alguns causava espanto, em outros escândalo, mas em muitos infundia a esperança de receber o perdão de Deus. Por isso nos ordenou que aprendêssemos dele a ser mansos e humildes de coração.

Uma vez que são nossos filhos, afastemos toda cólera quando devemos corrigir-lhes as faltas ou, pelo menos, a moderemos de tal modo que pareça totalmente dominada.

Nada de agitação de ânimo, nada de desprezo no olhar, nada de injúrias nos lábios; então sereis verdadeiros pais se conseguirem uma verdadeira correção.

Em determinados momentos muito graves, vale mais uma recomendação a Deus, um ato de humildade perante ele, do que uma tempestade de palavras que só fazem mal a quem as ouve e não e não tem proveito algum para quem as merece.

-- Das Cartas de São João Bosco, presbítero (século XIX)

30 de jan. de 2011

O Sacramento da Extrema Unção - parte 1

Agora resta apenas falar do último sacramento, a Extrema Unção. Deste podem ser derivadas muitas lições úteis, não apenas para nossa última hora, mas para todo curso da nossa vida, uma vez que neste sacramento são ungidas as partes do corpo nas quais os cinco sentidos residem, e ao ungir cada uma delas é dito: "Que o Senhor perdoe todos os pecados que tiveres cometido pela visão (ou audição, etc...)". Por aí vemos que os cinco sentidos são cinco portas abertas para todo tipo de pecado penetrar em nossa alma. Se pudermos cuidadosamente guardar estas portas, evitaremos uma multidão de pecados, e estaremos vivendo de maneira justa, e também morreremos de maneira justa.

Agora faleremos rapidamente sobre como guardar estas cinco portas. Que os olhos são uma porta contra os pecados da castidade, nosso Salvador nos ensina quando diz: Eu, porém, vos digo: todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração. Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros, a que o teu corpo todo seja lançado na geena (Mt 5,28-29). Sabemos que um homem velho ao ver Susana nua, foi imediatamente inflamado com maus desejos de luxúria e, em consequencia, teve uma morte miserável. Também sabemos que Davi, um amigo especial para Deus, ao ver Bersabéia tomando banho, caiu em adultério, e daí assassinato e outros inumeráveis pecados.
O Rei Davi olhando a nudez de Bersabéia.

A razão convence-nos desta verdade; a beleza das mulheres compele, de certa maneira, um homem a amar uma mulher; e a beleza de um homem compele a mulher a amá-lo; e este amor não descansa enquanto não se transformar em algo carnal, do qual deriva a concupisciência e o pecado original. Este mal o apóstolo deplora, quando diz: sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte? (Rm 7,23-24).

Qual o remédio contra tão grave tentação? O remédio é rápido e fácil, com a assistência de Deus, se desejar fazer uso dele. Santo Agostinho menciona-o numa epístola aos monjes: "se teus olhos se fixarem em alguém, fixe-os no nada". Um simples olhar é quase impossível de evitar, mas ele não pode atingir o coração, exceto se ele continuar fixo no objeto. Portanto, se por eventualidade colocarmos os olhos sobre uma, e então movermos o olhar rapidamente, não haverá perigo para nós; pois, como observa Santo Agostinho, não é num instante, mas no contemplar uma mulher, que reside o perigo. Jó diz: Eu havia feito um pacto com meus olhos: não desejaria olhar nunca para uma virgem (Jó 31,1). Ele não diz: "eu fiz um pacto de não olhar uma mulher" mas sim "não desejar olhar; ou seja, eu não olharei muito tempo para uma virgem, por tanto tempo que a luxúria invada meu coração, eu comece a pensar na sua beleza, e gradualmente a desejar falar com ela, e então abraçá-la. Ele então dá a melhor razão que um homem santo pode dar: Que parte me daria Deus lá do alto, que sorte o Todo-poderoso me enviaria dos céus? (Jó 31,2). Como se ele dissesse: Deus é minha herança e felicidade, meu maior bem, que nada mais excelente pode alguém imaginar; mas Deus ama somente a caridade e a justiça. Tem este mesmo propósito as palavras de Nosso Senhor: Se teu olho te leva ao pecado, arranca-o e lança-o longe de ti (Mt 18,9). Ou seja, utiliza-o como se não fosse teu e acostume seu olhos a evitar objetos  que te levem a pecar, como se tu fosse cego. Agora, aqueles que forem desde a juventude cuidadosos a este respeito, não encontrarão dificuldade em evitar outros vícios; mas quem não for atento, terá dificuldade; embora pela graça de Deus, Ele possa transformar nossa vida e evitarmos os maiores perigos.

Talvez alguém pergunte: por que Deus criou homens e mulheres tão belos, se ele não deseja que os olhemos e admiremos? A resposta é simples: Deus criou o homem e mulher para o casamento, como Ele falou desde o princípio: Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada (Gn 2,18). O homem não requer a ajuda da mulher, exceto para conceber e criar as crianças, como já demonstramos a partir das palavras de Santo Agostinho. Mas um homem e sua esposa não concordariam facilmente, nem estariam dispostos a viver juntos, se não houver uma certa beleza a atrair e iniciar o amor. A mulher foi feita bela para amar seu marido, ela não pode ser amada de forma carnal por outros; como diz a lei: não cobiçarás a mulher do teu próximo (Ex 20,18); e aos maridos, o apóstolo fala: Maridos, amai as vossas mulheres (Ef 5,25).

Há muitas coisas boas e bonitas que podem ser desejadas, mas não por todas as pessoas. Carne e vinho são boas para a saude, mas nem sempre são adequadas para os doentes. Da mesma maneira, após a ressurreição, a beleza de um homem e uma mulher podem ser admiradas por nós, desde que não tenhamos pensamentos concupiscientes. Ninguém ficaria surpreso de ser permitido admirar a beleza do Sol, Lua, estrelas e flores, desde que não tenha pensamentos indevidos. Da mesma forma, não é permitido ter prazer olhando homens e mulheres bonitas, por que a visão pode aumentar ou nutrir pensamentos carnais indevidos.


-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)

-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português. O texto em inglês está disponível aqui.

-- como o capítulo é bastante longo, e a tradução demanda tempo, estou publicando a primeira parte enquanto trabalho no restante do texto.

27 de jan. de 2011

Testamento Espiritual de Santa Ângela Meríci

Minhas queridas Madres e Irmãs em Cristo Jesus. Antes de tudo, com o auxílio de Deus, empregai todo esforço e diligência por deixar nascer em vós a boa resolução de serdes guiadas unicamente pelo amor de Deus e pelo zelo da salvação do próximo, ao assumirdes o cuidado e o governo da Companhia.

Somente assim, fundadas e arraigadas nesta dupla caridade, vosso cuidado e governo produzirão frutos bons e salutares, pois nosso Salvador declarou: Uma árvore boa não pode produzir frutos maus (Mt 7,18).

A árvore boa, ou seja, o coração bom, o espírito informado pela caridade, só pode praticar obras boas e santas. Por isso dizia Santo Agostinho: "Ama e faze o que queres", isto é, deixa-te dominar pelo amor e pela caridade, e depois faze o que queres; é como se dissesse claramente: "A caridade não pode pecar".

As mães, segundo a natureza, mesmo que tenham mil filhos, trazem a todos e cada um gravados no coração e nunca se esquecem de nenhum deles, pela força do veradeiro amor que lhes têm. Até mesmo parece que quanto mais filhos têm, mais cesce o amor e cuidado que dedicam a cada um. Com muita razão, as mães, segundo o espírito podem e devem proceder do mesmo modo, porque o amor espiritual é mais forte do que aquele dos laços de sangue.

Santa Ângela Merici (1470-1540) fundou
uma congregação feminina destinada à
formação cristã de meninas pobres.
Por conseguinte, minhas queridas Madres, se amais estas vossas filhas com viva e sincera caridade, é impossível que não as tenhais gravadas, todas e cada uma, em vossa memória e coração.

Peço-vos ainda que procureis orientá-las com amor, modéstia e caridade, e não com soberba e rispidez. Importa em tudo que sejais sempre agradáveis, de acordo com o que disse Nosso Senhor: Aprendei de mim, que sou manso de coração (Mt 11,29), imitando a Deus, de quem lemos: Tudo dispôs com suavidade (Sb 8,1). E Jesus torna a dizer: O meu jugo é suave e o meu fardo é leve (Mt 11,30).

Também deveis vos esforçar para tratar a todas com a maior delicadeza possível, evitando a todo custo jamais obter pela força nada do que ordenais. Pois Deus deu a cada um a liberdade e não força ninguém, mas apenas prpõe, chama e aconselha. As vezes, no entanto, será preciso agir com severidade; contudo, que isso se faça no tempo e lugar oportuno, conforme a condição e as necessidades das pessoas. Mas só devemos ser levados a isto pela caridade e pelo zelo das almas.

-- Do Testamento Espiritual de Santa Ângela Meríci, virgem (século XVI) 

26 de jan. de 2011

São Paulo combateu o bom combate

Na estreiteza do cárcere, Paulo parecia habitar no céu. Recebia os açoites e feridas com mais alegria do que outros recebem coroas de triumfo; e não apreciava menos as dores que os prêmios, porque considerava estas mesmas dores como prêmios que desejava, e até as chamava de graças. Considerai com atenção o significado disto: prêmio, para ele, era partir, para estar com Cristo (Fl 1,23), ao passo que viver na carne significava o combate. Mas, por causa de Cristo, sobrepunha ao desejo do prêmio a vontade de prosseguir o combate, pois considerava ser isto mais necessário.

Estar longe de Cristo representava para ele o combate e o sofrimento, mais ainda, o máximo combate e a mais intensa dor. Pelo contrário, estar com Cristo era um prêmio único. Paulo, porém, por amor de Cristo, prefere o combate ao prêmio.


O Martírio de São Paulo, por Tintoretto

Talvez algum de vós afirme: Mas ele sempre dizia que tudo lhe era suave por amor de Cristo! Isso também eu afirmo, pois as coisas que são para nós causa de tristeza eram para ele enorme prazer. E por que me refiro aos perigos e tribulações que sofreu? Na verdade, seu profundo desgosto o levava a dizer: Quem é fraco, que eu também não seja fraco? Quem é escandalizado, que eu também não fique ardendo de indignação? (2Cor 11,29).

Rogo-vos, pois, que não vos limiteis a admirar este tão ilustre exemplo de virtude, mas imitai-o. Só assim poderemos ser participantes da sua glória. 

E se algum de vós se admira por eu dizer que quem imita os méritos de Paulo participará da sua recompensa, ouça o que ele mesmo afirma: Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé. Agora está reservada par mim a coroa de justiça, que o Senhor justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas a todos que esperam com amor a sua manifestação gloriosa (2Tm 4,7-8).

Por conseguinte, já que é oferecida a todos a mesma coroa de glória, esforcemo-nos todos por ser dignos dos bens prometidos.

Não devemos considerar em Paulo apenas a grandeza e excelência das virtudes, a prontidão de espírito e o propósito firme, pelos quais mereceu tão grande graça; mas pensemos também que a sua natureza era em tudo igual à nossa; e assim, também a nós, as coisas que são muito difíceis parecerão fáceis e leves. Suportando-as valorosamente neste breve espaço de tempo em que vivemos, ganharemos aquela coroa incorruptível e imortal, pela graça e misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo. A ele a glória e o poder, aogra e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

-- Das Homílias sobre São Paulo, de São João Crisóstomo, bispo (século IV)

25 de jan. de 2011

São Paulo tudo suportou

O que é o homem, quão grande é a dignidade da nossa natureza e de quanta virtude é capaz a criatura humana, Paulo o mostrou mais do que qualquer outro. Cada dia ele subia mais alto e aparecia mais ardente, cada dia lutava com energia sempre nova contra os perigos que lhe surgiam pela frente, de acordo com o que ele próprio afirmava: Esqueço-me do que já passou e avanço para as coisas que estão à minha frente (Fl 3,13). Sentindo a morte já iminente, incitava os outros a comungarem da sua alegria, dizendo: Alegrai-vos e congratulai-vos comigo (Fl 2,18). Frente aos perigos, às injúrias e aos insultos, igualmente se alegra, e escreve aos Coríntios: Sinto complacência nas minhas enfermidades, nos ultrajes, nas perseguições (2Cor 12,10); porque sendo estas, segundo afirmava as armas da justiça, mostrava que disto lhe vinha um grande proveito.

No meio das insídias dos inimigos, conquistava contínuas vitórias, triunfando de todos os seus assaltos. E, em todo o lado, sofrendo pancadas, injúrias e maldições, como se fosse conduzido em cortejo triunfal, cumulado de troféus, nelas se gloriava e dava graças a Deus, dizendo: Sejam dadas graças a Deus, que sempre triunfa em nós (2Cor 2,14). Avançava ao encontro da humilhação e das ofensas que tinha de suportar por causa da pregação, com mais entusiasmo do que o que pomos nós em alcançar o prazer das honras; punha mais empenho na morte do que nós na vida; ansiava mais pela pobreza do que nós pelas riquezas; e desejava sempre mais o trabalho sem descanso do que nós o descanso depois do trabalho. Uma única coisa o assustava e lhe metia medo: ofender a Deus; e uma única coisa desejava: agradar sempre a Deus.

Só se alegrava no amor de Cristo, que era para ele o maior de todos os bens; com isto considerava-se o mais feliz de todos os homens; sem isto para nada lhe servia a amizade dos senhores e dos poderosos. Preferia ser o último com este amor, isto é, ser do número dos réprobos, do que encontrar-se no meio dos homens famosos pela consideração e pela honra, mas privado do amor de Cristo.

Para ele, o maior e único tormento era separar-se deste amor; esta era a sua geena, o seu único castigo, este o infinito e intolerável suplício.

Gozar do amor de Cristo era para ele a vida, o mundo, o anjo, o presente, o futuro, o reino, a promessa, enfim, todos os bens; e fora disto, em nada punha tristeza ou alegria. De tudo o que se pode ter neste mundo, nada lhe era agradável ou desagradável. Desprezava todas as coisas que admiramos, como se despreza a erva apodrecida. Para ele, tanto os tiranos como as multidões enfurecidas eram como mosquitos.

Considerava como jogos de crianças os mil suplícios, os tormentos e a própria morte, contanto que pudesse sofrer alguma coisa por Cristo.
-- Das Homilias de São João Crisóstomo, bispo.

21 de jan. de 2011

A Queda do Homem


Os homens poderiam continuar para sempre na bem aventurada e única verdadeira vida dos santos no paraíso. Como a vontade do homem poderia, porém, voltar-se para vários caminhos, Deus assegurou-lhes esta graça que lhes havia concedido condicionando-a desde o início a duas coisas. Se eles guardassem a graça e retivessem o amor de sua inocência original, então a vida do paraíso seria sua, sem tristeza, dor ou cuidados, e após ela haveria a certeza da imortalidade no céu. Mas se eles se desviassem do caminho e se tornassem vis, desprezando seu direito natal à beleza, então viriam a cair sob a lei natural da morte e viveriam não mais no paraíso, mas, morrendo fora dele, continuariam na morte e na corrupção. Isto é o que a Sagrada Escritura nos ensina, ao proclamar a ordem de Deus: podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente. (Gen. 2, 16-17). Certamente havereis de morrer, isto é, não apenas morrereis, mas permanecereis no estado de morte e corrupção.

Estarás talvez a divagar por que motivo estamos discutindo a origem do homem se nos propusemos a falar sobre o Verbo que se fêz homem. O primeiro assunto é de importância para o último por este motivo: foi justamente o nosso lamentável estado que fêz com que o Verbo se rebaixasse, foi nossa transgressão que tocou o seu amor por nós. Pois Deus havia feito o homem daquela maneira e havia querido que ele permanecesse na incorrupção.


A queda e a expulsão do homem, Capela Sistina

Os homens, porém, tendo voltado da contemplação de Deus para o mal que eles próprios inventaram, caíram inevitavelmente sob a lei da morte. Em vez de permanecerem no estado em que Deus os havia criado, entraram em um processo de uma completa degeneração e a morte os tomou inteiramente sob o seu domínio. Pois a transgressão do mandamento os estava fazendo retornarem ao que eles eram segundo a sua natureza, e assim como no início eles haviam sido trazidos ao ser a partir da não existência, passaram a trilhar, pela degeneração, o caminho de volta para a não existência. A presença e o amor do Verbo os havia chamado ao ser; inevitavelmente, então, quando eles perderam o conhecimento de Deus, juntamente com este eles perderam também a sua existência. Pois é somente Deus que existe, o mal é o não-ser, a negação e a antítese do bem. Pela natureza, de fato, o homem é mortal, já que ele foi feito do nada; mas ele traz também consigo a Semelhança dAquele Que É, e se ele preservar esta Semelhança através da contemplação constante, então sua natureza seria despojada de seu poder e ele permaneceria indegenerescente. De fato, é isto o que vemos escrito no Livro da Sabedoria: A observância de Suas Leis é a garantia da imortalidade (Sb 6, 18). E, incorrompido, o homem seria como Deus, conforme o diz a própria Escritura, onde afirma: Eu disse: `Sois deuses, e todos filhos do Altíssimo. Mas vós como homens morrereis, caireis como um príncipe qualquer' (Sl 81, 6).

Esta, portanto, era a condição do homem. Deus não apenas o havia feito do nada, mas também lhe tinha graciosamente concedido a Sua própria vida pela graça do Verbo. Os homens, porém, voltando-se das coisas eternas para as coisas corruptíveis, pelo conselho do demônio, se tornaram a causa de sua própria degeneração para a morte, porque, conforme dissemos antes, embora eles fossem por natureza sujeitos à corrupção, a graça de sua união com o Verbo os tornava capazes de escapar na lei natural, desde que eles retivessem a beleza da inocência com a qual haviam sido criados. Isto é o mesmo que dizer que a presença do Verbo junto a eles lhes fazia de escudo, protegendo-os até mesmo da degeneração natural, conforme também o diz o Livro da Sabedoria:  Deus criou o homem para a imortalidade e como uma imagem de sua própria eternidade; mas pela inveja do demônio entrou no mundo a morte (Sb 2, 23).

Quando isto aconteceu os homens começaram a morrer e a corrupção correu solta entre eles, tomou poder sobre os mesmos até mais do que seria de se esperar pela natureza, sendo esta a penalidade sobre a qual Deus os havia avisado prevenindo-os acerca da transgressão do mandamento. Na verdade, em seus pecados os homens superaram todos os limites. No início inventaram a maldade; envolvendo-se desta maneira na morte e na corrupção, passaram a caminhar gradualmente de mal a pior, não se detendo em nenhum grau de malícia, mas, como se estivessem dominados por uma insaciável apetite, continuamente inventando novo tipos de pecados. Os adultérios e os roubos se espalharam por todos os lugares, os assassinatos e as rapinas encheram a terra, a lei foi desrespeitada para dar lugar à corrupção e à injustiça, todos os tipos de iniqüidades foram praticados por todos, tanto individualmente como em comum. Cidades fizeram guerra contra cidades, nações se levantaram contra nações, e toda a terra se viu repleta de divisões e lutas, enquanto cada um porfiava em superar o outro em malícia. Até os crimes contrários à natureza não foram desconhecidos, conforme no-lo diz o Apóstolo mártir de Cristo: Suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza; e os homens também, deixando o uso natural da mulher, arderam nos seus desejos um para com o outro, cometendo atos vergonhosos com o seu próprio sexo, e recebendo em suas próprias pessoas a recompensa devida pela sua perversidade (Rom. 1, 26-27).

-- Parte do texto A criação e a Queda de Santo Atanásio, bispo (século IV)


A Criação de Deus

Em relação à criação do Universo e à criação de todas as coisas têm havido uma diversidade de opiniões, e cada pessoa tem proposto a teoria que bem lhe apraz. Por exemplo, alguns dizem que todas as coisas são auto originadas e, por assim dizer, totalmente ao acaso. Entre estes estão os Epicúreos, os quais negam terminantemente que haja alguma Inteligência anterior ao Universo.

Outros fazem seu o ponto de vista expressado por Platão, aquele gigante entre os Gregos. Ele disse que Deus fêz todas as coisas da matéria pre-existente e incriada, assim como o carpinteiro faz as suas obras da madeira que já existe. Mas os que sustentam esta opinião não se dão conta que negar que Deus seja Ele próprio a causa da matéria significa atribuir-Lhe uma limitação, assim como é indubitavelmente uma limitação por parte do carpinteiro que ele não possa fazer nada a não ser que lhe esteja disponível a madeira.
A Criação de Davi, Capela Sistina

Então, finalmente, temos a teoria dos Gnósticos, que inventaram para si mesmos um Artífice de todas as coisas, outro que não o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Estes simplesmente fecham os seus olhos para o sentido óbvio das Sagradas Escrituras.

Tais são as noções que os homens têm elaborado. Mas pelo divino ensinamento da fé cristã nós sabemos que, pelo fato de haver uma Inteligência anterior ao Universo, este não se originou a si mesmo; por ser Deus infinito, e não finito, o Universo não foi feito de uma matéria pré-existente, mas do nada e da absoluta e total não existência, de onde Deus o trouxe ao ser através do Verbo. Ele diz, neste sentido, no Gênesis: No início Deus criou o Céu e a Terra (Gen. 1,1). e novamente, através daquele valiosíssimo livro ao qual chamamos "O Pastor": "Crêde primeiro e antes de tudo o mais que há apenas um só Deus o qual criou e ordenou a todas as coisas trazendo-as da não existência ao ser".

Paulo também indica a mesma coisa quando nos diz: Pela fé conhecemos que o mundo foi formado pela Palavra de Deus, de tal modo que as coisas visíveis provieram das coisas invisíveis (Heb. 11, 3).

Pois Deus é bom, ou antes, Ele é a fonte de toda a bondade, e é impossível por isso que Ele deva algo a alguém. Não devendo a existência a ninguém, Ele criou a todas as coisas do nada mediante seu próprio Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, e de todas as suas criaturas terrenas ele reservou um cuidado especial para a raça humana. A eles que, como animais, eram essencialmente impermanentes, Deus concedeu uma graça de que as demais criaturas estavam privadas, isto é, a marca de sua própria Imagem, uma participação no ser racional do próprio Verbo, de tal modo que, refletindo-O, eles mesmos se tornariam racionais expressando a Inteligência de Deus tanto quanto o próprio Verbo, embora em grau limitado. 

-- Parte to texto A criação e a Queda de Santo Atanásio, bispo (século IV)

19 de jan. de 2011

A vocação à Santidade

Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga (Mt 16,24). Parece dura e pesada a ordem do Senhor: quem quiser segui-lo, tem que renunciar a si mesmo. Mas não é duro nem pesado quem ordena, pois ele próprio nos ajuda a cumprir seu preceito.

Como é verdade o que lhe dizem no salmo: Seguindo as palavras de vossos lábios, percorri duros caminhos (Sl 16,4), também é verade o que ele nos disse: O meu jugo é suave e meu fardo é leve (Mt 11,30). A caridade torna leve tudo quanto é duro no preceito.

Que significa: Tome a sua cruz? Quer dizer: suporte tudo o que custa e então me siga. Na verade, quem começar a seguir meus exemplos e preceitos, encontrará nuitos que o critiquem, que o impeçam, que tentem dissuádi-lo, mesmo entre os que parecem discípulos de Cristo. Andavam com Cristo os que proibiam os cegos de clamar por ele. Tu, portanto, no meio das ameaças, de carinhos ou proibições, sejam quias forem, se quiseres seguir a Cristo, transforma tudo em cruz: suporta, carrega e não sucumba!


Simão de Cirene carrega a cruz de Cristo

Estamos num mundo santo, bom, reconciliado, salvo, ou melhor, em vias de salvação, mas desde já salvo em esperança - pois já fomos salvos, mas na esperança (Rm 8,24). Com efeito, neste mundo, que é a Igreja, seguidora fiel de Cristo, disse ele a todos: Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo (Mt 16,24).

Esta palavra não deve ser ouvida como dirigida apenas às virgens e não às esposas; nem só para as viúvas e não para as casadas; nem só para os  monges e não para os maridos; nem só para os clérigos e não para os leigos. Pois toda a Igreja, todo o corpo, todos os seus membros, diferentes e distribuídos segundo suas próprias tarefas, devem seguir o Cristo.

Siga-o toda a Igreja que é uma só, siga-o a pomba, siga-o a esposa, redimida e dotada pelo sangue do Esposo. Nela encontra lugar tanto a integridade das virgens como a castidade das viúvas e o pudor dos casais.

Estes membros, que nela encontram seu lugar, sigam o Cristo, cada um segundo a sua vocação, posição ou medida. Renunciem a si mesmos, isto é, não se vangloriem; tomem a sua cruz, quer dizer, suportem no mundo, por amor de Cristo, tudo o que lançarem contra eles. Amem o único que ilude, o único que não é enganado nem engana; amem-no, porque é verdade aquilo que promete. Como suas promessas tardam, a fé vacila. Mas sê constante, perseverante, suporta a demora e terás tomado a cruz.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

17 de jan. de 2011

O Sacramento do Matrimônio

O sacramento do Matrimônio é o próximo, ele é uma instituição composta de duas: uma, como um contrato civil por lei natural; outro, como um sacramento pela lei dos Evangelhos. De ambas deverei falar brevemente, não em todos aspectos, mas somente naquilo que interessa para viver de maneira justa, e, enfim, morrer de maneira correta. A primeira instituição foi feita por Deus no paraíso, através destas palavras de Deus, não é bom que o homem esteja só (Gn 2,18), não pode ser propriamente compreendida, a menos que em relação com algum modo de propagar a raça humana.

As bodas de Cana.


Santo Agustinho observa que de nenhuma maneira um homem necessita de uma mulher, exceto para conceber e educar crianças; para todas as outras coisas, o homem precisa de mais ajuda se companheiros fiéis do que mulheres. No entanto, logo após da mulher ser formada, inspirado por Deus, Adão exclamou: o homem deixe o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher (Gn 2,24); e estas palavras do Evangelho segundo São Mateus: não lestes que o Criador, no começo, fez o homem e a mulher e disse: Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne? Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu. (Mt 9, 4-6). Nosso Senhor atribui estas palavras à Deus, por que Adão falou não como se fossem vindas dele mesmo, mas por divina inspiração. Esta foi a primeira instituição do Matrimônio.

Outra instituição, ou melhor, exaltação do matrimônio à dignidade de sacramento, é encontrada na Epístola de Sào Paulo aos Efésios: por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne. Este mistério é grande, quero dizer, com referência a Cristo e à Igreja (Ef 5,31-32). Que o matrimônio é um verdadeiro sacramento, Santo Agostinho prova no livro O Bom Marido: "Nos nossos casamentos, mais importante é a santidade do sacramento que a fecundidade.", e no capítulo seguinte, repete "em todas as nações e povos, a vantagem do casamento consiste em ser o meio apropriado para nascer crianças na fé e castidade, e, no que diz respeito ao povo de Deus, nisto também consiste a santidade do casamento". E, em outro livro, afirma "na cidade do Senhor e em seu Santo Monte, isto é, na sua Igreja, casamento não é apenas uma união, é também considerado um sacramento". Mas neste ponto não é necessário dizer mais. Trata-se do que explicarei, como homens e mulheres unidos em matrimônio devem viver, e como podem morrer um boa morte.

Três bençãos são frutos do matrimônio, das quais podemos fazer bom uso: crianças, fidelidade e a graça do sacramento. A geração de filhos, junto com uma educação apropriada, deve ser mantida em vista, se queremos fazer bom uso do casamento; ao contrário, comete grave pecado, quem busca os prazeres da carne. Onan, um dos filhos do patriarca Juda, é severamente advertido nas Escrituras por não se lembrar disto, por ter abusado, não utilizado, o sagrado sacramento (cf. Gn 38).

Mas algumas vezes pode ocorrer que pessoas casadas sintam-se oprimidas pelo número de seus filhos, pois pela pobreza não podem facilmentemente criar, há um remédio agradável a Deus: por consenso mútuo separar-se de seu leito matrimonial e gastar seus dias em orações e jejuns. Pois isto é agradável a Deus, pessoas casadas envelhecerem na virgindade, seguindo o exemplo de Nossa Senhora e São José. Porque desagradaria a Deus se pessoas casadas não vivessem reunidas como homem e mulher, por consenso mútuo, para que possam dispender suas vidas em orações e jejuns?

De novo: é mais grave pecado para pessoas unidas em matrimônio e abençoadas com filhos, neglicenciar a piedosa educação ou aquelas coisas necessárias à sua vida. Neste ponto, nós temos muitos exemplos, tanto na história sagrada quanto profana. Mas como desejo ser conciso, satisfaço-me somente com o livro dos Reis: naquele dia cumprirei contra Heli todas as ameaças que pronunciei contra a sua casa. Começarei e irei até o fim. Anunciei-lhe que eu condenaria para sempre a sua família, por causa dos crimes que ele sabia que os seus filhos cometiam, e não os corrigiu. Por isso jurei à casa de Heli que a sua culpa jamais seria expiada, nem com sacrifícios nem com oblações. (1Sm 3,12-14). Estas ameaças Deus rapidamente cumpriu: os filhos de Heli foram mortos em batalha e Heli caiu de seu trono, quebrou o pescoço e morreu miseravelmente. Portanto, se Heli, em outros assuntos um homem justo e juiz correto de seu povo, morreu com seus filhos por que não quis educá-los, e não os castigou quando se tornaram ímpios; o que ocorrerá com aqueles que, não apenas não educam se filhos adequadamente, mas também através de seu mau exemplo encoraja-os a pecarem? Verdadeiramente, ele não podem esperar nada além de uma morte horrível, para si mesmos e seus filhos, exceto se arrependam a tempo e façam penitência adequada.

Outra benção, a mais nobre, é a graça do sacramento, que Deus mesmo coloca no coração de pessoas piedosas, desde que o casamento tenha sido devidamente celebrado, e os noivos estejam bem dispostos e preparados. Esta graça, para não mencionar outras bençãos que o acompanham, ajuda de uma maneira maravilhosa a produzir o amor e paz entre pessoas casadas, mesmo que as diferentes personalidades e hábitos de cada um sejam capazes de produzir discórdia. Mas, acima de todas as coisas, imitar a união de Cristo com a Igreja faz o casamento mais suave e abençoado. Disto fala o Apóstolo na Epístola aos Efésios: maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível (Ef 5, 25-27).  

O apóstolo também adverte às mulheres, dizendo: as mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos (Ef 5,22-24). O apóstolo conclui: o que importa é que cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo, e a mulher respeite o seu marido (Ef 5, 25-27). Se estas palavras do Apóstolo forem diligentemente consideradas, os casamentos serão abençoados na terra e nos céus.

Agora explicaremos brevemente o significado das palavras de São Paulo. Primeiro, ele exorta aos maridos que amem suas esposas, como Cristo atem ama sua Igreja . Cristo certamente ama Sua igreja com o amor da amizade, não com o amor da concupiscência; ele procura o bem da sua Igreja, a segurança de sua Igreja, e para seu próprio interesse. Portanto, não ama sua esposa que conta com sua beleza, deixa-se cativar pelo seu amor a ela, ou considera suas riquezas e herança, pois ama a outras coisas, não sua esposa, desejando satisfazer sua concupiscência pela carne ou por outros objetos, o que chama-se avareza. Assim Salomão, sábio no início do reinado, mas ímpio ao final, amou suas esposas e comcubinas, não com o amor da amizade, mas com concupiscência; desejando não o benefício delas, mas satisfazer-se na carne, ficando cego, ele não hesitou em sacrificar a deuses estrangeiros, para que não perdesse a nenhuma de suas amantes.

Que Cristo em seu casamento coma Igreja, pensa não em si mesmo, seu prazer ou usofruto, mas no bem da sua esposa, é evidente nestas palavras: Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra (Ef 5,26-27). Isto é perfeita e verdadeira caridade, entregar-se a punição e sofrimento, em favor do bem-estar eterno da Igreja sua esposa. Mas não apenas Ele amou sua Igreja com amor perfeito, sem concupiscência, não apenas por um tempo, mas com amor perpétuo

Como nunca abandonou sua natureza humana, Ele reuniu sua esposa consigo, em um casamento indissolúvel. Amo-te com eterno amor, e por isso a ti estendi o meu favor (Jr 31,3), diz o Profeta Jeremias. Por esta razão o casamento é indissolúvel para os cristãos, por que é um casamento que simboliza a união de Cristo com sua Igreja; ainda que o casamento entre pagãos e judeus possa ser dissolvida em certas circunstâncias.
O mesmo apóstolo ensina que as mulheres devem estas sujeitas aos seus maridos, como a Igreja está sujeita a Cristo. Jezebel não observou este preceito, pois ela deseja comandar seu marido, ela perdeu a ambos, juntos com seus filhos (1Re 16 - 1Re22; 2Re 9-10).

E ainda que não hajam muitas mulheres que desejem liderar seus maridos, mas talvez a culpa seja dos homens que não sabem manter a sua superioridade. Sara, mulher de Abraão, estava sujeita seu marido, ela assim dizia sobre ele: velha como sou, ... o meu senhor também é já entrado em anos (Gn 18, 12). E esta obediência de Sara, São Pedro em sua primeira Epístola aprecia: era assim que outrora se ornavam as santas mulheres que esperavam em Deus; eram submissas a seus maridos, como Sara que obedecia a Abraão, chamando-o de senhor (IPe 3, 5-6). Pode soar estranho, que os santos apóstolos Pedro e Paulo continuamente exortem os maridos a amar suas esposas, e as esposas a temer seus maridos; mas se elas devem ser sujeitas a eles, não devem elas também amá-los? Uma esposa deve amar seu marido e ser amada por ele. Mas elas devem amá-los com medo e reverência, tal que seu amor não previna o medo, de outra maneira ela pode tornar-se uma tirana. Dalila enganou seu marido Sansão, embora fosse ele um homem forte, não como um homem, mas como escravo (Jz 13-16).

E no livro de Esdras é relatado que o rei, sendo cativo do amor a sua comcubina, fez ela sentar-se a sua direita, mas ela se apoderou se sua coroa e coloco-a sobre a própria cabeça e feriu o rei. Portanto, não devemos ficar surpresos que o Senhor Todo Poderoso tenha dito a primeira mulher: teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio (Gn 3,16). Ao marido é necessário ter sabedoria para amar e, ao mesmo tempo, ordenar sua esposa; admoestá-la e ensiná-la; e, se necessário, até mesmo cirrigi-la. Temos como exemplo Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho. Seu marido era um homem cruel e pagão, mas ainda assim ela mantevesse com ele piedosa e prudentemente, sempre o amou, e, ao final, converteu-o a Deus.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)
 
-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português. O texto em inglês está disponível aqui.






A Vocação de Santo Antão

Depois da morte de seus pais, tendo ficado sozinho com uma única irmã ainda pequena, Antão, que tinha uns dezoito ou vinte anos, tomou conta da casa e da irmã.

Santo Antão, fundador do monaquismo cristão 
Mal haviam passado seis meses desde o falecimento dos pais, indo um dia à igreja, como de costume, refletia consigo mesmo sobre o motivo que levara os apóstolos a abandonarem tudo para seguir o Salvador; e por qual razão aqueles homens de que se fala nos Atos dos Apóstolos vendiam suas propriedades e depositavam o preço aos pés dos apóstolos para ser distribuído entre os pobres. Ia também pensando na grande e maravilhosa esperança que lhes estava reservada nos céus. Meditando nestas coisas, entrou na igreja no exato momento em que se lia o evangelho, e ouviu o que o Senhor disse ao jovem rico: Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres. Depois vem e segue-me, e terás um tesouro no céu (Mt 19,21).
Antão considerou que a lembrança dos santos exemplos lhe tinha vindo de Deus, e que aquelas palavras eram dirigidas pessoalmente para ele. Logo que voltou da igreja, repartiu com os habitantes da aldeia as propriedades que herdara da família (possuía trezentos campos lavrados, férteis e muito aprazíveis) para que não fossem motivo de preocupação, nem para si próprio nem para a irmã. Vendeu também todos os móveis e distribuiu com os pobres a grande quantia que obtivera, reservando apenas uma pequena parte por causa da irmã.

Entrando outra vez na igreja, ouviu o Senhor dizer no evangelho: Não vos preocupeis com o dia de amanhã (Mt 6,34). Não podendo mais resistir, até aquele pouco que restara, deu-o aos pobres. Confiou a irmã a uma comunidade de virgens consagradas que conhecia e considerava fiéis, para que fosse educada no Mosteiro. Quanto a ele, a partir de então, entregou-se a uma vida de ascese e rigorosa mortificação, nas imediações de sua casa.
Trabalhava com as próprias mãos, pois ouvira a palavra da Escritura: Quem não quer trabalhar, também não deve comer (1Ts 3,10). Com uma parte do que ganhava comprava o pão que comia; o resto dava aos pobres.

Rezava continuamente, pois aprendera que é preciso rezar a sós sem cessar (1Ts 5,17). Era tão atento à leitura que nada lhe escapava do que tinha lido na Escritura; retinha tudo de tal forma que sua memória acabou por se substituir aos livros.
Todos os habitantes da aldeia e os homens honrados que tratavam com ele, vendo um homem assim, chamavam-no amigo de Deus; uns o amavam como a filho, outros como a irmão.

-- Da Vida de Santo Antão, escrita por Santo Atanásio, bispo (século IV)

13 de jan. de 2011

Servir-te-ei na pregação

Estou bem consciente, Deus Pai todo-poderoso, de ser a vós que devo consagrar a tarefa mais importante de minha vida: que todos os meus pensamentos e minhas palavras falem de vós.

O dom da palavra que me concedestes, não pode ter maior recompensa que a de vos servir na pregação, e demonstrar ao mundo que ignora ou ao herege que nega que sois Pai, isto é, Pai do Deus unigênito.

Apesar de ser esta a única manifestação da minha vontade, é preciso suplicar o auxílio de vossa misericórdia. Desfraldando as velas da nossa fé e do nosso testemunho, vinde enchê-las com o sopro do vosso Espírito, e orientai-nos no caminho da pregação que iniciamos. Pois não nos faltará aquele que prometeu: Pedi e vos será dado Procurai e achareis Batei e a porta vos será aberta (Mt 7,7).
Santo Hilário de Poitiers. 

Nós somos pobres, e por isso pedimos o que nos falta; prescrutamos com esforço obstinado as palavras de vossos profetas e apóstolos, e batemos com insistência para que se abram para nós as portas do conhecimento da verdade. Mas é somente de vós que depende dar o que se pede, estar presente, quando se procura, e abrir para quem bate.

Quando se trata de compreender as verdades que se referem a vós, vemo-nos impedidos por um certo entorpecimento preguiçoso da nossa natureza e nos sentimos limitados pela nossa inevitável ignorância e fraqueza. Mas o estudo da vossa doutrina nos dispõe para compreender as realidades divinas e a obediência da fé nos conduz a superar o nosso conhecimento natural.

Esperamos, portanto, que façais progredir o nosso tímido esforço inicial, que consolideis seu desenvolvimento crescente e o leveis à união com o espírito dos profetas e dos apóstolos. Assim compreenderemos o sentido exato de suas palavras e interpretaremos o seu veradeiro significado. 

Então proclamaremos o que eles pregaram no mistério: que vós sois o Deus eterno, o Pai do Unigênito eterno de Deus; que somente vós sois sem nascimento; e que há um só Senhor Jesus Cristo que procede de vós por nascimento eterno; não afirmamos que ele seja outro deus além de vós, mas proclamamos que foi gerado de vós que sois o úinico Deus; e professamos que ele é Deus verdadeiro, nascido de vós sois veradeiro Deus e Pai.

Dai-nos, pois, o significado autêntico das palavras, dai-nos a luz da inteligência, a perfeição da linguagem, a verdadeira fé. Tornai-nos capazes de exprimir nossa fé, ou seja, que vós sois o único Deus Pai e que há um único Senhor Jesus Cristo, segundo o que nos transmitiram os profetas e os apóstolos. E contra os hereges que negam tais afirmações, fazei que saibamos afirmar que vós sois Deus com o Filho e que proclamamos sem erro a sua divindade.

-- Do Tratado sobre a Trindade, de Santo Hilário, bispo




Músicas compostas por Santa Hildegarda de Bingen

Em um tempo que poucas mulheres escreviam, Hildegard produziu grandes trabalhos de teologia e descrições de suas visões espirituais. Quando poucas mulheres eram respeitadas, ela era consultada e conselheira de bispos, papas e reis. Começou a utilizar e organizou os conhecimentos sobre medicina natural, escrevendo tratados sobre história natural e uso medicinal de plantas, animais, árvores e padres. Ela é a primeira compositora musical cuja biografia é conhecida.

Fundou um vibrante convento, onde sua músicas eram integradas às orações. O interesse em suas obras atrai musicólogos, historiadores, filósofos e teólogos. Infelizmente suas obras foram "apropriadas" pelo movimento New Age devido a semelhança tonal e beleza. 

Abaixo, duas obras musicais de autoria de Santa Hildegarda.

O Splendidissima Gemma
Lindsay Lang, soprano



O Clarissima Mater


Nota: Se alguém identificar os músicos, por favor, avise.

11 de jan. de 2011

Possuímos a capacidade de amar

O amor de Deus não é matéria de ensino nem de prescrições. Não aprendemos de outros a alegrar-nos com a luz, ou a desejar a vida, ou a amar os pais ou educadores. Assim – ou melhor, com muito mais razão –, não se encontra o amor de Deus na disciplina exterior. Mas, quando é criado, o ser vivo, isto é, o homem, a força da razão foi, como semente, inserida nele, uma força que contém em si a capacidade e a inclinação de amar.

Antes de mais nada, nós recebemos antecipadamente do Espírito Santo a força e a capacidade de pôr em prática todos os mandamentos que Deus nos deu. Por isso não nos aflijamos como se nos fosse exigido algo de incomum, nem nos tornemos vaidosos pensando que damos mais do que havíamos recebido. Se usarmos bem destas forças, levaremos uma vida virtuosa; no entanto, mal empregadas, cairemos no pecado.

Ora, o pecado se define como o mau uso, o uso contrário à vontade de Deus daquilo que ele nos deu para o bem. Pelo contrário, a virtude, como Deus a quer, é o desenvolvimento destas faculdades que brotam da consciência reta, segundo o preceito do Senhor.

O mesmo diremos da caridade. Ao recebermos o mandamento de amar a Deus, já possuímos capacidade de amar, plantada em nós desde a primeira criação. Não há necessidade de provas externas: cada qual por si e em si mesmo pode descobri-la. De fato, nós desejamos, naturalmente, as coisas boas e belas, embora, à primeira vista, algumas pareçam boas e belas a uns e não a outros. Amamos também, sem ser necessário que nos ensinem nossos parentes e amigos e temos espontaneamente grande amizade por nossos benfeitores.

-- Da Regra mais longa, de São Basílio Magno, bispo (século IV)

10 de jan. de 2011

O Sacramento da Ordem

Os dois sacramentos que seguem, requerem uma breve explicação, não são para todos cristãos, um se relaciona aos clérigos, e o outro (matrimônio) aos leigos. Não abordaremos todos pontos que podem ser mencionados sobre as Sagradas Ordens, mas somente aqueles necessários para uma vida justa e uma morte feliz.

As ordens são sete em número, quatro menores e três maiores; a maior delas, chamada sacerdócio, é dividida em duas: uma para Bispos, outra para padres. Antes de qualquer ordenação, a tonsura (NT) é recebida, sendo a porta para as demais, isto propriamente torna homens em clérigos. E desde que é requerida para clérigos, para que possam ter uma boa e religiosa vida, é com grande razão requerida especialmente para o presbiterato e episcopado; por isso estou satisfeito em considerar os deveres relacionados a clérigos.


Tonsura, o corte de cabelo
que marcava a entrada no
estado clerical.

Dois pontos paracem pedir uma explicação; primeiro, a cerimônia pela qual clérigos são feitos; segundo, o ofício que eles devem realizar na igreja. A cerimônia, como descrita pela liturgia, consiste em primeiro cortar o cabelo de sua cabeça; este rito significa abandonar as vaidades e supérfluos desejos, como pensamentos por bens materiais, riquezas, honras, prazeres e outros de mesma natureza; e, ao mesmo tempo, aqueles cujo cabelo é cortado, devem repetir o quinto verso do salmo XV: Senhor, vós sois a minha parte de herança e meu cálice; vós tendes nas mãos o meu destino (Sl 15, 5). Então o Bispo ordena que uma sobrepeliz branca seja trazida, a qual ele coloca sobre o clérigo, lembrando as palavras do apóstolo aos Efésios: revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade (Ef 4,24). Não há ofício específico para clérigos, mas é costume servir ao padre nas missas particulares.

Consideremos o grau de perfeição exigido de um clérigo; e se tanto é pedido de um deles, quanto mais de um acólito, subdiácono, padre e bispo! Fico horrorizado ao pensar, quantos padres mal possuem as virtudes necessárias para serem um simples clérigo. Ele é exortado a abandonar todos pensamentos fúteis e desejos que pertencem aos homens do mundo; isto é, ao homens que são do mundo, que estão continuamente pensando em coisas mundanas.

Um bom clérigo é exortado a não procurar por outra herança que não seja Deus, que Ele somente possa ser a sua parte e herança; e o clérigo deve verdadeiramente ser dito como parte e herança somente de Deus. Oh, quão alto deve ser o estado clerical que renuncia a todo mundo, que deve possuir somente a Deus, e deve ser possuído por Deus apenas. Este é o significado das palavras do salmista: vós sois a minha parte de herança e meu cálice (Sl 15,5).

O que é dito ser "parte da minha herança", que é a divisão das propriedades entre familiares, transforma-se em partilha de si mesmo. O sentido destas palavras não é que o clérigo deva desejar ter Deus como uma parte de sua herança e ter riquezas na outra parte, mas que do fundo do seu coração deve desejar transferir todos seus bens para Deus, sua inteira herança, ou seja, tudo que lhe pertencer neste mundo. Entre cálice e herança parece haver uma diferença, que um cálice se relaciona a prazeres e delícias, e herança a riquezas e honras.


Ordenação de padres, realizada na diocese do Rio de Janeiro em 2010

Portanto, o sentido geral é este: ó Deus, meu Deus! a partir deste momento, quaisquer que sejam as riquezas, prazeres ou outros bens temporais que possa desejar neste mundo, eu desejo possuir em Ti somente, que isto seja suficiente para mim. E desde que não possa ter em abundância bens espirituais neste mundo, o clérigo continua a oração: é o Senhor que irá restaurar minha herança em mim. O qiue eu rejeitar e desprezar por Ti, ou der aos pobres, ou perdoar meus devedores, Tu guardarás fielmente para mim, e me restituirá no tempo apropriado, não em ouro corruptível, mas em Ti mesmo, que é a fonte inesgotável de todos os bens.

Mas para que ninguém duvide de minhas palavras, vou acrescentar duas autoridades muito maiores que a minha, São Jerônimo e São Bernardo. São Jerônimo, falando da vida clerical, escreve: deixe um clérigo, que serve a Igreja de Cristo, explicar seu nome; sendo sua definição conhecida, deve se dedicar a ser aquilo pelo qual é chamado: no grego é κληρικός - klērikos, o que significa herança; por isso são chamados clérigos, seja por que escolhidos por Deus, ou por que Deus é sua herança. Mas aquele que jurou ser Deus sua herança, deve conduzir a si mesmo de tal modo que possua a Deus ou seja possuído por Ele.

E quem possuir a Deus e disser com o profeta "o Senhor é minha herança", não deve possuir a nada além de Deus. Mas, se tiver algo além de Deus, o Senhor não será sua herança: se, por exemplo, possuir ouro, prata, terra ou outros bens, o Senhor não será digno de estar junto com estas coisas. Assim fala São Jerônimo, e se o lermos, encontraremos que grande perfeição é necessária aos clérigos.

São Bernardo vem a seguir: não só ele aprova a linguagem de São Jerônimo, como algumas vezes utiliza suas palavras, embora não mencione seu nome. Assim ele fala em seu longo sermão sobre as palavras de São Pedro: Eis que deixamos tudo para te seguir (Mt 19,27). Um clérigo, diz São Bernardo, que tenha qualquer coisa com o mundo, não terá herança no céu; se possuir qualquer coisa além de Deus, o Senhor não estará em sua herança. E logo após, ele procede declarando o que um clérigo pode reter de benefícios eclesiais. Não dar a propriedade do pobre aos pobres, é o mesmo que um crime de sacrilégio: o que ministros e dispenseiros receberem da propriedade de igreja, além de meras roupas e comida, é de uma crueldade sacrílega retirar do patrimônio dos pobres. Assim, São Bernardo perfeitamente concorda com São Jerônimo.

A cerimônia de colocar o sobrepeliz branco prossegue, com estas palavras do apóstolo: revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade (Ef 4, 24). Não é suficiente para clérigos não ter amores pelas riquezas; suas vidas devem ser inocentes e sem mancha, porque são dedicados ao ministério do altar, no qual é imolado o Cordeiro sem manchas. Revestir sobre o "homem novo" significa nada além de abandonar os caminhos do velho Adão, que foi corrompido, e colocar-se nos caminhos do novo Adão, Cristo, que nasceu da Virgem Maria, apontou um novo caminho de justiça e santidade na verdade, ou seja, não apenas a justiça moral mas a também a mais perfeita e sobrenatural santidade, que Cristo demonstrou em si mesmo, de acordo com São Pedro: Ele não cometeu pecado, nem se achou falsidade em sua boca (1Pd 2,22). Que muitos clérigos possam ser encontrados, que tendo vestido o sobrepeliz branco, possam demonstrar isto em sua vida e maneiras.

Outro ofício do clérigo é assistir com devoção, reverência e atenção ao Sacrifício Divina, na qual o Cordeiro de Deus é diariamente sacrificado. Sei que vários piedosos clérigos na Igreja, mas eu não apenas sei, mas muitas vezes presenciei, muitos ajudando no altar do Senhor, com olhos de cobiça e conduta imprópria, como se o serviço fosse coisa normal e comum, e não o mais sagrado e terrível! E talvez o clérigo não seja tanto quem deva ser culpado, mas ao padre mesmo, que muitas vezes celebra a missa de maneira apressada e com pouca devoção., parecendo não estar cuidando do que está fazendo. Ouçamos o que diz São Crisóstomo sobre o assunto: naquele instante anjos rodeavam o padre, e as criaturas celestiais cantavam alto, ao redor do altar, em honra de Jesus que era imolado ali. Nisto nós podemos facilmente acreditar quando consideramos a grandeza do sacrifício. São Gregório também escreveu no quarto livro dos seus diálogos: "quem entre os fiéis pode hesitar em acreditar que no momento da imolação, quando o padre pronuncia as palavras, os céus se abrem e os coros dos anjos descendem a terra, as coisas celestiais se juntam às terrestres, visível e invisível?"

Se estas palavras forem seriamente consideradas, tanto pelo padre quanto o clérigo que o ajuda, como podem agir da maneira que muitas vezes o fazem? Que espetáculo deplorável se pudéssemos ver a celebração, o padre cercado por todos os lados de coros de anjos, que permanecem em admiração e temor com o que está ocorrendo, cantandos cânticos espirituais; e, ao centro, o padre, frio e estupidamente desatento com tudo, não entendendo o que diz; e então ele apressa a missa, negligenciando cerimônias, de fato, sem saber o que está fazendo. Enquanto isto, o clérigo olha para todos os lados, as vezes até conversa com alguém! Assim Deus é encarnecido, assim as coisas mais sagradas desprezadas, assim este ato é oferecido aos heréticos para zombaria.

E como isto não pode ser negado, advirto e exorto aos eclesiásticos que morram para o mundo, vivam somente para Deus; não desejando riquezas em abundância, zelosamente perservando sua inocência, e trabalhando nas coisas divinas com devoção, como deveriam, e incitando os demais a fazer da mesma maneira. Assim eles irão ganahr grande confinaça com Deus e, ao mesmo tempo, enchar a Igreja de Cristo com o bom odor de suas virtudes.

(Nota do Tradutor): A tonsura foi abolida pelo Papa Paulo VI, através do motu proprio Ministeria quaedam. No Direito Canônico atual, uma pessoa passa a receber o título de clérigo quando recebe a primeira ordem menor, o diaconato. Assim, também seria razoável traduzir a palavra "clerical" para "diácono", mas preferi manter a fidelidade ao texto original. 

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino, bispo (século XVIII)


-- Nota: sempre que possível procuro utilizar textos traduzidos por profissionais e publicados com autorização de nossas autoridades eclesiais. Este, no entanto, foi traduzido por mim, a partir do livro em Inglês, por não tê-lo encontrado traduzido para o Português. O texto em inglês está disponível aqui.

8 de jan. de 2011

O Batismo de Cristo


Batismo de Jesus, pintado por Verrochioe seu aprendiz, Leonardo da Vinci
(Galleria degli Uffizi, Florença, Italia)
Cristo é iluminado no batismo; recebemos com ele a luz; Cristo é batizado, desçamos com ele às águas para com ele subirmos.

João batiza e Jesus aproxima-se; talvez para santificar igualmente aquele que o batiza e, sem dúvida, para sepultar nas águas o velho Adão. Antes de nós, e por nossa causa, ele que é Espírito e carne santificou as águas do Jordão, para assim nos iniciar nos sacramentos mediante o Espírito e a água.

João reluta, Jesus insiste. Eu é que devo ser batizado por ti (cf. Mt 3, 14), diz a lâmpada ao Sol, a voz à Palavra, o amigo ao Esposo, diz o maior entre todos os nascidos de mulher ao Primogênito de toda criatura, aquele que estremecera de alegria no seio materno ao que fora adorado no seio de sua Mãe, o que era e seria precursor ao que já tinha vindo e de novo há de vir. Eu é que devo ser batizado por ti. Podia ainda acrescentar: e por causa de ti, pois sabia que iria receber o batismo de sangue ou que, como Pedro, não lhe seriam apenas lavados os pés.

Jesus sai das águas, elevando consigo o mundo que estava submerso, e vê abrirem-se os céus de par em par, que Adão tinha fechado para si e sua posteridade, assim como o paraíso lhe fora fechado por uma espada de fogo.

O Espírito, acorrendo àquele que lhe é igual, dá testemunho da sua divindade. Vem do céu uma voz, pois também vinha do céu aquele de quem se dava testemunho. E ao mostrar-se na forma corporal de uma pomba, o Espírito glorifica o corpo de Cristo, já que este, por sua união com a divindade, é o corpo de Deus. De modo semelhante, muitos séculos antes, uma pomba anunciara o fim do dilúvio.

Veneremos o batismo de Cristo e celebremos dignamente esta festa.

Permanecei inteiramente puros e purificai-vos sempre mais. Nada agrada tanto a Deus quanto o arrependimento e a salvação do homem, para quem se destinam todas as suas palavras e mistérios. Sede como luzes no mundo, isto é, como uma força vivificante para os outros homens. Permanecendo como luzes perfeitas diante da grande Luz, sereis inundados pelo esplendor dessa Luz que brilha no céu e que acabastes de receber, embora não em plenitude, o único raio que procede da única Divindade, em Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
 
Dos Sermões de São Gregório de Nazianzo, bispo (século IV)

7 de jan. de 2011

É perfeita imitação do Senhor ver-se condenar sem culpa e calar

1. Grande confusão me faz o que vos vou persuadir, porque deveria ter praticado, pelo menos alguma coisa do que vos digo nesta virtude; é assim que eu confesso ter aproveitado muito pouco. Nunca, ao que me parece, me falta motivo para me parecer maior virtude o desculpar-me. Como algumas vezes é lícito e seria mal não o fazer, não tenho discrição - ou, para melhor dizer, humildade - para o fazer quando convém. Porque, verdadeiramente, é de grande humildade ver-se condenar sem culpa e calar, e é perfeita imitação do Senhor que tomou sobre Si todas as culpas. E assim, rogo-vos para terdes nisto grande cuidado, porque traz consigo grandes lucros, e em procurarmos nós mesmas livrar-nos de culpa, não vejo nenhum, a não ser - como digo - nalgum caso em que poderia causar agravo ou escândalo não dizer a verdade. Isto, quem tiver mais discrição do que eu, o entenderá.



2. Creio que vai muito em se acostumar a esta virtude, ou em procurar alcançar do Senhor verdadeira humildade, que daqui deve vir; porque o verdadeiro humilde há-de desejar, de verdade, ser tido em pouco, e perseguido e condenado sem culpa, mesmo em coisas graves. Porque, se quer imitar o Senhor, em que melhor o pode do que nisto? Pois aqui não são necessárias forças corporais nem ajuda de ninguém, senão de Deus.

3. Estas grandes virtudes, minhas irmãs, quereria eu estudássemos muito e fossem a nossa penitência, que em demasiadas penitências já sabeis vos vou à mão, porque podem fazer mal à saúde, se são sem discrição. Aqui, porém, não há que temer, porque, por grandes que sejam as virtudes interiores, não tiram as forças do corpo para servir a Religião, senão que fortalecem a alma; e em coisas muito pequenas - como tenho dito de outras vezes - se podem acostumar para sair vitoriosas nas grandes. Nestas, não tenho eu podido fazer esta prova, porque nunca ouvi dizer coisas más a meu respeito que não visse que ficavam aquém: porque, embora não fosse nas mesmas coisas, tinha ofendido a Deus em outras muitas e parecia-me que tinham feito muito em deixar aquelas, e sempre me alegro mais que digam de mim o que não é, do que as verdades.

4. Ajuda muito a consideração do que se ganha nisto por todas as vias e como nunca - bem vistas as coisas -, nos culpam sem razão, pois o justo cai sete vezes ao dia e seria mentira dizer que não temos pecado. Assim, pois, ainda que não seja naquilo em que nos culpam, nunca estamos totalmente sem culpa, como estava o bom Jesus.

5. Ó Senhor meu! quando penso de quantas maneiras padecestes, e que de nenhuma o merecíeis, não sei o que diga de mim, nem onde tinha o siso quando não desejava padecer, nem onde estou quando me desculpo. Já Vós sabeis, meu Bem, que, se tenho algum bem, não é dado por outras mãos senão pelas Vossas. Pois, que se Vos dá, Senhor, em antes dar muito do que dar pouco? Se é por eu não o merecer, tão-pouco merecia as graças que me tendes feito. E será possível que haja eu de querer que alguém faça bom conceito de coisa tão má, tendo-se dito tanto mal de Vós, que sois o bem sobre todos os bens? Não, não se pode sofrer, Deus meu - nem quisera eu sofrêsseis Vós - que haja em Vossa serva coisa que não contente os Vossos olhos. Pois olhai, Senhor, que os meus estão cegos e se contentam com muito pouco. Dai-me Vós a luz e fazei que, com verdade, deseje que todos me aborreçam, pois tantas vezes Vos tenho deixado a Vós, que me amais com tanta fidelidade!

6. Que é isto, meu Deus? Que lucro pensamos tirar em contentar as criaturas? Que se nos dá de ser muito culpadas por todas elas, se diante do Senhor estamos sem culpa? Ó minhas irmãs, nunca acabamos de entender esta verdade, e assim nunca acabaremos de chegar à perfeição, se não andamos considerando muito e pensando o que ela é e não é!

Pois, embora não houvesse outro lucro senão a confusão que ficará à pessoa que vos tiver culpado, ao ver que vós, sem culpa, vos deixais condenar, isso já seria bem grande; porque, às vezes, uma coisa destas mais levanta uma alma do que dez sermões. E todas devemos procurar ser pregadoras por obras, pois o Apóstolo e a nossa inaptidão nos impedem que o sejamos nas palavras.

7. Nunca penseis que há-de ficar oculto o mal ou o bem que fizerdes, por encerradas que estejais. E pensais, filhas, que ainda que vós não vos desculpeis, há-de faltar quem tome a vossa defesa? Vede como respondeu o Senhor pela Madalena em casa do Fariseu, quando sua irmã a culpava. Não vos levará pelo rigor como fez consigo mesmo, pois, quando teve um ladrão a tomar a Sua defesa, estava já pregado na cruz. Assim, Sua Majestade moverá a quem a tome por vós, e, quando não, é que não será necessário. Isto o tenho eu visto e é assim, ainda que não quisera que isto se vos recordasse, mas antes folgásseis de ficar culpadas. E, do proveito que vereis em vossa alma, o tempo vos dou por testemunha. Porque se começa a ganhar liberdade e tanto se vos dará que digam mal ou bem de vós, antes parece ser negócio alheio. É como quando estão a falar duas pessoas e, como não é connosco, estamos descuidadas da resposta. Assim aqui, com o costume que tomámos em não dar resposta, dir-se-ia que não falam connosco.

Parecerá isto impossível aos que somos muito sensíveis e pouco mortificados. A princípio, é dificultoso; mas eu sei que se pode alcançar esta liberdade, negação e desprendimento de nós mesmos, com o favor do Senhor.
 
-- Do Livro Caminho de Perfeição (capítulo 15), de Santa Teresa de Ávila (século XVI)

6 de jan. de 2011

Sermão da Epifania do Senhor

Os três reis magos adoram o Menino Jesus.
Tendo a misericordiosa Providência de Deus decidido vir nos últimos tempos em nosso socorro no mundo perdido, determinou salvar todos os povos em Cristo.

Esses povos formam a incontável descendência outrora prometida ao santo patriarca Abraão; descendência gerada não segundo a carne, mas pela fecundidade da fé, e por isso comparada à multidão das estrelas, para que o pai de todos os povos esperasse uma posteridade celeste e não terrestre.

Entrem, pois, todos os povos, entrem na família dos patriarcas, e recebam os filhos da promessa a benção da descendência de Abraão, à qual renunciaram os filhos segundo a carne. Que todos os povos, representados, pelos Três Magos, adorem o Criador do universo; e Deus não seja conhecido apenas na Judéia mas no mundo inteiro, a fim de que por toda parte o seu nome seja grande em Israel (Sl 75,2).

Portanto, amados filhos, instruídos nos mistérios da graça divina, celebremos com alegria espiritual o dia das nossas primícias e do primeiro chamado dos povos pagãos à fé, dando graças a Deus misericordioso que, conforme diz o Apóstolo, nos tornou capazes de participar da luz que é a herança dos santos; ele nos libertou do poder das trevas e nos recebeu no reino de seu amado Filho (Cl 1,12-13). Pois, como anunciou Isaías, o povo que andava na escuridão viu uma grande luz; para os que habitavam na sombra da morte, uma luz resplandeceu (Is 9,1). E ainda referindo-se a eles, o mesmo profeta diz ao Senhor: Nações que não vos conheciam vos invocarão e povos que vos ignoravam acorrerão a vós (cf Is 55,5)

Esse dia, Abraão viu e alegrou-se (Jo 8,56) ao saber que seus filhos segundo a fé seriam abençoados na sua descendência, que é Cristo, e ao prever que, por sua fé, seria pai de todos os povos. E deu glória a Deus, plenamente convencido de que Deus tem poder para cumprir o que prometeu (Rm 4,20-21).

Esse dia, também Davi cantou nos salmos, dizendo : As nações que criastes virão adorar, Senhor , e louvar vosso nome (Sl 85,9). E ainda: O Senhor fez conhecer a salvação, e as nações sua justiça ( Sl 97,2).

Como sabemos, tudo isto se realizou quando os três Magos, chamados de seu longínquo país, foram conduzidos por uma estrela , para irem conhecer e adorar o Rei do céu e da terra. O serviço prestado por esta estrela nos convida a imitar sua obediência, isto é, servir com todas as forças essa graça que nos chama todos para Cristo.

Animados por esse desejo, amados filhos, deveis emprenhar-vos em ser úteis uns aos outros, para que no reino de Deus, aonde se entra graças à integridade da fé e às boas obras, resplandeçais como filhos da luz. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo por todos os séculos dos séculos.
*Dos Sermões de São Leão Magno, papa (século V)



LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...