22 de jul. de 2011

Os pecados da infância, Santo Agostinho

Ouve-me Senhor! Ai dos pecados dos homens! É uma homem que assim fala; e dele te compadeces,porque és o seu Criador, e não o autor do seu pecado. Quem me poderá lembrar os pecados cometidos na infância, já que ninguém há que diante de ti seja imune ao pecado, nem mesmo o recém-nascido com um dia apenas de vida sobre a terra? Quem, senão um pequerrucho, onde vejo a imagem daquilo que não lembro de mim mesmo? Qual era então o meu pecado? Seria talvez o de buscar avidamente, aos berros, os seios da minha mãe? Se mostrasse hoje a mesma avidez, não pelo seio materno, é claro, mas pelos alimentos próprios da minha idade, seria justamente escarnecido e censurado.

Meu procedimento era então repreensível, mas como não teria podido compreender as reprimendas, nem a razão nem os costumes permitiam que eu fosse reprovado. Como o crescer dos anos, extirpamos e atiramos fora tais defeitos, e nunca vi ninguém que, para cortar o mal, rejeitasse conscientemente o bem! Ou seria justo, mesmo tendo em conta a idade, exigir chorando o que seria prejudicial, indignar-se com violência contra homens adultos e de condição livre, e contra os pais e outras pessoas sensatas que não aceitavam satisfazer a certos desejos? Seria justo fazer todo o possível para prejudicá-los, porque eles não se prestavam a obedecer a ordens que seriam nocivas? Portanto, a inocência das crianças reside na fragilidade dos membros, não da alma. Vi e observei bem uma criança dominada pela inveja: não falava ainda, mas olhava, pálida e incitada para o seu irmão de leite. Quem já não observou esse fato? Dizem que as mães e amas têm não sei que remédio para eliminar tais defeitos; sem dúvida não é inocente a criança que, diante da fonte generosa e abundante de leite, não admite dividi-la com um irmão embora muito necessitado desse alimento para sustentar a vida. No entanto, tais fatos são tolerados com indulgência, não por serem de pouca ou nenhuma importância, mas porque desaparecerão ao correr dos anos. Prova disso é que nos irritamos contra tal procedimento, quando o surpreendemos em pessoa de mais idade.

E tu, Senhor meu Deus, que à criança deste a vida e um corpo, como se vê, dotado de sentido, composto de membros, ornado de beleza, e lhe insuflaste os impulsos vitais para defender a sua própria integridade, ordenas que eu te louve por todas as obras, que te celebre e cante o teu nome, ó Altíssimo (Sl 92,2), porque és o Senhor onipotente e bom, ainda que somente essas coisas tivesses criado. Nenhum outro as pode fazer, senão tu, ó Deus único, de quem promana toda harmonia, ó forma perfeita, que formas todas as coisas e que tudo ordenas de acordo com as tuas próprias leis.

Por isso, Senhor, não me agrada considerar, como parte integrante da minha vida terrena, essa idade que não lembro ter vivido, a respeito da qual creio no que me dizem os outros e nas conjecturas, aliás muito bem fundadas, que formei ao observar outras crianças. Esse tempo de memória envolto em trevas encontra paralelo na época em que vivi no seio materno. E se fui concebido na iniqüidade, e no pecado me alimentou a minha mãe no seu seio (Sl 51,7), onde foi, eu te suplico, meu Deus, onde foi, meu Senhor, eu teu servo, onde e quando foi que estive inocente?  Mas deixemos de lado esse tempo; que tenho eu a ver com ele, se dele não conservo o menor vestígio?

-- Do Livro das Confissões, de Santo Agostinho, bispo (século V)

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