31 de out. de 2011

Jesus Cristo é verdadeiro Deus


Aqueles que afirmaram que nosso Senhor Jesus Cristo não é Deus, ou que não é verdadeiro Deus, ou que não é um só Deus com o Pai, ou que não é imortal por ser mutável sejam convencidos de seu erro pelo claríssimo testemunho e pela afirmação unânime dos Livros santos, dos quais são estas palavras: No princípio em o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo em Deus. (Jo 1,1) 

Está claro que nós reconhecemos o Verbo de Deus como o Filho único do Pai, do qual se diz depois: E o Verbo se fez carne e habítou entre nós (Jo 1,1-14), em referência ao nascimento pela sua encarnação, ocorrida no tempo, tendo a Virgem como mãe. Nessa passagem, o evangelista declara que o Verbo não é somente Deus, mas consubstancial ao Pai, pois, após dizer: E o Verbo era Deus, acrescenta: No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada foi feito do que existe (Jo 1,2-3). Diz tudo, de modo a incluir tudo o que foi criado, ou seja, todas as criaturas. 

Consta aí claramente que não foi criado aquele por quem tudo foi criado. E se não foi criado, não é criatura, e se não é criatura, é consubstancial ao Pai. Toda substância que não é Deus, é criatura, e a que não é criatura, é Deus. E se o Filho não é consubstancial ao Pai, é uma substância criada; e se é uma substância criada, todas as coisas não foram feitas por ele. Ora, está escrito: Tudo foi feito por ele; portanto, é consubstâncial ao Pai. Assim, não é somente Deus, mas verdadeiro Deus. 

O mesmo afirma com clareza o apóstolo João na sua carta: Nós sabemos que veio o Filho de Deus e nos deu a inteligência para conhecermos o verdadeiro Deus. E nós estamos no verdadeiro Deus, no seu Filho Jesus Cristo. Este e' o Deus verdadeiro e a vida eterna (1 Jo 5,20). Podemos também tirar a conclusão de que não se refere somente ao Pai aquelas palavras do Apóstolo: O único que possui a imortalidade (1Tm 6, 16), mas a um só Deus. que é a própria Trindade." Jamais a vida eterna pode ser mortal com alguma mutabilidade; por isso, o Filho de Deus, porque é Vida eterna, está incluído também com o Pai, na citação acima: O único que possui a imortalidade. 

Nós, participantes de sua vida etema, tornamo-nos imortais, conforme nossa condição. Mas uma coisa é a vida eterna da qual fomos feitos participantes, outra coisa somos nós que viveremos para sempre por força dessa participação. Se, pois, o Apóstolo tivesse dito: “O Pai, (em vez de: Jesus Cristo) - o Bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade, mostrará nos tempos estabelecidos. ..”, nem assim se poderia concluir que o Filho está excluído.

O Filho também não se separou do Pai ao falar pela voz da Sabedoria (pois é a Sabedoria de Deus): Eu sozinho fiz todo o giro do mundo (Eclo 24,8). Com mais razão, portanto, não é lícito que se entenda só do Pai, excluindo o Filho, quando se disse: O único que possui a imortalidade, já que a afirmação é esta: Guarda o mandamento imaculado, irrepreensível, até a aparição de nosso Senhor Jesus Cristo, que mostrará nos tempos estabelecidos, o bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade, que habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu, nem pode ver. A ele, honra e poder eterno! Amém (1Tm 6,14-16). 

Nessas palavras, não há menção propriamente dita do Pai nem do Filho nem do Espírito Santo, mas do bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o que corresponde ao único e verdadeiro Deus, à própria Trindade. 

A não ser que as palavras seguintes pudessem torcer a interpretação dada, pois disse: Que nenhum homem viu. nem pode ver, porque poderiam ser entendidas como referentes a Cristo na sua divindade, a qual os judeus não viram, embora tenham visto o seu corpo e o tenham crucificado. Mas a divindade não pode ser vista de modo algum por olhos humanos; pode, porém, ser vista com aqueles olhos de quem já não são homens, mas super-homens. Portanto, com toda razão deve-se entender o próprio Deus-Trindade quando está dito: o bendito e único Soberano, referindo-se à aparição de nosso Senhor Jesus Cristo nos tempos estabelecidos. Quando o Apóstolo disse: O único que possui a imortalidade, era como se dissesse: O único que faz maravilhas (Sl 71,18).

Desejaria saber a quem os adversários atribuem as referidas palavras: pois se apenas ao Pai, como pode ser verdade o que o próprio Filho diz: Tudo aquilo que o Pai faz, o Filho o faz igualmente? (Jo 5,19). Qual é o prodígio entre os prodígios, senão ressuscitar e dar a vida aos mortos? Pois, o mesmo Filho diz: Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer (Jo 5,21). Como dizer que somente o Pai faz prodígios, se essas palavras não dão lugar a que se entenda que é somente o Pai ou apenas o Filho, mas o Deus único e verdadeiro, ou seja, o Pai, o Filho e o Espírito Santo?

Além disso, quando o Apóstolo diz: Para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos; e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos (1Cor 8,6), quem há que duvide de ele falar de todas as coisas criadas, do mesmo modo que João: Todas as coisas foram feitas por ele? (Jo 1,3). Pergunto também: a quem se refere quando diz em outro lugar: Porque tudo é dele, por ele e nele; a ele a glória pelos séculos! Amém (Rm 1 1,36). Se essas palavras fazem referência ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo de modo a atribuir a cada Pessoa uma das expressões: Dele ao Pai, por ele ao Filho, nele ao Espírito Santo, fica claro que o Pai e o Filho e o Espírito Santo é um só Deus, pois o Apóstolo acrescenta no singular: A ele a glória pelos séculos. Por onde se vê que usou esse sentido, também ao dizer: Oh abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência; não do Pai, do Filho e do Espírito Santo; mas, da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus. Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por ele e nele. A ele a glória pelos séculos dos séculos! Amém. (Rm 11,33-36).

Se, portanto, os adversários querem entender essas palavras como referentes somente ao Pai, como entender que todas as coisas foram feitas pelo Pai, como é dito aqui; e que tudo foi feito pelo Filho, como é dito na carta aos Coríntios: E um só Senhor Jesus Cristo por quem são todas as coisas; e como se lê no evangelho de João: Tudo foi feito por meio dele? Se umas coisas foram feitas pelo Pai, outras pelo Filho, conclui-se que nem tudo foi feito pelo Pai, tampouco tudo pelo Filho. Se tudo, porém, foi feito pelo Pai e tudo pelo Filho, as mesmas coisas feitas pelo Pai foram feitas pelo Filho. Portanto, o Filho é igual ao Pai, e a atuação do Pai e do Filho é inseparável. Com efeito, se o Pai criou o Filho, que não foi feito pelo próprio Filho, nem tudo foi criado pelo Filho; mas a verdade é que tudo foi feito pelo Filho. Então concluímos que o Filho não foi criado, mas que com o Pai fez tudo o que foi feito. Tanto que o Apóstolo não omitiu o Verbo ao dizer de modo bem claro: Ele tinha a condição divina e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente (Fl 2,6); e chamando ao Pai, de Deus, como vemos nesta outra passagem: A cabeça de Cristo é Deus (1Cor 11,3).

Sobre o Espírito Santo, recolheram-se também testemunhos abundantes dos quais fizeram uso todos os autores que antes de nós escreveram acerca destas matérias, nos quais se prova que o Espírito Santo é Deus e não criatura. E se não é criatura, é não somente Deus - pois os homens foram tambem chamados deuses (Sl 81,6) - mas Deus verdadeiro. E, portanto, igual em tudo ao Pai e ao Filho, consubstancial e coeterno na unidade da Trindade.

A citação, onde aparece com maior clareza o Espírito Santo não ser criatura, é aquela onde nos é dado o preceito de não servirmos à criatura, mas ao Criador (Rm 1,25). Quanto ao modo de servi-lo, difere porém, do revelado no preceito de servimos uns aos outros pela caridade (Gl 5,13), que em grego se designa com o verbo douieuein, enquanto o serviço a Deus está expresso pelo verbo latneúein. Daí denomina-se idólatras os que prestam aos simulacros dos deuses o culto devido somente a Deus. O culto a Deus é proclamado nas palavras: Adorarás o Senhor teu Deus, somente a ele servirás (Dt 6,13). Ao empregar o termo letreúseis, o texto grego é mais explícito.

Se esse culto à criatura nos é proibido, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e somente a ele servirás, e o Apóstolo maldiz os que cultuam a criatura e a servem, e não ao Criador, conclui-se que o Espirito Santo não é criatura. Ele, ao qual todos os santos prestam aquele culto, no dizer do Apóstolo: Os verdadeiros circuncidados somos nós, que servimos ao Espírito de Deus (Fl 3,8). E em grego estão designados pelo termo latreúontes. Em muitos exemplares mesmo nos latinos assim se lê: Que servimos ao Espírito de Deus; e assim se encontra também na maioria ou quase em todos os códices gregos. Em algumas cópias latinas, porém, o texto não é: Servimos ao Espírito de Deus, mas: Servimos a Deus, no espírito.

Os que erram a esse respeito e se recusam a se dobrar perante o peso da autoridade, será que encontram, por acaso, versões diferentes nos códices com relação às palavras: Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? (1Cor 6,19) Que maior insensatez e sacrilégio do que alguém ousar dizer que os membros de Cristo são, conforme dizem, templos de uma criatura inferior a Cristo? Em outra passagem o Apóstolo diz: Vossas corpos são membros de Cristo (1Cor 6,15). Se, porém, os membros de Cristo são templos do Espírito Santo, o Espírito Santo não é uma criatura, pois, àquele de quem nossos corpos são templos é mister que devaxnos a adoração devida somente a Deus, que em grego é designada com o termo latreía. Por isso acrescenta: Glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo (1 Cor 6,20).

-- Do livro A Trindade, de Santo Agostinho, bispo (século V)

30 de out. de 2011

Doutrina da fé católica sobre a Trindade


Todos os comentadores católicos dos Livros divinos do Antigo e do Novo Testamento, que tive oportunidade de ler e que me precederam com seus escritos sobre a Trindade, que é Deus, expuseram sua doutrina conforme às Escrituras nestes termos: o Pai, o Filho e o Espírito Santo perfazem uma unidade divina pela inseparável igualdade de uma única e mesma substância. 

Não são, portanto, três deuses, mas um só Deus, embora o Pai tenha gerado o Filho, e assim, o Filho não é o que é o Pai. O Filho foi gerado pelo Pai, e assim, o Pai não é o que o Filho é. E o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho, mas somente o Espírito do Pai e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e pertencente à unidade da Trindade.

Contudo, a Trindade não nasceu da Virgem Maria, nem foi crucificada sob Poncio Pilatos, nem ressuscitou ao terceiro dia, nem subiu aos céus; mas somente o Filho. A Trindade não desceu sob a forma de pomba sobre Jesus batizado (Mt 3,16), nem no dia de Pentecostes depois da ascensão do Senhor, vindo do céu como um ruído semelhante ao soprar de impetuoso vendaval e, em línguas de fogo, que vieram pousar sobre cada um deles; mas somente o Espírito Santo (At 2,2-4). 

A Trindade não fez ouvir do céu: Tu és meu Filho (Mc 1,11), quando Cristo foi batizado por João e no monte quando com ele estavam três discípulos (Mt 17,5); nem quando soou a voz que dizia: Eu o glorifiquei e o glorificarei novamente (Jo 12,28); mas somente a voz do Pai foi dirigida ao Filho, se bem que o Pai e o Filho e o Espírito Santo, como são inseparáveis em si, são também inseparáveis em suas operações.

Esta é minha fé, pois esta é a fé católica.

-- Do livro A Trindade, de Santo Agostinho, bispo (século V)

28 de out. de 2011

Em Deus não há partes

Santo Anselmo, monge e Bispo de Cantuária durante o século XI.
Eis um novo motivo de perturbação; eis- me, de novo, na tristeza e no luto, eu que procuro a alegria e a felicidade! Já a minha alma pensava estar saciada e, de novo, eis que estou mergulhado na extrema miséria! Já estava prestes a saciar- me eis que me sinto mais faminto que antes. Procurava elevar- me até a luz de Deus e eis- me caído, de novo nas minhas trevas.

Na verdade não caí nelas agora porque já estava envolvido por elas. Sem dúvida, caíra nelas ainda antes que minha mãe me concebesse. Certamente fui concebido nelas e nasci enfaixado por elas. Todos nós, sem dúvida, caímos com Adão. Nele, todos pecamos; nele perdemos aquilo que ele recebeu com tanta facilidade e, todavia, perdeu com grande desgraça, sua e nossa; justamente aquilo que agora não encontramos mais, apesar das nossas buscas. 

Com efeito, quando procuramos a Deus, não encontramos e, se O encontramos, percebemos que não é aquilo que procurávamos. Ajuda-me, bom Deus! Ó Senhor, busquei o seu rosto; permite que o encontre, ó Senhor; não afastes de mim o teu rosto. Purifica, cura, aguça, ilumina o olho da minha alma para que possa, finalmente, contemplar-te. Que a minha alma possa reunir todas as suas forças e que, com o ardor da sua inteligência, se dirija a ti, meu Senhor. 

Quem és, ó Senhor, quem és? Como o meu coração poderá compreender-te? Não resta dúvida que és a vida, a sabedoria, a verdade, a bondade, a felicidade, a eternidade e tudo aquilo que constitui o verdadeiro bem. Mas esses atributos são numerosos e a minha inteligência não pode compreendê-los todos em um único ato de pensamento, para entender as delícias de Deus, de uma vez. 

Mas como podes, ó Senhor, ser todas essas coisas? Ou elas, quiçá, são partes de ti, ou cada uma já é tudo aquilo que tu és? Mas aquilo que tem partes não é uno, e, sim, composto e distinto de si mesmo e pode fracionar-se, na realidade ou pelo ato pensamento. 

Porém isso não se pode afirmar de ti, que és o ser do qual não se pode pensar nenhuma coisa melhor. Não existem, portanto, partes em ti, ó Senhor. Tu não és múltiplo; és uno e idêntico a ti e de maneira alguma há diferença em ti. Aliás, tu és a unidade absoluta, aquela que nem o pensamento consegue fracionar. Por isso, a vida, a sabedoria e todas as outras qualidades não são em partes, mas todas formam uma única indivisível, e cada uma delas é o que tu és e, ao mesmo tempo, o que são as outras todas. 

Portanto, tu não tens partes, e a tua eternidade - pois se identifica contigo- não é parte de ti, nem da tua eternidade. Tu está inteiro por toda parte e a tua eternidade é inteira e imperecível 

-- Do Livro Proslógio, de Santo Anselmo, bispo (século XI).

26 de out. de 2011

Atualização no layout do blog

Talvez já tenham notado, mas gostaria de destacar algumas novidades no layout do blog que objetivam facilitar os leitores. Elas ocorreram princpalmente na área à direita dos textos. Vamos pela ordem, do alto da tela para baixo:
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Deus existe verdadeiramente

Santo Anselmo,  doutor da Igreja.

Então, ó Senhor, tu que nos concedeste a razão em defesa da fé, faze com que eu conheça, até quanto me é possível, que tu existes assim como acreditamos, e que és aquilo que acreditamos. 

Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não existe porque “o insensato disse, em seu coração: Deus não existe”? (Sl 14,1). Porém, o insensato, quando eu digo: “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, ouve o que digo e o compreende. 

Ora, aquilo que ele compreende encontra-se em sua inteligência, ainda que possa não compreender que exista realmente. Na verdade, ter a idéia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas.

Um artista, por exemplo, ao imaginar a obra que vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada percebe da existência real da mesma, por que ainda não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também perceberá a sua existência, por que já a executou. 

O ímpio há de convir, igualmente, que existe na sua inteligência “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, porque ouve e compreende esta frase; e tudo aquilo que compreende encontra-se na inteligência.

Mas “o ser do qual não é possível pensar nada maior” não pode existir somente na inteligência. Pois, se existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria ainda maior.

Se, portanto, “o ser do qual não é possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, “o ser do qual não se pode pensar nada maior” existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade.

O que acabamos de dizer é tão verdadeiro que nem é possível sequer pensar que Deus não existe. Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente.
 
Por isso, “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, não seria “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, o que é ilógico. Existe, portanto, verdadeiramente “o ser do qual não é possível pensar nada maior”; e existe de tal forma, que nem sequer é admitido pensa-lo como não existente. 

E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu. Assim, tu existes, ó Senhor, meu Deus, e de tal forma existes que nem é possível pensar-te não existente. E com razão. Se a mente humana conseguisse conceber algo maior que tu, a criatura elevar-se-ia acima do Criador e formularia um juízo acima do Criador. Coisa extremamente absurda.
 
E, enquanto tudo, excluindo a ti, pode ser pensado como não existente, tu és o único, ao contrário, que existes realmente, entre todas as coisas, e em sumo grau. Então, por que o ímpio disse em seu coração: “Não existe Deus”, quando é tão evidente, a razão humana, que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio.

-- Do Livro Proslógio, de Santo Anselmo, bispo (século XI)

25 de out. de 2011

Recomendações para uma vida cristã


Santo Éfrem (306-373) é especialmente
venerado pela Igreja Ortodoxa Síria. 

Meu bem-amado no Senhor,
Quando desejardes dar alguma resposta, deves por em tua boca, antes de mais nada, a humildade uma vez que sabes muito bem que, por ela, todo o poder do inimigo se reduz a nada. Tu conheces a bondade do teu Mestre, que foi blasfemado, e como Ele se fez humilde e obediente inclusive até a morte. Filho meu, trabalha por ti mesmo para firmar a humildade em tua boca, em teu coração e em teu colo, pois há um mandamento que a exige. Lembra-te de Davi, que vangloriava-se por sua humildade e disse: Porque me humilho, o Senhor me libertou e me abençoou (Sal 29 [30], 8-12). Filho meu, apega-te à humildade e farás com que as virtudes de Deus te acompanhem. E se permanecerdes no estado de humildade, nenhuma paixão, qualquer que seja, poderá dominar-te. Não existe medida para a beleza do homem que é humilde. Não há paixão, qualquer que seja, capaz de dominar o homem humilde; e não há medida para a sua beleza. O homem humilde é um sacrifício a Deus. O coração de Deus e de seus anjos descansam naquele que é humilde. Mais ainda: quando os anjos o glorificam, é porque houve uma razão para ele obter todas as virtudes; porém, aquele que se revestiu da humildade não necessita de nenhuma razão além de se Ter feito humilde.
Filho meu, estas são as virtudes da humildade. Filho meu, conserva a paz, pois está escrito: Aquele que é sábio, nesse momento conservará a paz (Am 5, 13). Mantém a paz até que te questionem. E quando te questionarem, fale usando palavras humildes; comporta-te também de maneira humilde. Não lamentes. Se a pergunta exigir extensa resposta, senta-te. Nunca fales enquanto os outros estiverem usando palavras de desprezo; mas, alegremente, não esqueças que teus pensamentos devem ser estes: “não escutei [as palavras de desprezo]”. Prestai tua máxima atenção, porém, à toda palavra valiosa, pois está escrito: “Se tu deixas passar a palavra e não a escuta, te enganas a ti mesmo, filho meu no Senhor”. Te dei mandamentos desde o princípio; guarda-os desde a juventude. Examina o que diz Paulo; disse: Desde o tempo em que eras um menino, conhecias a Santa Escritura, que tem o poder para te salvar (2Tim 3,15). Aprende toda regra dos preceitos do monge, e faz-te querido em todos os teus trabalhos. Se tu, que sois jovem, vais para o deserto e te estabeleces em um local muito grande para ti e vês que Deus ali está, não deixes esse lugar para ir para outro, porque estais descontente. Deixa que o deserto em que te estabeleceste te seja suficiente, não deixeis que Ele se ofenda, pois está escrito: “Não é uma pequena coisa contrária que provocará a ira nos homens”.
No deserto em que te estabeleceste mantém esta maneira de agir e não fujas de um lugar para outro. Não te dirija à morada de ninguém para lamentar no que crês, muito menos por causa dos desejos do teu estômago. Não estejas em companhia do homem agitado e problemático, mas assegura-te em continuar com tua vida silenciosa; não estejas também na boca dos teus irmãos. Te suplico, meu amado no Senhor, que deixeis que tua meta principal seja aprender; escutar com atenção (ou obedecer) te dará a paz, pois está escrito: “O proveito da instrução não é a prata”. Cuida-te para jamais deixar de escutar (ou desobedecer). Que a palavra de Saul não se realize em ti, nem em tua geração, pois Deus é mais facilmente persuadido pela obediência do que pelo sacrifício (cf. 1 Sam 15, 22).
Estas são, então, as regras do ofício do monge: deves comer com os irmãos; não levantes a cabeça enquanto não tiver terminado de comer; come com a roupa que te deixas ver em público; se acontecer de serdes o último a ser servido, não digas: “Traga-me logo, pois aqui está sentado alguém maior que tu”; quando desejares beber da garrafa de água, não deixes que tua garganta cause confusão como um homem comum; quando estiverdes sentado no meio dos irmãos e desejares cuspir, não o faça no meio deles, mas afasta-te a certa distância e então cospe.
Quando estiverdes dormindo em algum lugar com os irmãos, não permitas que pessoa alguma se aproxime a menos de um cotovelo de distância. Se o trabalho for tranqüilo, não durmas sobre a esteira, mas dobra-a pois sois um homem jovem. Não durmas estendido, nem tampouco de costas, para que teus sonhos não te molestem.
Quando estiverdes caminhando com os irmãos, mantém-te sempre a alguma distância deles, pois quando caminhas com um irmão fazes com que teu coração esteja ocioso. Se estiverdes usando sandálias nos pés e o que caminha contigo não as têm, desata-as e caminha como ele, pois está escrito: “Sofrereis”.
Faz o trabalho do pregador. Faça-o cuidadosamente enquanto estiverdes em tua habitação. Não comas enquanto o sol estiver brilhando. Não acendas a fogueira para ti apenas, ou te transformarás num homem exibido. Quando for necessário aquecer-se, chama algum homem pobre e miserável que está contigo no deserto, e serás elogiado, ao dizer: “Não posso comer sozinho o meu pão”.
Se estiverdes numa montanha ou em um lugar onde há algum irmão doente, visita-o duas vezes ao dia: de manhã, antes de começardes a trabalhar com tuas mãos, e à tarde; pois está escrito, meu amado no Senhor: Estive doente e tu me visitaste (Mt 25, 36. 43). Quando um irmão morre na montanha onde estás, não te sentes na cela onde consegues ouvir a notícia, mas vai sentar-te com ele e chora sobre ele; pois está escrito: “Chora pelo homem falecido e caminha com ele até que seja enterrado”, pois esta é a última coisa que se pode fazer por seu irmão. Saúda seu corpo com compaixão, dizendo: “Lembra-te de mim diante do Senhor”.
Filho meu, faz tudo o possível para observar as coisas que escrevi para ti, pois elas são as regras do ofício do monge. Deixa que a morte se aproxime de ti de dia e de noite, pois tu sabes que conheces ela e te dirá: “Eu nunca a pus em meu coração. Meus pés estão no umbral e viverei até cruzar o umbral da porta”. Filho meu, põe sempre toda a tua mente diante de Deus e não deixes que todos estes pensamentos instáveis te desviem do caminho. Tem sempre em vista os castigos que vêm. Enquanto estiverdes em tua habitação, faz-te semelhante a Deus.
Se um irmão vem até ti, regozija-te com ele. Saúda-o. Prepara água para seus pés. Não esqueça isto. Que ele reze. Ficai sentado. Saúda suas mãos e seus pés. Não o incomodes com perguntas como: “De onde vens?”; pois está escrito: Desta maneira, alguns, sem saber, têm recebido anjos em sua morada (Heb 12, 2). Crê naquele que veio a ti da mesma forma como crerias em Deus. Se ele for um homem mais virtuoso que tu, diga-lhe humildemente: “Que teu favor esteja sobre mim”, o que equivale a dizer: “Tu és meu mestre”. Guarda tua comida e come com ele. E se tiverdes algum compromisso, desmarca-o; pois está escrito: “Filho meu, sempre me traz prazer acompanhar o homem que quer caminhar”. Deves regozijar-te com ele e estar feliz. Fazei o máximo que puder para que te bendiga três vezes, para que a bênção do anjo que entrou com ele venha sobre ti.
E como exige a mesma fé da Igreja Católica, não te desvies dela, nem te ponhas fora dela. Cremos em só Deus, Pai todo-poderoso, e em seu Filho único, Jesus Cristo, nosso Senhor, por quem foi feito o universo, e no Espírito Santo, ou seja, [cremos] na Santíssima Trindade, a divindade plena. Ele [Jesus] é Deus, Ele estava com Deus, Ele é a Luz que vem da Luz, Ele é o Senhor que vem do Senhor. Ele foi gerado, não criado. Foi gerado como homem. Ele não é uma criatura, é Deus. Foi gerado pela Santíssima Virgem Maria, a mulher que levou Deus em seu seio. Ele tomou a carne do homem para o nosso bem, [veio] à terra e dela ascendeu. Escolheu pregadores, os Santos Apóstolos, cujas vozes, conforme o que está escrito, têm sido ouvidas em toda a terra (Sal 18 [19],4). Fui crucificado e traspassado com uma lança. Daí veio a nossa salvação, Água e Sangue, isto é, o Batismo e o glorioso Sangue; quem não recebeu o Sangue, não foi batizado.
Faz isto, filho meu. Mantém esta fé e o Deus da paz estará contigo, e te salvará, e te libertará, e estarás em paz pelo resto dos teus dias. A salvação está no Senhor, filho querido, no Senhor. Lembra-te de mim, amado no Senhor, por Jesus, o Cristo, nosso Senhor, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
-- Carta de Santo Éfrem da Síria para um outro monge (século IV)

24 de out. de 2011

Não sejamos desertores da verdade de Cristo


São Clemente I foi o quarto Papa, entre 92 e 101.
Estabeleceu o Crisma na Igreja, seguindo o
exemplo de São Pedro, e introduziu a palavra
Amém nos ritos e orações. Foi preso, condenado
a trabalhos forçados e, por fim, atirado ao mar
com uma pedra amarrada ao pescoço.

Tomai cuidado, diletos, para que os benefícios de Deus, tão numerosos, não se tornem condenação para todos nós, se não vivermos para ele de modo digno e não realizarmos em concórdia o que é bom e aceito diante de sua face.Pois foi dito em algum lugar: O Espírito do Senhor é lâmpada que perscruta as cavernas das entranhas (Pr20,27 Vulg.).

Consideremos quão próximo está e que nada lhe é oculto de nossos pensamentos e palavras. É, portanto, justo que não sejamos desertores de sua vontade. É preferível ofendermos os homens estultos e insensatos, soberbos e presunçosos na jactância de seu modo de falar, do que a Deus.

Veneremos o Senhor Jesus, cujo sangue foi derramado por nós, respeitemos nossos superiores, honremos os anciãos, eduquemos os jovens na disciplina do temor de Deus, encaminhemos nossas esposas para todo o bem. Manifestem o amável procedimento de castidade, mostrem seu puro e sincero propósito de mansidão, pelo silêncio dêem a conhecer a moderação da língua, tenham igual caridade sem acepção de pessoas para com aqueles que santamente temem a Deus.

Participem vossos filhos da ciência de Cristo. Aprendam que grande valor tem para Deus a humildade, o poder da casta caridade junto de Deus, como é bom e imenso seu temor, protegendo a todos que nele se demoram na santidade de um coração puro. Porque ele é o perscrutador dos pensamentos e resoluções da mente. Seu Espírito está em nós, e, quando quer, retira-o.

A fé em Cristo tudo confirma. Ele, pelo Espírito Santo, nos incita: Vinde, filhos, ouvi-me; ensinar-vos-ei o temor do Senhor. Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias bons? Afasta tua língua do mal e não profiram teus lábios a mentira. Desvia-te do mal e faze o bem. Busca a paz e persegue-a (Sl 33,12-15).

Misericordioso em tudo, o Pai benigno tem amor pelos que o temem, concede com bondade e doçura suas graças àqueles que se lhe aproximam com simplicidade. Por isso não sejamos fingidos nem insensíveis a seus dons gloriosos.

-- Da Carta aos Coríntios, de São Clemente I, papa (século I)

22 de out. de 2011

São João Batista de Rossi

Em uma observação rápida, a vida de São João Batista de Rossi foi bastante comum. Um simples padre que durante quarenta anos trabalho nas paróquias de Roma. Mas, sua vida espiritual serviu de exemplo para milhares de necessitados - doentes, mendigos, prostitutas, trabalhadores braçais - que viviam em condições precárias. Durante o dia, ele cuidava de doentes em hospitais, a noite em abrigos para o povo da rua.

Trabalhadores da área da saúde podem ter São João Batista de Rossi como modelo. Antes de anunciar a um doente terminal a salvação da alma, procurava de todas as maneiras aliviar seus sofrimentos físicos. Não poupava-se de nenhuma situação, fosse qual fosse o estado de deterioração do doente e repugnantes fossem sua feridas. E este desprendimento conquistava as pessoas. Certa vez, um jovem que estava a morrer de sífilis chamou a atenção do padre, que o tratou com muitos cuidados. Tocado pela sua humildade, o jovem convenceu-se dos erros que havia cometido em vida, fez uma confissão geral muito proveitosa e, logo após receber a absolvição, faleceu.

Outros padres e muitos penitentes admiravam-se da sua capacidade par ajudar as pessoas durante confissões. Com poucas palavras, era capaz de iluminar e modificar suas vidas de maneira permanente. Em uma ocasião, procurou-o um jovem que vivia sozinho e mantinha relações sexuais quase diariamente com uma mulher casada, que o visitava a pretexto de ajudá-lo a manter as roupas limpas. São João Batista de Rossi mostrou-lhe a gravidade do pecado e poucos minutos convenceu-o a abandonar este vício. Como sinal de conversão, no dia seguinte o jovem lhe trouxe uma pilha de suas melhores roupas, justamente as que serviam de pretexto para seus pecados. 

A todos instigava para que seguissem seu exemplo no cuidado das almas. Eis aqui trecho de um dos seus sermões:

A ignorância é a lepra da alma. Quantos leprosos existem na igreja de Roma hoje em diante. onde muitas pessoas não sabem o que é necessário para a salvação de suas armas? É nossa tarefa nos esforçarmos para curar esta doença.

Assim como o menino Jesus, temos que nos ocupar dos negócios de nosso Pai - a salavação das almas de nossos irmãos e irmãs. As almas de nossos vizinhos estão em nossas mãos, e quantas são perdidas por nosso desleixo? Os doentes morrem sem uma preparação adequada porque nós não dispendamos tempo nem esforços para prepará-los adequadamente, cuidar cuidadosamente de cada um deles em particular. Se tivermos um pouco mais de paciência, um pouco mais de perseverança, um pouco mais de amor, poderemos guiar estas pobres almas aos céus. 

Muitos de nós evitamos ir aos hospitais por medo de infecções ou da visão e odor daqueles que estão a esperar por nós. Coragem! Não estamos neste mundo para seguirmos nosso próprio prazer, mas para imitar o Senhor. Se experitamos certa repugnância em nosso trabalho, seja pela sua natureza, seja por certo desprezo aos pobres, lembremos o exemplo de São Franscisco de Sales. Ele não recusava qualquer trabalho, não se importava coma fadiga, e foi recompesado com o retorno de milhares de almas à Igreja. Quando reprovado por ter encurtado sua vida devido a todas estas atividades, respondeu: "Não é ncessário que eu viva, mas é fundamental que almas sejam salvas". Este deve ser nosso moto.

Em uma pregação para outros padres, disse:

Os pobres vem a Igreja cansados e distraídos por seus muitos problemas diários. Se fizeres um longo sermão, não conseguem acompanhar. Dê-lhes uma idéia simples que possam levar para casa, não meia dúzia delas, pois a segunda vai deslocar a primeira, e nenhuma será lembrada ao final.

São João Batista de Rossi, ele mesmo sofreu as consequencias de seu serviço incansável, teve um infarto em 1763 e morreu um ano após.Foi canonizado pelo Papa Pio IX, em 13 de Maio de 1860. O processo havia sido iniciado logo após sua morte, mas devido à guerras e revoluções que de certa forma envolveram a Igreja, não foi devidamente considerado por cerca de 90 anos. O Papa Leão XIII o canonizou em 8 de Dezembro de 1881. Uma igreja em sua honra também teve sua construção atrasada por muitos anos, devido às guerras mundiais. A Igreja foi consagrada em 22 de Maio de 1965 e suas relíquias foram para lá transferidas no dia seguinte.

-- Texto traduzido  do livro Voices of the Saints, de Bert Ghezzi.

Adão e Cristo

Ícone: A criação de Adão
O santo Apóstolo refere que dois homens deram início ao gênero humano: Adão e Cristo. Dois homens, iguais quanto ao corpo, mas desiguais no valor. Com toda a verdade, inteiramente semelhantes na compleição física, mas, sem dúvida, diferentes por seu princípio. O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante (1Cor 15,45).

O primeiro foi feito pelo último, de quem também recebeu a alma para poder viver. É ele figura de seu criador, que não espera de outro a vida, mas só ele a concede a todos. Aquele de limo vil é plasmado; este vem do precioso seio da Virgem. Naquele a terra se muda em carne; neste a carne é promovida a Deus.

E que mais? É este o Adão que naquele primeiro pôs sua imagem ao criá-lo, e dele recebeu não só a personalidade, mas ainda o nome para que, tendo-o feito para si à sua imagem, não viesse a perecer.

Primeiro Adão, último Adão. O primeiro tem começo, o último não conhece fim. Porque o último é na realidade o primeiro, conforme suas palavras: Eu, o primeiro, e eu, o último (Is 48,12).

Eu sou o primeiro, isto é, sem começo. Eu, o último, absolutamente sem fim. Contudo, o que veio primeiro não foi o espiritual, mas o natural; em seguida, o espiritual (1Cor 15,46). Na verdade, primeiro a terra, depois o fruto; mas não tão preciosa a terra quanto o fruto. Ela exige gemidos e trabalhos; este oferece alimento e vida.

Tem razão o Profeta de gloriar-se por tal fruto: Nossa terra deu seu fruto (cf.Sl 84,13). Que fruto? Aquele de que se fala em outro lugar: Do fruto de teu ventre porei sobre teu trono (Sl 131,11). O primeiro homem, diz o Apóstolo, vindo da terra, é terreno; o segundo, vindo do céu, é celeste.

Qual o terreno, tais os terrenos; qual o celeste, tais os celestes (1Cor 15,47-48). Não nasceram assim. De que maneira então se transformaram, deixando seu ser do nascimento, permanecem agora no ser em que renasceram? Para isto, irmãos, o Espírito celeste fecunda por secreta infusão de sua luz a fonte do seio da Virgem, de sorte que aqueles que a origem da raça lamacenta produzira terrenos em mísera condição, sejam dados à luz celeste e elevados à semelhança de seu criador. Por conseguinte, já renascidos, já formados de novo à imagem de nosso Criador, realizemos a recomendação do Apóstolo: Portanto, como trouxemos a imagem do terrestre, traremos também a imagem do celeste (1Cor 15,49).

Já renascidos, como dissemos, em conformidade com nosso Senhor, verdadeiramente adotados por Deus como filhos, traremos com plena semelhança a imagem perfeita de nosso Criador; não quanto à majestade em que é único, mas na inocência, simplicidade, mansidão, paciência, humildade, misericórdia, concórdia, em que, por condescendência, ele se fez tudo isto por nós e nos deu sua comunhão.

-- Dos Sermões de São Pedro Crisólogo, bispo (século V)

20 de out. de 2011

Não sabemos pedir o que convém


Santo Agostinho (354-430)

Talvez ainda indagues por que o Apóstolo disse: Não sabemos pedir o que nos convém (Rm 8,26) . Pois de modo algum se pode crer que ele ou aqueles a quem dizia isto ignorassem a oração dominical.

O Apóstolo não se excluiu desta ignorância. Talvez não tivesse conhecido como convinha orar, quando pela grandeza das revelações lhe foi dado um espinho na carne, um anjo de Satanás para esbofeteá-lo. Por este motivo rogou por três vezes ao Senhor que o livrasse e, na verdade, não sabia orar o que convinha.Por fim ouviu a resposta de Deus por que não atendia ao que lhe pedia tão grande homem e por que não lhe era conveniente: Basta-te a minha graça, porque a força se perfaz na fraqueza (2Cor 12,9).

Portanto, nas tribulações que tanto podem ser proveitosas quanto prejudiciais, não sabemos o que pedir como convém. No entanto, por serem duras, desagradáveis, contrárias ao modo de sentir de nossa fraqueza, pelo anseio humano universal, rogamos que sejam afastadas de nós. Contudo temos de ter confiança no Senhor, nosso Deus, e, se não as retira, não pensemos logo que nos abandona, mas antes que, por suportar generosamente os males, podemos esperar maiores bens. Assim a força se perfaz na fraqueza.

Estas coisas foram escritas para que não aconteça que alguém se tenha em alta conta, se for atendido quando pede com impaciência algo que lhe seria mais proveitoso não alcançar. Ou desanime e desespere da divina misericórdia, se não for atendido, quando talvez peça aquilo que lhe será causa de mais atrozes aflições ou o corromperá pela prosperidade e o fará perder-se inteiramente. Em todas estas coisas não sabemos orar como convém.

Por este motivo, se nos acontece o contrário do que pedimos, não há que duvidar ser muito melhor suportar com paciência e, dando graças por tudo, porque foi a vontade de Deus que se fez e não a nossa. Pois o próprio Mediador nos deu exemplo ao dizer: Pai, se for possível, afaste-se de mim este cálice, mas logo, mudando em si a vontade humana assumida pela encarnação, acrescentou: Porém não o que eu quero, mas o que tu queres, Pai (Mt 26,39). Por isto, com toda a razão, pela obediência de um, muitos foram constituídos justos (cf. Rm 5,19).

-- Da Carta a Proba, de Santo Agostinho, bispo (século IV)

19 de out. de 2011

Porta Fidei - parte III


Carta Apostólica do Papa Bento XVI em que convoca o Ano da Fé.



Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé” (Tg 2, 14-18). 

A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o seu caminho. De fato, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21, 1).

Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que procure a fé (cf. 2 Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.

Que a Palavra do Senhor avance e seja glorificada (2 Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para olhar o futuro e a garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes n’Ele e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: Quando sou fraco, então é que sou forte (2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada feliz porque acreditou (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.

Porta Fidei - parte II


Carta Apostólica do Papa Bento XVI em que convoca o Ano da Fé.



Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele (2 Cor 5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de fato, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – fortificam-se acreditando.O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus. Os seus numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um patrimonio de riqueza incomparável e consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso para chegar à porta da fé.

Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.

Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.

Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada e refletir sobre o próprio ato com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo nesteAno.

Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É que este servia-lhes de oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Batismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): "O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele".

Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De fato, existe uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar dentro desta realidade quando escreve: Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro ato, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e ação da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.

A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia (At 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.

Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um fato privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este "estar com Ele" introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um ato da liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.

A própria profissão da fé é um ato simultaneamente pessoal e comunitário. De fato, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Batismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Batismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”».

Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor.

Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro "preâmbulo" da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. De fato, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência daquilo que vale e permanece sempre. Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro. É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.

Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: "Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial".  

É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de fato, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.

Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, a seguir à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante, continuando a construir a sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.

Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm a peito a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.

De fato, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogativos, que provêm duma diversa mentalidade que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade.

Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.

Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, autor e consumador da fé (Heb 12, 2): n’Ele encontra plena realização toda a ânsia e anélito do coração humano. A alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se homem, do partilhar conosco a fragilidade humana para a transformar com a força da sua ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação.

Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho unigenito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egito a fim de O salvar da perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua pregação e permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. Act 1, 14; 2, 1-4).

Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a sua doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como seus discípulos depois da morte d’Ele (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf. At 2, 42-47).

Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma acção em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).

Pela fé, no decurso dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.

Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.

18 de out. de 2011

Porta Fidei - parte I


Carta Apostólica do Papa Bento XVI em que convoca o Ano da Fé.


1. A PORTA DA FÉ (cf. At 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Batismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua própria glória quantos crêem n’Ele (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.

Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: "A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude". Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.

Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). Também o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde jorra água viva (cf.Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentarmos da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento de quantos são seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De fato, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus? (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: A obra de Deus é esta: crer n’Aquele que Ele enviou (Jo6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.

À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de Outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de Novembro de 2013. Na referida data de 11 de Outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II, com o objetivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de Outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em toda a Igreja, "uma autêntica e sincera profissão da mesma fé"; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira "individual e coletiva, livre e consciente, interior e exterior, humilde e franca". Pensava que a Igreja poderia assim retomar exata consciência da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar. As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade duma tal celebração. Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus, para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o patrimonio de todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.

Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma consequência e exigência pós-conciliar, bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da verdadeira fé e da sua reta interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, "não perdem o seu valor nem a sua beleza". É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa. Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: "Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja".

A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de fato, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: Enquanto Cristo “santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2 Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja “prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus”, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz.

Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf.Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A fé, que atua pelo amor (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10;Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).


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