5 de mar. de 2011

Confissões, de São Patrício - parte III


Levaria muito tempo narrar meus labores, em detalhes, um por um. Vou dizer brevemente como o piedoso Deus frequentemente tem me livrado da servidão, e de doze perigos pelos quais minha alma foi ameaçada, além de muitas ciladas que não sou capaz de descrever. Nem quero injuriar os leitores; mas tenho Deus criador, que conhece todas as coisas antes mesmo que elas venham a existir, como testemunha de que embora eu fosse um pobrezinho desamparado e ignorante, todavia por meio de profecias divinhas frequentemente me aconselha.
Catedral de São Patrício, Dublin, Irlanda


De onde me veio esta sabedoria, que para mim não existia, eu que nem o número de dias conhecia e nem a Deus conhecia? De onde me veio em seguida dom tão grande e tão saudável de conhecer a Deus e amá-lo, mesmo tendo deixado à pátria e os pais?


E muitas dádivas me foram oferecidas com choro e lágrimas e eu os ofendi, contrariamente ao desejo de um bom número dos meus senhores; mas sendo governado por Deus, não entrei em consenso e nem me delonguei com eles, não por minha graça, mas Deus que venceu em mim e resistiu contra todos eles, afim de que eu viesse aos povos da Irlanda pregar o evangelho e suportar as injúrias dos incrédulos, para que possa se ouvir o infortúnio das minhas peregrinações e muitas perseguições e até prisões; de maneira que possa dar minha liberdade pelo bem de outros, e se digno for, estou pronto para dar até mesmo minha vida sem hesitação e de boa vontade, pelo nome do Senhor e nesse lugar escolho devotar minha vida até a morte, se assim o Senhor me permitir.


Porque sou grande devedor de Deus, que tamanha graça me concedeu, que muitos povos através de mim renasceriam em Deus, e como seria confirmado depois, os clérigos seriam ordenados por eles em toda parte em favor das pessoas que recentemente viriam a acreditar, esses que o Senhor atraiu dos confins da terra, assim como já foi prometido pelos seus profetas: “para ti virão povos dos confins da terra” e dirão: porque nossos pais nos deixaram apenas ídolos falsos e não há mais neles proveito; e mais: ponho-te como luz para os gentios para que tu possas levar salvação até os confins da terra.


Eu desejo então esperar por sua promessa, que jamais falha, assim como no evangelho está escrito: virão do oriente e do ocidente e sentar-se-ão a mesa com Abraão, Isaac e Jacó. Assim como acreditamos que os crentes virão do mundo inteiro.


Por este motivo então, é necessário verdadeiramente pescar bem e diligentemente, assim como o Senhor prediz e ensina dizendo: “Sigam-me e farei de vós pescadores de homens”; e ainda pelos profetas: “Eis que eu envio muitos pescadores e caçadores”, diz Deus, etc. Portanto é muito importante lançar nossa rede, para que uma imensa multidão seja apanhada para Deus e em toda parte haja clero para batizar e exortar o povo necessitado e ansioso. Assim como o Senhor disse no evangelho, admoestando e instruindo: “Ide, pois agora por todas as nações ensinando e batizando-os em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar em todas as ocasiões tudo o que vos ensinei, e eis que eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos”; e ainda diz: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura, quem crer e for batizado será salvo; quem não crer verdadeiramente será condenado”. E ainda: Este evangelho do reino será pregado por todo o mundo como testemunha para todos os povos e então virá o fim; e igualmente o Senhor anunciou por meio do profeta: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que eu derramarei do meu Espírito sobre toda a carne, e os vossos filhos farão profecias e as vossas filhas também, vossos jovens terão visões e vossos velhos sonharão sonhos e na verdade sobre os meus servos e minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e eles profetizarão; como em Oséias diz: Eu chamarei aqueles que não são meu povo de meu povo e aqueles que não alcançaram misericórdia eu os chamarei de misericordiosos e no lugar em que foi dito a eles, vocês não são meu povo, serão chamados “filhos do Deus vivo”.


Assim, tal como acontece na Irlanda onde nunca tiveram conhecimento de Deus, mas que até o presente momento, só conheciam ídolos e coisas impuras, como que recentemente estão se tornando um povo do Senhor e sendo chamados de filhos de Deus, os filhos dos Scotos e as filhas dos reis, são vistas como monjas e virgens de Cristo?

E ainda uma abençoada irlandesa [Scota], nobre, linda e de idade adulta, que eu batizei; poucos dias depois veio a nós e nos informou que tinha recebido uma profecia de um mensageiro de Deus e sido convidada a ser uma virgem de Cristo e aproximar-se de Deus. Graças a Deus, que seis dias depois, excelente e avidamente ela tomou o caminho que todas as virgens de Deus tomam, mas não com o consentimento dos pais dela, mas suportando perseguições e as reprovações imerecidas de seus parentes. Apesar disso o número delas aumenta (a respeito das que são de nossa raça nascidas lá desconhecemos o número) além das viúvas, e aquelas que mantêm a continência. Mas entre elas as que mais trabalham são as que são mantidas na escravidão. Além de terrores, elas suportam ameaças constantes; mas o Senhor concede muitas graças as suas servas, pois mesmo apesar da prisão (sendo proibidas) elas resolutamente seguem o seu exemplo.


Por isso, mesmo que desejasse me separar deles a fim de ir para Bretanha, e de boa vontade estaria preparado para ir para minha pátria e meus pais, e não somente lá, mas mesmo até a Gália para visitar meus irmãos e para contemplar a face dos santos de meu Senhor: Deus sabe o quanto eu desejei isso, mas atado ao Espírito que me atestou que se fizesse isso, seria designado como culpado. E eu temo perder o trabalho que comecei, e não eu, mas Cristo o Senhor, que me ordenou que viesse estar com eles o resto dos meus dias, se o Senhor desejou isso e me protegeu de todo mau caminho, não devo pecar contra ele.


Espero que eu faça como devo, mas não confio em mim, enquanto estiver neste corpo mortal, porque forte é e cotidianamente esforça-se para desviar-me da fé e da verdadeira santidade de uma religião não fingida a qual aspiro guardar até o fim da vida minha por Cristo meu Senhor, mas a carne inimiga sempre arrasta para a morte, isto é para suas seduções, para as coisas ilícitas. E eu sei em parte que não levo uma vida perfeita assim como outros crentes, mas reconheço diante do meu Senhor, e não me envergonho em sua presença, porque não minto, desde que o vim a conhecê-lo em minha juventude cresceu em mim o amor de Deus e o temor a ele, e até agora pela graça de Deus, tenho mantido a fé.


Que ria e me insulte quem assim o desejar, eu não me calarei e nem esconderei os sinais e maravilhas que foram mostrados a mim pelo Senhor de muitos anos antes que acontecessem, ele que sabe todas as coisas antes mesmo do começo dos tempos.


-- Das Cartas de São Patrício, (século V)

-- texto retirado do site Patrística Brasil, onde o autor traduziu do latim.



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