29 de dez. de 2011

Os falsos deuses gregos


* Na continuação do texto o autor demonstra o erro de acreditar em muitos deuses que são meras representações dos erros humanos. Vale a pena dar uma olhada na wikipedia na imensa lista de deuses gregos. Mas assim como os gregos, há também os romanos, nórdicos e outras seitas politeístas.

Vejamos agora também os gregos, para ver se possuem alguma idéia sobre Deus. Os gregos, que dizem ser sábios, mostram-se mais ignorantes que os caldeus, introduziram uma multidão de deuses que nasceram uns do sexo masculino, outros do sexo feminino, escravos de todas as paixões e sujeitos de toda espécie de iniqüidades; são deuses que eles memos afirmam ter sido adúlteros, assassinos, irados, invejosos, rancorosos, parricidas e fratricidas, ladrões e assaltantes, coxos e importunos, feiticeiros e loucos. Destes, uns morreram, outros foram fulminados, outros serviram aos homens como escravos, outros viraram fugitivos, outros sentiram dor e lamentaram, outros se transformaram em animais...

Pantheon (em Atenas) - o templo de todos os deuses
Daí se vê - ó Rei - quão ridículas, absurdas e ímpias palavras introduziram os gregos ao dar o nome de deuses a esses seres que não são deuses; assim fizeram seguindo os seus maus desejos, a fim de que, tendo aqueles abrogado suas maldades, pudessem estes também entregar-se ao adultérios, ao roubo, ao assassinato e toda a classe de vícios. Ora, se tudo isso fizeram os deuses, por que também não poderiam fazer os homens que lhes prestam culto? Conseqüência, pois, de todas estas obras do erro foi que os homens sofreram guerras contínuas, matanças e cativeiros amargos.

Mas se quisermos recorrer com nosso discurso a cada um de seus deuses, veremos absurdos sem conta. Assim, introduzem, antes de mais nada, um deus chamado Cronos e a estes lhe sacrificam seus próprios filhos; Cronos teve muitos filhos de Rea e, finalmente, tornando-se louco, comeu os seus próprios filhos. Dizem também que Zeus lhe cortou as partes viris e as atirou no mar, donde se conta que nasceu Afrodite. Amarrando Zeus o próprio pai, lançou-o no Tártaro.

Vês o desvio e a imprudência introduzidos contra o seu próprio deus? Como é possível que um deus seja amarrado ou mutilado? Ó insensatez! Quem, em seu são juízo, pode dizer tais coisas?

Depois introduziram Zeus, que dizem ser o rei de todos os seus deuses e que toma a forma de animais para unir-se com mulheres mortais. Com efeito, contam que se tranformou em touro para Europa e Pasfae, em ouro para Danae, em cisne para Leda, em sátiro para Antíope e em raio para Esmele; e que destas nasceram-lhe muitos filhos: Dionísio, Zeto, Anfim, Héracles, Apolo e Artemisa, Perseu, Castor, Helena e Plux, Minos, Radamante, Sarpenden e as sete filhas chamadas "musas". Logo introduziram igualmente a fábula de Ganímedes... Aconteceu então - ó Rei - que os homens imitaram tudo isto e se fizeram adúlteros e pervertidos, como seu deus, e cometeram toda a classe de atos viciosos. Como é possível conceber que Deus seja adúltero, pervertido e parricida?

Com isto, introduziram um certo Hefesto como deus, e este, coxo e empunhando martelo e turquês, passou a ser ferreiro para ganhar a vida. É necessitado? Isto é coisa inadmissível para Deus: ser coxo e necessitado dos homens.

Logo introduziram Hermes como deus; ele que é ambicioso, ladrão, ávaro, feiticeiro, estropiado e intérprete de discursos... Não se concebe que Deus possa ser tais coisas.

Também introduziram Asclépio como deus; médico de profissão e dedicado a preparar medicamentos, compondo emplastos para se sustentar (pois estava necessitado), logo foi fulminado por Zeus por causa do filho do lacedemônio Tindreo, e assim morreu. Mas se Asclépio, sendo deus, não pôde ajudar a si mesmo, sendo fulminado, como poderá ajudar os outros?

Também introduziram Ares como deus; guerreiro, invejoso, ambicioso por rebanhos e outras coisa, dizem que ele, mais tarde, cometeu adultério com Afridite, e foi amarrado pelo menino Eros e também por Hefesto. Como, pois, poderia Deus ser ambicioso, guerreiro, adúltero e prisioneiro?

Também introduziram Dionísio como deus, ele que celebra festas noturnas, é mestre em embriaguez e arrebata as mulheres alheias; mais tarde, foi degolado pelos titãs. Se, pois, Dionísio foi degolado, não pôde ajudar-se a si mesmo, mas era louco, bêbado e fugitivo; como poderia ser Deus?

Também introduziram Héracles, que contam ter-se embriagado e, tornando-se louco, comeu seus próprios filhos, sendo após consumido pelo fogo, assim morrendo. Mas como pode Deus ser bêbado, matar seus filhos e ser devorado pelo fogo? Como pode socorrer os outros se não pôde socorrer a si mesmo?

Também introduziram Apolo como deus; ele era invejoso; às vezes empunhava o arco e e a flecha, outras vezes a cítara e a flauta; dedicava-se à adivinhação em troca do dinheiro dos homens. Ele é necessitado? É impossível admitir que Deus esteja necessitado e seja invejoso, como citamos.

Depois introduziram Artemisa, sua irmã, caçadora por ofício, que carrega o arco e a flecha, andando errante pelos montes, acompanhada somente de seus cães, para caçar cervos e javalis. Como pode, pois, ser deusa uma mulher que é caçadora e anda errante com seus cães?

Também dizem que Afrodite é deusa, que foi adúltera e que como companheiros de adultério Ares, Anquises e Adônis (cuja morte chorou), e sempre buscava amantes; até dizem que desceu ao Hades para resgatar Adônis de Persfone, filha de Hades. Ó Rei: por acaso já viste insensatez maior que a de introduzir uma deusa adúltera, que lamenta e chora?

Também introduziram Adônis como deus, caçador de ofício e adúltero, que morreu violentamente ferido por um javali e não pôde ajudar-se em sua desgraça. Como pode então preocupar-se com os homens aquele que era adúltero, caçador e que morreu de forma violenta?

Tudo isto e muitas coisas mais, bem vergonhosas e piores, introduziram os gregos - ó Rei - fantasiando sobre seus deuses coisas que absolutamente não são lícitas de dizê-las ou trazê-las à memória. Assim, tomando os homens os exemplos de seus próprios deuses, praticaram todo gênero de iniqüidade, imprudência e impiedade, manchando a terra e o ar com suas terríveis ações.

-- Da Apologia de Aristides de Atenas (século II)

Os falsos deuses: Terra, Sol, Lua e outros elementos da natureza


* Este é a primeira parte de um texto em que o autor explica porque muitos "deuses" não são de fato Deus. Comecemos com alguns "deuses" muito queridos pela Nova Era em suas várias manifestações: "deusa" Terra (Gaia), "deus" Sol e outros elementos da natureza. Notem que  chamar de "Nova Era" só se justifica por marketing, pois estes "deuses" eram cultuados muito antes do nascimento de Jesus Cristo. O texto é do século II, nele o autor refere-se aos caldeus, que cultuavam estes pseudo-deuses. 

Nosso planeta e o Sol, criados por Deus.
Vejamos, pois, quais homens participam da verdade e quais participam do erro. Os caldeus, com efeito, por não conhecerem a Deus, se extraviaram por detrás dos astros e passaram a adorar às criaturas no lugar d'Aquele que os havia criado; e fazendo dos astros certas representações, passaram a clamar às imagens do céu e da terra, do sol, da lua e dos demais astros ou luminares; e, confinando-os em templos, os adoram, dando-lhes nome de deuses, guardando-os com toda a segurança, para que não sejam roubados por ladrões, sem perceber que os que guardam são superiores aos guardados, e os que constroem são superiores às suas próprias obras. Assim, se os seus deuses são impotentes para sua própria salvação, como poderiam oferecer a salvação aos outros? Logo, se extraviaram os caldeus, prestando culto a imagens mortas e inúteis.

E fico maravilhado - ó Rei - como aqueles que são, entre eles, chamados de "filósofos" não perceberam absolutamente que também esses mesmos astros são corruptíveis. Sim, e se os astros são corruptíveis e dominados pela necessidades, como podem ser deuses? E se os astros não são deuses, como poderiam ser deuses as imagens feitas em honra deles?

Passemos, portanto - ó Rei - aos próprios elementos, para provar que não são deuses, mas sim corruptíveis e mutáveis, desprovidos de tudo por ordem do Deus verdadeiro, Aquele que é incorruptível, imutável e invisível. Ele tudo vê, tudo muda e transforma como quer. Que posso então dizer dos astros?

Os que crêem que a terra é Deusa se enganam, pois a vemos incomodada e dominada pelos homens, cavada e emporcalhada, tornando-se inútil, porque se não a aduba, converte-se em infértil como uma telha, onde nada nasce. Só que, se for regada em demasia, corrompe-se ela mesma bem como os seus frutos. Ela também é pisada pelos homens e pelos animais; se mancha com os sangue dos assassinatos; é cavada para receber os cadáveres e, assim, se converte em depósito de mortos. Sendo assim, não é possível que a terra seja deusa, mas obra de Deus, para utilidade dos homens.

Os que pensam que a água é Deus erram, pois também ela foi feita para a utilidade dos homens e por eles é dominada; fica suja e se corrompe; se altera quando é servida, muda de cor e congela com o frio; é levada para lavar todas as imundícies... Por isso, é impossível que a água seja Deus, mas é obra de Deus.

Os que crêem que o fogo é Deus estão equivocados, pois o fogo foi feito para a utilidade dos homens e por eles é dominado; é levado de um lugar para outros para cozer e assar toda espécie de carnes e até mesmo para cremar cadáveres. Além disso, se corrompe de várias maneiras ao ser apagado pelos homens. Por isso, não é possível que o fogo seja Deus, mas obra de Deus.
Uma representação de Gaia.

Os que crêem que o sopro dos ventos é Deus se equivocam, pois é óbvio que está a serviço de outro e que foi preparado por Deus, em graça aos homens, para mover os navios, transportando os alimentos, e atender às suas demais necessidades; fora isso, aumenta ou cessa pela ordem de Deus. Portanto, não é possível pensar que o vento seja Deus, mas obra de Deus.

Os que crêem que o sol é Deus se equivocam, pois vemos que ele se move por necessidade, muda e altera de signo, pondo-se e nascendo para desenvolver as plantas e ervas em utilidade aos homens; vemos também que possui divisões com os demais astros, que é muito menor que o céu, que sofre eclipses em sua luz e não goza de qualquer autonomia. Por isso, não é possível pensar que o sol seja Deus, mas obra de Deus.

Os que pensam que a lua é Deusa se equivocam, pois vemos que ela se move por necessidade e muda de fase, pondo-se e nascendo para a utilidade dos homens; ela é menor que o sol, cresce, reduz e sofre eclipses. Por isso, não é possível pensar que a lua seja deusa, mas obra de Deus.

Os que crêem que o homem é Deus erram, pois vemos que ele é concebido por necessidade, se alimenta e envelhece ainda contra a sua vontade; às vezes está alegre, outras vezes está triste, e precisa de comida, bebida e roupas; vemos, ainda, que ele guarda raiva, inveja e ambição, muda seus propósitos e tem mil defeitos; corrompe-se também de muitos modos em razão dos elementos, dos animais e da morte que lhe é imposta. Não é, portanto, admissível que o homem seja Deus, mas obra de Deus.

Assim, os caldeus se extraviaram em suas concupiscências, pois adoram os astros, elementos corruptíveis e às imagens mortas, sem compreenderem o que divinizam.

-- Da Apologia de Aristides de Atenas (século II)

26 de dez. de 2011

Festa de Santo Estêvão "Protomártir"

Queridos irmãos e irmãs!



O Martírio de Santo Estevão


No dia após a solenidade do Natal, celebramos a festa de Santo Estêvão, diácono e primeiro mártir. À primeira vista a proximidade da recordação do "Protomártir" do nascimento do Redentor pode-nos fazer admirar, porque é tocante o contraste entre a paz e a alegria de Belém e o drama de Estêvão em Jerusalém na primeira perseguição contra a Igreja nascente. Na realidade, o aparente rangido é superado se considerarmos mais profundamente o mistério do Natal. O Menino Jesus, que jaz na gruta, é o Unigénito Filho de Deus que se fez homem. Ele salvará a humanidade morrendo na cruz. Agora vemo-lo envolvido em panos no presépio; depois da sua crucifixão será novamente envolvido por faixas e colocado no sepulcro. Não era ocasionalmente que a iconografia natalícia por vezes representava o Menino divino colocado num pequeno sarcófago, para indicar que o Redentor nasce para morrer, nasce para dar a vida em resgate por todos.

Santo Estêvão foi o primeiro que seguiu os passos de Cristo com o martírio; morreu, como o divino Mestre, perdoando e rezando pelos seus algozes (cf. Act 7, 60). Nos primeiros quatro séculos do cristianismo, todos os santos venerados pela Igreja eram mártires. Trata-se de uma multidão inumerável, que a liturgia chama "o cândido exército dos mártires", martyrum candidatus exercitus. A sua morte não incutia receio nem tristeza, mas entusiasmo espiritual que suscitava sempre novos cristãos. Para os crentes, o dia da morte, e ainda mais o dia do martírio, não é o fim de tudo, mas a "passagem" para a vida imortal, é o dia do nascimento definitivo, em latim dies natalis. Compreende-se então o vínculo que existe entre o "dies natalis" de Cristo e o dies natalis de Santo Estêvão. Se Jesus não tivesse nascido na terra, os homens não teriam podido nascer no Céu. Precisamente porque Cristo nasceu, nós podemos "renascer"!

Maria, que estreitou entre os braços o Redentor em Belém, sofreu também ela o martírio interior. Partilhou a sua paixão e teve que o estreitar, mais uma vez, quando foi descido da cruz. A esta Mãe, que conheceu a alegria do nascimento e a dor lancinante da morte do seu Filho divino, confiamos quantos são perseguidos e sofrem, de várias formas, para testemunhar e servir o Evangelho. Com especial proximidade espiritual, penso também naqueles católicos que mantêm a própria fidelidade à Sé de Pedro sem ceder a compromissos, por vezes também ao preço de graves sofrimentos. Toda a Igreja admira o seu exemplo e reza para que eles tenham a força de perseverar, sabendo que as suas tribulações são fonte de vitória, mesmo se no momento podem parecer uma falência.

Mais uma vez, desejo a todos bom Natal!
Papa Bento XVI, Angelus - 26 de Dezembro de 2006

25 de dez. de 2011

Homilia da Missa de Natal, Papa Bento XVI


Amados irmãos e irmãs!

Papa Bento XVI durante a Missa de Natal, 2011

A leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente com a palavra «apparuit», que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit – manifestou-se». Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Heb 1, 1: leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais: Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há-de intuir a partir das palavras. Ele «manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens» (Tt 3, 4). Para os homens do tempo pré-cristão – que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário –, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens»: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.

Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a liturgia cita um texto tirado do livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros, e dão-lhe o seguinte nome: “Conselheiro admirável! Deus valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz!” O poder será engrandecido numa paz sem fim (Is 9, 5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tenha em mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível. Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano, se diz: o seu nome será Deus valoroso, Pai para sempre. Estamos perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus valoroso; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto «numa paz sem fim». Antes, o profeta falara duma espécie de «grande luz» e, a propósito da paz emanada d’Ele, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue seriam lançados ao fogo (cf. Is 9, 1.3-4).

Deus manifestou-Se… como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, manifestastes-Vos como menino e mostrastes-Vos a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há-de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz.  Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo facto de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.

Natal é epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz num menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa das festas» – mais do que todas as outras solenidades – e celebrou-a com «solicitude inefável» (2 Celano, 199: Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava-lhes palavras de ternura como se faz com os meninos – refere Tomás de Celano (ibidem). Para a Igreja antiga, a festa das festas era a Páscoa: na ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudou radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objectiva das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no mistério pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele descobriu, numa profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este facto de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura. A ressurreição pressupõe a encarnação. O Filho de Deus visto como menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando a fé em amor. 

Manifestaram-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens: esta frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acarinhá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um segundo centro numa festa que é, antes de mais nada, uma festa do coração.
Presépio em frente a Basílica Vaticana

Tudo isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se-lhe clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica alegria e a verdadeira luz.

Francisco fazia celebrar a santíssima Eucaristia, sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1 Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para que, onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado – Jesus Cristo –, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite santa de Greccio, Francisco – como diácono que era – cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos cânticos natalícios dos Frades (cf.1 Celano, 85 e 86: Fontes, 469 e 470). Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.

Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma entrada com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar do nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais profunda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão «iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus. Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade dum menino acabado de nascer. Celebremos assim a liturgia desta Noite santa, renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de emigrante, pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amen.


24 de dez. de 2011

A verdade brotou da terra e a justiça olhou do alto do céu


Desperta, ó homem: por tua causa Deus se fez homem. Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá (Ef 5,14). Por tua causa, repito, Deus se fez homem.

Estarias morto para sempre, se ele não tivesse nascido no tempo. Jamais te libertarias da carne do pecado, se ele não tivesse assumido uma carne semelhante à do pecado. Estarias condenado a uma eterna miséria, se não fosse a sua misericórdia. Não voltarias à vida, se ele não tivesse vindo ao encontro da tua morte. Terias perecido, se ele não te socorresse. Estarias perdido, se ele não viesse salvar-te.

Celebremos com alegria a vinda da nossa salvação e redenção. Celebremos este dia de festa, em que o grande e eterno Dia, gerado pelo Dia grande e eterno, veio a este nosso dia temporal e tão breve.

Ele se tornou para nós justiça, santificação e libertação, para que, como está escrito, “quem se gloria, glorie-se no Senhor” (1Cor 1,30-31).

A verdade brotará da terra (Sl 84,12), o Cristo que disse: eu sou a verdade (Jo 14,6), nasceu da Virgem. E a justiça olhou do alto do céu (cf. Sl 84,12), porque o homem, crendo naquele que nasceu, é justificado não por si mesmo, mas por Deus.

A verdade brotou da terra porque o Verbo se fez carne (Jo 1,14). E a justiça olhou do alto do céu porque todo o dom precioso e toda a dádiva perfeita vêm do alto (Tg 1,17).

A verdade brotou da terra, isto é, da carne de Maria. E a justiça olhou do alto do céu porque o homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do céu (Jo 3,27).

Justificados pela fé, estamos em paz com Deus (Rm 5,1) porque a justiça e a paz se beijaram (cf. Sl 84,11) por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo, pois a verdade brotou da terra. Por ele tivemos acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus (Rm 5,2). Não disse “de nossa glória”, mas da glória de Deus, porque a justiça não procede de nós, mas olha do alto do céu. Portanto, quem se gloria não se glorie em si mesmo, mas no Senhor.

Eis por que, quando o Senhor nasceu da Virgem, os anjos cantaram: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14 Vulgata).

Como veio a paz à terra senão por ter a verdade brotado da terra, isto é, Cristo ter nascido em carne humana? Ele é a nossa paz: de dois povos fez um só (cf. Ef 2,14), para que fôssemos homens de boa vontade, unidos uns aos outros pelo suave vínculo da caridade.

Alegremo-nos com esta graça, para que nossa glória seja o testemunho da nossa consciência, e assim nos gloriaremos, não em nós mesmos, mas no Senhor. Por isso disse o Salmista: Vós sois a minha glória que levanta a minha cabeça (Sl 3,4). Na verdade, que graça maior Deus poderia nos conceder do que, tendo um único Filho, fazê-lo Filho do homem e reciprocamente fazer os filhos dos homens serem filhos de Deus?

Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

Leituras de preparação para o Natal

Nesta época especial do ano em que esperamos a vinda do Senhor, mesmo que já possamos gozar dos seus benefícios pascais, uma vez que Ele está sempre presente, vou publicar as leituras da Liturgia das Horas recomendadas pela Igreja para os dias antes da celebração de Natal. São leituras belíssimas que realmente podem nos ajudar a experimentarmos um Santo Natal, não o Natal consumista do mundo. Portanto é uma leitura por dia, que progressivamente revelam o amor de Deus.

Além disso, encorajo a todos a seguirem o guia de leituras bíblicas sobre Maria, que postei nesta semana. Se desejarem, pode ser na forma de uma pequena celebração individual ou em grupos. Façam uma oração pedindo ao Espírito Santo que ajude neste estudo, abram a Bíblia, e com calma, leiam um pouco a orientação bíblica e, ao mesmo tempo, os trechos bíblicos indicados. Publique o guia em duas partes, até para não alongar demais esta experiência. Ao final, sugiro rezar uma Ave Maria e o Pai Nosso.

18 de Dezembro: Por seu Filho, Deus nos revelou seu amor
19 de Dezembro: A encarnação redendora
20 de Dezembro: O mundo inteiro espera a resposta de Maria
21 de Dezembro: A visitação da Virgem Maria
22 de Dezembro: Magnificat
23 de Dezembro: Manifestação do Mistério Escondido
24 de Dezembro: A verdade brotou da terra e a justiça olhou do alto do céu



23 de dez. de 2011

Manifestação do mistério escondido


 
Único é o Deus que conhecemos, irmãos, e não por outra fonte que não seja a Sagrada Escritura. Devemos, pois, saber o que ela anuncia e compreender o que ensina. Creiamos no Pai como ele quer ser acreditado; glorifiquemos o Filho como ele quer ser glorificado; e recebamos o Espírito Santo como ele quer se dar a nós. Consideremos tudo isso, não segundo nosso próprio arbítrio e interpretação pessoal, nem fazendo violência aos dons de Deus, mas como ele próprio nos ensinou pelas santas Escrituras.

Quando só existia Deus, e não havia ainda nada que existisse com ele, decidiu criar o mundo. Criou-o por seu pensamento, sua vontade e sua palavra; e o mundo começou a existir como ele quis e realizou. Basta-nos apenas saber que nada coexistia com Deus. Não havia nada além dele, só ele existia e era perfeito em tudo. Nele estava a inteligência, a sabedoria, o poder e o conselho. Tudo estava nele e ele era tudo. E quando quis e como quis, no tempo que havia estabelecido, manifestou o seu Verbo, por quem fez todas as coisas.

Deus possuía o Verbo em si mesmo, e o Verbo era imperceptível para o mundo criado; mas fazendo ouvir sua voz, Deus tornou-o perceptível. Gerando-o como luz da luz, enviou como Senhor da criação aquele que é sua própria inteligência. E este Verbo, que no princípio era visível apenas para Deus e invisível para o mundo, tornou-se visível para que o mundo, vendo-o manifestar-se, pudesse ser salvo. O Verbo é verdadeiramente a inteligência de Deus que, ao entrar no mundo, se manifestou como o servo de Deus. Tudo foi feito por ele, mas ele procede unicamente do Pai. Foi ele quem deu a lei e os profetas; e ao fazê-lo, impulsionou os profetas a falarem sob a moção do Espírito Santo para que, recebendo a força da inspiração do Pai, anunciassem o seu desígnio e a sua vontade.

O Verbo, portanto, se tornou visível, como diz São João. Este repete em síntese o que os profetas haviam dito, demonstrando que aquele era o Verbo por quem tinham sido criadas todas as coisas: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus; e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por ele e sem ele nada se fez (Jo 1,1.3). E, mais adiante, prossegue: O mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não quis conhecê-lo. Veio para o que era seu, os seus, porém, não o acolheram (Jo 1,10-11).

-- Do Tratado contra a heresia de Noeto, de Santo Hipólito, presbítero. (século III)

22 de dez. de 2011

Magnificat


E Maria disse: A minh’alma engrandece o Senhor e exulta meu espírito em Deus, meu Salvador (Lc 1,46-47). 

O Senhor, diz ela, elevou-me por um dom tão grande e inaudito, que nenhuma palavra o pode descrever e mesmo no íntimo do coração é difícil compreendê-lo. Por isso dedico todas as forças de meu ser ao louvor e à ação de graças, contemplando a grandeza daquele que é eterno, e ofereço com alegria minha vida, tudo que sinto e penso, porque meu espírito rejubila pela divindade eterna de Jesus, o Salvador, que concebi e é gerado em meu seio.

O Poderoso fez em mim maravilhas, e santo é o seu nome! (Lc 1,49).

Estas palavras se relacionam com o início do cântico que diz: A minh’alma engrandece o Senhor. De fato, só a alma em quem o Senhor se dignou fazer maravilhas pode engrandecê-lo e louvá-lo dignamente e dizer, exortando os que compartilham seus desejos e aspirações: Comigo engrandecei ao Senhor Deus, exaltemos todos juntos o seu nome (Sl 33,4).

Quem conhece o Senhor e é negligente em proclamar sua grandeza e santificar o seu nome, será considerado o menor no Reino dos Céus (Mt 5,19). Diz-se que santo é o seu nome porque, pelo seu poder ilimitado, transcende toda criatura e está infinitamente separado de todas as coisas criadas.

Acolhe Israel, seu servidor, fiel ao seu amor (Lc 1,54).

Israel é, com razão, denominado servidor do Senhor, porque, sendo obediente e humilde, foi por ele acolhido para ser salvo, como diz Oséias: Quando Israel era criança, eu já o amava (Os 11,1). Aquele que recusa humilhar-se não pode certamente ser salvo, nem dizer com o Profeta: Quem me protege e me ampara é meu Deus; é o Senhor quem sustenta a minha vida! (Sl 53,6). Mas, quem se fizer humilde como uma criança, esse é o maior no Reino dos Céus (cf. Mt 18,4).

Como havia prometido a nossos pais, em favor de Abraão e de seus filhos para sempre (Lc 1,55).

Trata-se da descendência de Abraão segundo o espírito e não segundo a carne, isto é, não apenas dos filhos segundo a natureza, mas de todos que seguiram o exemplo da sua fé, fossem eles circuncidados ou incircuncisos. Pois o próprio Abraão, ainda incircunciso, acreditou e isto lhe foi imputado como justiça.

A vinda do Salvador foi, portanto, prometida a Abraão e a seus filhos para sempre, isto é, aos filhos da promessa, dos quais se diz: Sendo de Cristo, sois então descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa (Gl 3,29).

É com razão que, antes do nascimento do Senhor e de João, suas mães profetizam, para que, tendo o pecado começado pela mulher, os bens comecem igualmente por ela; e se foi pela sedução de uma só mulher que a morte foi introduzida no mundo, agora é pela profecia de duas mulheres que se anuncia ao mundo a salvação.

-- Da Exposição sobre o Evangelho de São Lucas, de São Beda Venerável, presbítero. (século VIII)

21 de dez. de 2011

A visitação da Virgem Maria


O Anjo anunciara à Virgem Maria coisas misteriosas. Para fortalecer sua fé com um exemplo, anunciou-lhe a maternidade de uma mulher idosa e estéril, como prova de que é possível a Deus tudo que ele quer.

Logo ao ouvir a notícia, Maria dirigiu-se às montanhas, não por falta de fé na profecia ou falta de confiança na mensagem, nem por duvidar do exemplo dado, mas guiada pela felicidade de ver cumprida a promessa, levada pela vontade de prestar um serviço, movida pelo impulso interior de sua alegria.

Já plena de Deus, aonde ir depressa senão às alturas? A graça do Espírito Santo ignora a lentidão. Manifestam-se imediatamente os benefícios da chegada de Maria e da presença do Senhor, pois quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança exultou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo (Lc 1,41).

Notai como cada palavra está escolhida com perfeita precisão e propriedade: Isabel foi a primeira a ouvir a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça; aquela ouviu segundo a ordem da natureza, este exultou em virtude do mistério. Ela percebeu a chegada de Maria, ele, a do Senhor; a mulher ouviu a voz da mulher, o menino sentiu a presença do Filho; elas proclamam a graça de Deus, eles realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães o mistério de misericórdia; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a inspiração de seus filhos.

A criança exultou, a mãe ficou cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; mas estando o filho cheio do Espírito Santo, comunicou-o a sua mãe. João exultou; o espírito de Maria também exultou. A alegria de João se comunica a Isabel; quanto a Maria, porém, não nos é dito que recebesse então o Espírito, mas que seu espírito exultou. – Aquele que é incompreensível agia em sua mãe de modo incompreensível – Isabel recebe o Espírito Santo depois de conceber; Maria recebeu antes. Por isso, Isabel diz a Maria: Feliz és tu que acreditaste (cf. Lc 1,45).

Felizes sois também vós, que ouvistes e acreditastes, pois toda alma que possui a fé concebe e dá à luz a Palavra de Deus e conhece suas obras.

Esteja em cada um de vós a alma de Maria para engrandecer o Senhor: em cada um esteja o espírito de Maria para exultar em Deus. Embora segundo a natureza haja uma só Mãe do Cristo, segundo a fé o Cristo é o fruto de todos; pois toda alma recebe o Verbo de Deus desde que, sem mancha e libertada do pecado, guarda a castidade com inteira pureza.

Toda alma que alcança esta perfeição, engrandece o Senhor como a alma de Maria o engrandeceu e seu espírito exultou em Deus, seu Salvador.

Na verdade, o Senhor é engrandecido, como lemos noutro lugar: Comigo engrandecei ao Senhor Deus (Sl 33,4). Não que a palavra humana possa acrescentar algo ao Senhor, mas porque ele é engrandecido em nós: a imagem de Deus é o Cristo e assim, quando alguém age com piedade e justiça, engrandece essa imagem de Deus, a cuja semelhança foi criado; e, engrandecendo-a, participa cada vez mais da grandeza divina.

-- Da Exposição sobre o Evangelho de São Lucas, de Santo Ambrósio, bispo (século IV)

20 de dez. de 2011

O mundo inteiro espera a resposta de Maria


Ouviste, ó Virgem, que vais conceber e dar à luz um filho, não por obra de homem – tu ouviste – mas do Espírito Santo. O Anjo espera tua resposta: já é tempo de voltar para Deus que o enviou. Também nós, Senhora, miseravelmente esmagados por uma sentença de condenação, esperamos tua palavra de misericórdia.

Eis que te é oferecido o preço de nossa salvação; se consentes, seremos livres. Todos fomos criados pelo Verbo eterno, mas caímos na morte; com uma breve resposta tua seremos recriados e novamente chamados à vida.

Ó Virgem cheia de bondade, o pobre Adão, expulso do paraíso com a sua mísera descendência, implora a tua resposta; Abraão a implora, Davi a implora. Os outros patriarcas, teus antepassados, que também habitam a região da sombra da morte, suplicam esta resposta. O mundo inteiro a espera, prostrado a teus pés.

E não é sem razão, pois de tua palavra depende o alívio dos infelizes, a redenção dos cativos, a liberdade dos condenados, enfim, a salvação de todos os filhos de Adão, de toda a tua raça.

Apressa-te, ó Virgem, em dar a tua resposta; responde sem demora ao Anjo, ou melhor, responde ao Senhor por meio do Anjo. Pronuncia uma palavra e recebe a Palavra; profere a tua palavra e concebe a Palavra de Deus; dize uma palavra passageira e abraça a Palavra eterna.

Por que demoras? Por que hesitas? Crê, consente, recebe. Que tua humildade se encha de coragem, tua modéstia de confiança. De modo algum convém que tua simplicidade virginal esqueça a prudência. Neste encontro único, porém, Virgem prudente, não temas a presunção. Pois, se tua modéstia no silêncio foi agradável a Deus, mais necessário é agora mostrar tua piedade pela palavra.

Abre, ó Virgem santa, teu coração à fé, teus lábios ao consentimento, teu seio ao Criador. Eis que o Desejado de todas as nações bate à tua porta. Ah! se tardas e ele passa, começarás novamente a procurar com lágrimas aquele que teu coração ama! Levanta-te, corre, abre. Levanta-te pela fé, corre pela entrega a Deus, abre pelo consentimento. Eis aqui, diz a Virgem, a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,38).

-- Das Homilias em louvor da Virgem Mãe, de São Bernardo, abade (século XII)

19 de dez. de 2011

A Encarnação redentora


A glória do homem é Deus; mas quem se beneficia das obras de Deus e de toda a sua sabedoria e poder é o homem.

Semelhante ao médico que demonstra sua competência no doente, assim Deus se manifesta nos homens. Eis por que o Apóstolo Paulo diz: Deus encerrou todos os homens na desobediência, a fim de exercer misericórdia para com todos (Rm 11,32). Referia-se ao homem que, por ter desobedecido a Deus, perdeu a imortalidade, mas depois obteve misericórdia, recebendo a adoção por intermédio do Filho de Deus.

Se o homem acolhe, sem orgulho nem presunção, a verdadeira glória que procede das criaturas e do criador, isto é, de Deus todo-poderoso que dá a tudo a existência, e se permanece em seu amor, na obediência e na ação de graças, receberá dele uma glória ainda maior, progredindo sempre mais, até se tornar semelhante àquele que morreu por ele.

Com efeito, Cristo se revestiu de uma carne semelhante à do pecado (Rm 8,3) para condenar o pecado e, depois de o condenar, expulsá-lo da carne. Tudo isso para incentivar o homem a tornar-se semelhante a ele, destinando-o a ser imitador de Deus, colocando-o sob a obediência paterna, a fim de que visse a Deus e tivesse acesso ao Pai. O Verbo de Deus habitou no homem e se fez filho do homem, para acostumar o homem a compreender a Deus e Deus a habitar no homem, segundo a vontade do Pai.

Por esse motivo, o sinal de nossa salvação, o Emanuel nascido da Virgem (cf. Is 7,11.14), foi dado pelo próprio Senhor; pois seria ele quem salvaria os homens, já que não poderiam salvar-se por si mesmos. Por isso São Paulo proclama a fraqueza do homem, dizendo: Estou ciente de que o bem não habita em mim (Rm 7,18), indicando que o bem de nossa salvação não vem de nós, mas de Deus. E ainda: Infeliz que sou! Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24). E logo mostra quem o liberta: A graça de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Rm 7,25).

Também Isaías diz: Fortalecei as mãos enfraquecidas e firmai os joelhos debilitados. Dizei às pessoas deprimidas: “Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para nos salvar” (cf. Is 35,3-4). Na verdade, nossa salvação não poderia vir de nós mesmos, mas unicamente do socorro de Deus.

-- Do Tratado sobre as Heresias, de Santo Irineu, bispo (século II)

18 de dez. de 2011

Por seu Filho, Deus nos revelou seu amor

Nenhum homem viu a Deus nem o conheceu, mas ele mesmo se manifestou. Manifestou-se pela fé, pois só a ela é concedida a visão de Deus. O Senhor e Criador do universo, Deus, que fez todas as coisas e as dispôs em ordem, não só amou os homens, mas também foi paciente com eles. Deus sempre foi, é e será o mesmo: benigno e bom, isento de ira, veraz; só ele é bom. E quando concebeu seu grande e inefável desígnio, só o comunicou a seu Filho. Enquanto mantinha oculto e em reserva seu plano de sabedoria, parecia abandonar-nos e esquecer-se de nós. Mas, quando revelou por seu Filho amado e manifestou o que havia preparado desde o princípio, ofereceu-nos tudo ao mesmo tempo: participar de seus benefícios, ver e compreender. Quem de nós poderia jamais esperar tamanha generosidade?

Tendo Deus, portanto, tudo disposto em si mesmo com o seu Filho, deixou-nos, até estes últimos tempos, seguir nossos impulsos desordenados, desviados do caminho reto pelos maus prazeres e paixões. Não que ele tivesse algum gosto com nossos pecados; tolerando-os, não aprovava aquele tempo de iniqüidade, mas preparava este tempo de justiça. Assim, convencidos de termos sido, naquele período, indignos da vida em razão de nossas obras, tornemo-nos agora dignos dela pela bondade de Deus. E depois de mostrar nossa incapacidade de entrar pelas próprias forças no Reino de Deus, nos tornemos capazes disso pelo poder divino.

Quando, pois, a nossa iniqüidade atingiu o auge e se tornou manifesto que a paga merecida do castigo e da morte estava iminente, chegou o tempo estabelecido por Deus para revelar sua bondade e poder. Ó imensa benignidade e amor de Deus! Ele não nos odiou, não nos rejeitou nem se vingou de nós, mas nos suportou com paciência. Cheio de compaixão, assumiu nossos pecados, entregou seu próprio Filho como preço de nossa redenção: o santo pelos pecadores, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. O que poderia apagar nossos pecados a não ser sua justiça? Por quem poderíamos ser justificados, nós, ímpios e maus, senão pelo Filho de Deus?

Ó doce intercâmbio, ó misteriosa iniciativa, ó surpreendente benefício, ser a iniqüidade de muitos vencida por um só justo e a justiça de um só justificar muitos ímpios!

-- Da Carta a Diogneto (século II)

15 de dez. de 2011

Maria, mãe de Deus - um guia de leituras bíblicas (parte II)

IV: A PRIMEIRA FIEL

Os evangelistas retratam Maria como uma pessoa de fé, submetida a incertezas, da mesma forma que todos os fiéis.

Visitação, altar da Igreja de Santa Maria de Lucca
1. A revelação

Desde a anunciação, Jesus é o objeto de fé de maria, que é iluminada por mensagens baseadas no AT. O filho se chamara Jesus, será filho do altíssimo, filho de David, rei de Israel, o Messias anunciado. Na apresentação no templo, Maria ouve as profecias do servo de Deus aplicadas ao seu Filho: será ele luz para as nações, sinal de contradição.

A estas palavras, é necessário acrescentar, mesmo que os textos bíblicos não o digam, que ela experimentou em seio a vida de uma criança que será o Messias, mantendo o silêncio e a pobreza. E, mais tarde, quando seu Filho lhe fala, utiliza o mesmo tom abrupto das profecias, Maria deve reconhecer nestas palavras a independência e autoridade do Filho, a superioridade da fé sobre a maternidade carnal.

2. A fidelidade de Maria 

São Lucas relatou as reações de Maria ante as revelações divinas: sua dúvida (Lc 1,29), sua dificuldade (Lc 1,34), sua surpresa frente ao oráculo de Simeão (Lc 2,23), sua incompreensão da palavra de Jesus no templo (Lc 2,50). Frente a um mistério que supera sua inteligência, reflete sobre a mensagem (Lc 1,29; Lc 2,33), reflete sobre este acontecimento misterioso, conservando sua lembrança, meditando em seu coração (Lc 2,19.51).

Aceita a palavra de Deus, ainda que transtorne seus projetos (Mt1,19). Suas respsotas ao chamamento divino, visitação, apresentação de Jesus no templo, são também atos em que vemos Deus agindo através de Maria: ela santifica o precursor, se oferece ao Pai. Fiel, guarda o silêncio quando seu Filho assume uma vida pública e assim permanece até a cruz.

3. O Magníficat.

No cântico de Maria, São Lucas transmite uma tradição israelita que conservou não tanto as palavras de Maria mas muito mais o sentido de sua oração, modelo para o povo de Deus. Seguindo a forma clássica de um salmo de ação de graças e servindo-se de temas tradicionais do saltério, Maria celebra uma novidade: o reino de Deus está presente. Nela e por ela a salvação é anunciada, a promessa é cumprida, o mistério das bem-aventuranças é realizado. A fé de Maria é a mesma do povo de Deus: uma fé humilde, que não se abala pelas dificuldades e dúvidas, que se alimenta ao meditar sobre a salvação e pelo serviço generoso (Jo 3,21; Jo 7,17; Jo 8,31s). Em razão desta fé, guarda a palavra de Deus e Jesus mesmo a proclama bem-aventurada, por Lhe ter levado em suas entranhas(Lc 11,27s).

A Muher do Apocalipse, obra de Peter Rubens.
V. MARIA E A IGREJA


1. A Virgem

Maria, exemplo de fidelidade, chamada à salvação pela graça de Deus, resgatada pelo sacrifício de seu Filho, ocupa um lugar especial na Igreja. Nela vemos o mistério da Igreja vivido em plenitude por uma alma que aceita a palavra divina com toda fé. A Igreja, esposa de Cristo (Ef 5,32), uma esposa virgem (Ap 21,2), que Cristo mesmo santificou purificando-a (Ef 5,25ss). Toda alma cristã, participando desta vocação, torna-se como "esposa de Cristo virgem e pura" (2Cor 11,2). A fidelidade da Igreja a este chamado divino se realiza primeiro em Maria, e já na forma mais perfeita. Este é o sentido da virgindade, a qual Deus nos convida, e a maternidade de Maria não diminui, senão consagrou. Na história da Igreja, com sua atitude, Maria adota posição contrária a de Eva (2Cor 11,3).

2. A mãe

Além disso, Maria se encontra numa posição única, que não pertence a nenhum outro membro da Igreja. Ela é a mãe, o ser humano do qual o Filho de Deus se nutre e nasce. Esta função é a que permite associá-la à Filha de Sião (Sf 3,14; Lc 1,28). Se a nova humanidade é comparável à mulher, cujo primigênito é Cristo (Ap 12,5), como negar que o mistério se realizou concretamente em Maria, que esta mulher e mãe não é um símbolo puro? Neste ponto, a relação entre Maria e a Igreja se afirma com força, através da mulher arrebatada por Deus dos ataques da serpente (Ap 12, 13-16), enquanto Eva, a primeira mulher, foi enganada pela serpente (2Cor 11,3; Gn 3,13). Maria é ao mesmo tempo a Igreja, pois a sua missão também é um desígnio e Deus em favor da salvação do homens. Por isto, a tradição associa Maria e a Igreja, chamando-a de "nova Eva" e Jesus de "novo Adão".

3. O mistério de María.

Ao examinarmos a Escritura percebemos que há uma relação entre o mistério da Igreja e o de Maria. O mistério da Igreja revela e explica o mistério de Maria, que o viveu de forma oculta.  Em Maria e na Igreja há o mistério da virgindade, o mistério nupcial no qual Deus é o esposo, o mistério da maternidade, da filiação e da atuação do Espírito Santo (Lc 1,35; Mt 1,20; Rm 8,15), primeiro em frente Cristo (Lc 1,31; Ap 12,5), e mais tarde nos membros da sua Igreja, seu corpo (Jo 19,26s; Ap 12,17). 

O mistério da virgindade implica uma pureza total, fruto da graça de Cristo, que faz Maria e a Igreja "santa e imaculada"(Ef 5,27). Neste ponto se manisfesta o sentido da concepção imaculdade Maria. O mistério da maternidade implica uma união total com  Cristo, em sua vida terrena, até a cruz (Lc 2,35; Jo 19,25s; Ap 12,13), e na glória da sua ressurreição (Ap 21). Este é o sentido da Assunção de Maria. Imaculada conceição e assunção: estes termos que marcam a vida de Maria, dos quais as Escrituras não falam explicitamente, se manisfestam na vida da igreja, até o ponto em que esta mesma Igreja os descobriu. 

Não trata-se de elevar Maria até o nível de Jesus, como mediadora junto ao mediador. Ela foi "cheia de graças" por parte de Deus (Lc 1,28) mas se mantém no mesmo nível dos demais membros da Igreja "cheios e graça no seu amado" (Ef 1,6). Porém foi por meio dela que o Filho de Deus, mediador único, se fez irmão de todos os homens e estabeceu uma relação orgânica com todos nós, que podemos nos nutrir da Igreja, que é o seu corpo (Col 1,18).  A atitude dos cristãos frente a Maria deve ser determinada por este fato fundamental, uma relação estreita com a Igreja, nossa Mãe (Sal 87,5; Jo 19,27). 



13 de dez. de 2011

A humildade e a paz


Não te preocupes muito em saber quem é por ti ou contra ti; mas deseja e procura que Deus te ajude em tudo que fizeres.

Tem boa consciência e Deus será tua boa defesa.

A quem Deus quiser ajudar, nenhum mal poderá prejudicar.

Se souberes calar e sofrer, verás certamente o auxílio do Senhor.

Ele sabe o tempo e o modo de te libertar; portanto, entrega-te a ele inteiramente.

A Deus pertence aliviar-nos e tirar-nos de toda confusão.

Às vezes é muito útil, para guardar maior humildade, que os outros conheçam e repreendam nossos defeitos.

Quando o homem, por causa de seus defeitos, se humilha, então facilmente acalma os outros, e desarma os que estão irados contra ele.

O humilde, Deus protege e livra; ao humilde ama e consola. Ao homem humilde se inclina; ao humilde dá-lhe abundantes graças, e depois de seu abaixamento eleva-o a grande honra.

Ao humilde, revela seus segredos, e com doçura o atrai a si e convida.

O humilde, depois de receber uma afronta, conserva sua paz: porque confia em Deus e não no mundo.

Não julgues que fizeste algum progresso se não te consideras inferior a todos.

Primeiro conserva-te em paz; depois poderás pacificar os outros.

O homem pacífico é mais útil do que o letrado.

O homem dominado pelas paixões, até o bem converte em mal e acredita facilmente no mal.

O homem bom e pacífico tudo converte em bem.

Quem está em boa paz não suspeita mal de ninguém. Mas quem é descontente e inquieto, com diversas suspeitas se atormenta: não tem sossego nem deixa os outros sossegar.

Diz muitas vezes o que não devia; e deixa de fazer o que mais lhe conviria.

Preocupa-se com as obrigações alheias e descuida-se das próprias.

Zela, portanto, primeiro por ti mesmo, e depois poderás zelar devidamente por teu próximo.

Bem sabes desculpar e disfarçar tuas faltas, mas não queres aceitar as desculpas dos outros.

Seria mais justo acusares a ti e desculpares teu irmão.

Se queres que te suportem, suporta também os outros.

-- Do livro "Imitação de Cristo"(século XV)

10 de dez. de 2011

João é a voz, Cristo a Palavra

João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra (Jo 1,1). João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde o princípio.

Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.

Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar nossos corações, vejamos a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer, a palavra já está em meu coração. Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o que já está no meu.

Procurando então como fazer chegar a ti e penetrar em teu coração o que já está no meu, recorro à voz e por ela falo contigo. O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração, sem haver deixado o meu.

Não te parece que esse som, depois de haver transmitido minha palavra, está dizendo: É necessário que ele cresça e eu diminua? (Jo 3,30). A voz ressoou, cumprindo sua função, e desapareceu, como se dissesse: Esta é a minha alegria, e ela é completa (Jo 3,29). Guardemos a palavra; não percamos a palavra concebida em nosso íntimo.

Queres ver como a voz passa e a palavra divina permanece? Que foi feito do batismo de João? Cumpriu sua missão e desapareceu; agora é o batismo de Cristo que está em vigor. Todos cremos em Cristo e esperamos dele a salvação: foi o que a voz anunciou.

Justamente porque é difícil não confundir a voz com a palavra, julgaram que João era o Cristo. Confundiram a voz com a palavra. Mas a voz reconheceu o que era para não prejudicar a palavra. Eu não sou o Cristo (Jo 1,20), disse João, nem Elias nem o Profeta. Perguntaram-lhe então: Quem és tu? Eu sou, respondeu ele, a voz que grita no deserto: “Aplainai o caminho do SenhorÓ (Jo 1,19.23). É a voz do que grita no deserto, do que rompe o silêncio. Aplainai o caminho do Senhor, como se dissesse: “Sou a voz que se faz ouvir apenas para levar o Senhor aos vossos corações. Mas ele não se dignará vir aonde o quero levar, se não preparardes o caminho”.

O que significa: Aplainai o caminho, senão: Orai como se deve orar? O que significa ainda: Aplainai o caminho, senão: Tende pensamentos humildes? Imitai o exemplo de João. Julgam que é o Cristo e ele diz não ser aquele que julgam; não se aproveita do erro alheio para uma afirmação pessoal. Se tivesse dito: “Eu sou o Cristo”, facilmente teriam acreditado nele, pois já era considerado como tal antes que o dissesse. Mas não disse; pelo contrário, reconheceu o que era, disse o que não era, foi humilde. Viu de onde lhe vinha a salvação; compreendeu que era uma lâmpada e temeu que o vento do orgulho pudesse apagá-la.

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, Bispo (século V)

9 de dez. de 2011

Eva e Maria


A queda e expulsão do Paraíso, Michelangelo

Quando o Senhor veio de modo visível ao que era seu, levado pela própria criação que ele sustenta, tomou sobre si, por sua obediência, na árvore da cruz, a desobediência cometida por meio da árvore do paraíso. A sedução de que foi vítima, miseravelmente, a virgem Eva, destinada ao primeiro homem, foi desfeita pela boa-nova da verdade, maravilhosamente anunciada pelo anjo à Virgem Maria, já desposada com um homem.

Assim como Eva foi seduzida pela conversa de um anjo e afastou-se de Deus, desobedecendo à sua palavra, Maria recebeu a boa-nova pela anunciação de outro anjo e mereceu trazer Deus em seu seio, obedecendo à sua palavra. Uma deixou-se seduzir de modo a desobedecer a Deus, a outra deixou-se persuadir a obedecer-lhe. Deste modo, a Virgem Maria tornou-se advogada da virgem Eva.

Por conseguinte, recapitulando em si todas as coisas, o Senhor declarou guerra contra o nosso inimigo. Atacou e venceu aquele que no princípio, em Adão, fez de todos nós seus prisioneiros; e esmagou sua cabeça, conforme estas palavras, ditas por Deus à serpente, que se lêem no Gênesis: Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça enquanto tu tentarás ferir o seu calcanhar (Gn 3,15).

Desde esse momento, pois, foi anunciado que a cabeça da serpente seria esmagada por aquele que, semelhante a Adão, devia nascer de uma virgem. É este o descendente de que fala o Apóstolo na sua Carta aos Gálatas: A lei foi estabelecida até que chegasse o descendente para quem a promessa fora feita (cf. Gl 3,19).

Na mesma Carta, o Apóstolo se exprime ainda com mais clareza, ao dizer: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher (Gl 4,4). O inimigo não teria sido vencido com justiça se o homem que o venceu não tivesse nascido de uma mulher, pois desde o princípio ele tinha se oposto ao homem, dominando-o por meio de uma mulher.

É por isso que o próprio Senhor declara ser o Filho do homem, recapitulando em si aquele primeiro homem a partir do qual foi modelada a mulher. E assim como pela derrota de um homem o gênero humano foi precipitado na morte, pela vitória de outro homem subimos novamente para a vida.

-- Do Tratado contra as heresias, de Santo Irineu, bispo (século II)

7 de dez. de 2011

Maria, mãe de Deus - um guia de leituras bíblicas (parte I)


Maria da humildade.
Obra de Domenico di Bortolo, 1433)
O papel importante que desempenha a mãe de Jesus na tradição cristã está esboçado nas Escrituras desde a revelação. Se a primeira geração cristã centrou seu interesse no ministério de Jesus, do batismo até a Páscoa (At 1,22; 10,37ss; 13,24ss), foi porque deveria responder a urgência da missão apostólica. Era normal que os relatos sobre a infância de Jesus aparecessem tardíamente. 

São Marcos os ignora, contentando-se a mencionar somente duas vezes a mãe de Jesus (Mc 3,31-35; 6,3). São Mateus os conhece, porém centra os relatos em José, o descendente de Davi, que recebe mensagens celestiais (Mt 1,20s; 2,13.20.22); e no nome de Jesus, o filho da Virgem (Mt 1,18-25). São Lucas destaca María plenamente; ela desempenha um papel principal, é uma personagem importante; está presente também nas origens da Igreja, no Cenáculo  (At 1,14). Finalmente, São João enquadra a vida de Jesus entre cenas marianas (Jo 2,1-12; 19,25ss). Tanto em Caná, como no Calvário, define Maria primeiro como aquela que crê, depois como mãe dos discípulos. Esta tomada de consciência progressiva de Maria não é mero amadurecimento psicológico, pois reflete um conhecimento mais profundo do mistério de Jesus, inseparável da "mulher" da qual escolheu nascer (Gal 4,4). 

Alguns títulos marianos são especialmente importantes e merecem atenção.

I. A Filha de Sião

1. María aparece em primeiro lugar semelhante a outras mulheres da época. Como testemunham os textos da época e as numerosas Marías do NT, seu nome, o mesmo de uma irmã de Moisés (Ex 15,20), era comum na época de Jesus. Em aramaico significa provavelmente «princesa» ou «senhora». Lucas, apoiando-se em tradições da Palestina, apresenta María como uma piedosa mulher judía, fielmente submissa a lei (Lc 2,22.27.39), falando nos mesmos termos do AT l ao responder ao anjo (Lc 1,38). O Magnificat é uma compilação de salmos e se inspira principalmente no cântico de Ana (Lc 1,46-55; 1Sm 2,1-10).

2. Todavía, segundo Lucas, María não é uma mulher simples judía. Nas cenas da anunciação e da visitação (Lc 1,26-56) apresenta María como a filha de Sião, no exato sentido que tinha esta expressão no AT: a personificação do povo de Deus. Quando o anjo diz "regojiza" (Lc 1,28), não é uma saudação comum, mas evoca as promessas da vinda do Senhor a sua cidade santa (Sf 3,14-17; Zc 9,9). O título «cheia de graças», a faz objeto especial do amor divino e lembra várias personagens importantes da história do povo judaico. Estes indicios literários correspondem a função que exerce María nestas cenas: somente ela recebe,  em nome da casa de Jacó, o anuncio da salvação; ela aceita e faz assim possível seu cumprimento.  Finalmente, no Magnificat combina sua gratidão pessoal (Lc 1,46-49) com outros em que fala em nome da raça de Abraão, com reconhecimento e júbilo (Lc 1,50-55).

II. A Virgem

1. A virgindade de María na concepção de Jesus se afirma em dois textos independentes (Lc 1,26-38; Mt 1,18-23). Está confirmada por alguns testemunhos antigos de João: os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus (Jo 1, 13). A virgindade está, portanto, solidamente testemunhada; seu sentido é expreseado claramente por São Mateus como uma realização da profecia (Is 7,14); São Lucas também refere-se a mesma profecía (Lc 1,31s).

2. María desejava a virgindade? Seu casamento com José exige, a primeira vista, uma resposta negativa. Além disso, é sabido que Israel não dava grande valor religioso a la virgindade (Jz 11,37s). São Lucas, porém, relata uma fato importante. Ao anjo que lhe anuncia sua maternidade, objeta María: Como será isto, pois não conheço homem? (Lc 1,34). A frase não é clara e tem recibido muitas interpretacões. A mais tradicional, sustentada por estudiosos, é esta: María é a esposa legal de José. Se neste matrimonio mantem relações conjugais normais (que a língua bíblica designa pela palavra «conhecer», p. e., Gn 4,1), o anúncio de sua maternidade não pode cria nenhum problema. José pertece a família de Davi; seu filho pode ser o Messías anunciado pelo anjo. Então a pergunta perde significado. Porém, seu significado permite outra tradução: "pois não quero conhecer nenhum homem". Indicaria em Maria um propósito de virgindade. Esta decisão seria surpreendente para uma jovem esposa, mas estudos indicam que não era totalmente estranha na Palestina da época. Além disso, uma jovem que desejasse guardar virgindade não poderia recusar um casamento decidido pelo seu pai. Portanto, bem examinado, o texto é favorável a virgindade de Maria.

3. E qual sentido Maria dava a esta virgindade? Entre os essênios da época, o celibato era justificado como uma estado de pureza, significava a abstenção de pecados da carne. Maria não expressa seus motivos, mas pelo relato de São Lucas, haveria razões mais espirituais e positivas. O anjo do Senhor a chama de "muito amada". Já Maria que ser sua "serva", com um gesto nobre (Lc 1,38). Sua virgindade seria assim uma consagração, um dom de amor exclusivo ao Senhor. Isto já aparece esboçado no AT. Embora não fale em virgindade religiosa, não cessa de pedir um amor fiel e exclusivo ao Senhor (Dt 6,5). Maria, desta forma, reservando-se inteiramente a Ele, responde ao chamamento dos profetas (Oseias, Jeremias, Ezequiel, ..), de muitos salmos (Sl 16; Sl 23; Sl 42; Sl 63; Sl 84) e dos livro dos Cânticos dos Cânticos.

4. A menção à "irmãos" de Jesus (Mc 3,31; Mc 6,3; Jo 7,3; At 1,14; 1Cor 9,5; Gal 1,19) tem conduzido vários críticos a supor que Maria não manteve a virgidnade após o nascimento de Jesus. Esta opinião contradiz a tradição, que não atribui nenhum outro filho a Maria. Tam'bem é sabido que na língua original, "irmão" poderia se referir a parentes próximos e aliados de Jesus.


III. A MÃE

Em todos os relatos da tradição evangélica, Maria é, acima de tudo, a mãe de Jesus. Diversos textos utilizam este título (Mc 3,31; Lc 2,48; Jo 2,1-12; 19,25s). E isto define toda sua função na obra da salvação. 

1. A maternidade é voluntária, como destaca o relato da Anunciação (Lc 1,26-38). Ante a notícia inesperada, São Lucas deixa claro que a preocupação é como conciliar este chamado de Deus com a virgindade. O anjo responde que aceitar a maternidade também permitirá aceitar a virgindade. Maria, completamente esclarecida, aceita; é a serva do Senhor, como foram servos Abraão, Moisés e os profetas; seu serviço, como o deles; é aceito em liberdade.

Stabat Mater.
Obra de Gentile da Fabriano, 1410.
2. Quando Maria dá a luz, sua tarefa, como a de todas as mães, está apenas começando. Deve educar a Jesus. Com José compartilha suas responsabilidades, leva o filho ao templo para apresentá-lo ao Senhor. Recebe de Simeão, como resposta, o anúncio de sua missão (Lc 2,29-32.34s).

3. Maria ainda é a mãe quando Jesus chega a idade adulta. Está junto do filho nos momentos decisivos (Mc 3,21.31; Jo 19,25ss). Aos doze anos, israelita já em idade considerada adulta, Jesus proclama a seus pais que deve, antes de tudo, obedecer a seu Pai celestial (Lc 2,49). Quando inicia sua missõ em Caná, suas palavras a Maria, "mulher deixa-me" (Jo 2,4) são as de um filho preocupada com sua responsabilidades, que reinvidica independência. No futuro, Maria aparece masi como uma mulher fiel (Mc 3,32-35; Lc 11,27s).

4. Tudo se consuma na cruz. Simeão, ao prever o destino de Jesus, já havia anunciado que a espada iria atravessar a alma de maria e unir-la ao sacrifício de seu filho redentor (Lc 2,34s). Esta consumada sua amternidade, como descreve São João (Jo 19,25ss). Maria está em pé junto da cruz. Jesus lhe chama "mulher", que indica sua autoridade de Senhor. Mostrando a Maria o discípulo presente, diz: "Eis o teu filho", chamando-a a uma nova maternidade, mãe do povo de Deus, que será agora seu papel. São Lucas insinua esta missão mostrando-a em oração com os apóstolos, a espera do Espírito Santo (At 1,14). 



5 de dez. de 2011

A profecia é mais excelente que as línguas


Tanto na oração privada como na pública se vê que a profecia é mais excelente que as línguas.
 São Paulo Apóstolo

13. Portanto, o que fala em línguas peça o dom de interpretar.
14. Porque se oro em línguas, minha respiração ora, mas minha mente fica sem fruto.
15. Então que fazer? Orarei com a boca, mas orarei também com a mente. Salmodiarei com a boca, mas salmodiarei também com a mente.
16. Porque se não dá graças senão com palavras que exalas, quem suprirá aos simples? Como dirão amém a tu ação de graças se não sabem o que dizes?
17. Porque tu, certamente, bem que das graças, porém o outro não se edifica. 
Já mostra acima o Apóstolo a excelência do dom da profecia sobre o dom das línguas, com razões tomadas da parte da exortação, e agora demonstra o mesmo com razões tomadas da parte da oração, pois, em efeito, estas duas coisas, a oração e a exortação, às exercitamos com a língua.
Para isto procede de duas maneiras. Primeiramente prova com razões a excelência da profecia sobre o dom das línguas; e em segundo lugar com exemplos, pelo qual disse: Dou graças a meu Deus, etc.
E enquanto ao primeiro procede também de dois modos. Em primeiro termo põe a necessidade da oração; e logo faz ver que na oração mais vale o dom da profecia que o dom das línguas. Porque se oro em línguas, etc.
1. Razões da excelência da profecia
Assim é que primeiro diz: Disse que o dom de línguas sem o dom da profecia carece de valor, e pelo mesmo, como o interpretar é próprio da profecia, que é mais excelente que aquele, o que fala em línguas desconhecidas ou estranhas, ou de ocultos mistérios, peça, é claro que a Deus, o dom de interpretar, ou seja, que lhe seja dada a graça de interpretar. Orai para que Deus nos abra uma porta (Colos. 4,3).
A Glosa explica o pedir de outra maneira. Com efeito, orar ou pedir se entende de duas maneiras: ou como suplicar a Deus, ou como persuadir, como se dissera: O que fala em línguas, peça, ore, ou seja, de tal maneira persuada que interprete, e neste sentido toma aqui a Glosa o orar, em todo o capítulo.
Mas não é esta a intenção do Apóstolo, senão que seja uma insistente súplica a Deus. Porque se oro, etc. Aqui mostra que ao orar mais vale a profecia que o dom das línguas, e isto de duas maneiras. Primeiramente por razão tomada da parte dele mesmo que ora; em segundo lugar, por razão tomada da parte do que ouvePorque se não bendizes, etc.
Enquanto ao primeiro, na ocasião, procede de duas maneiras. Primeiramente dá a razão do que quer demonstrar; e logo rechaça a objeção: Então, que fazer? Sobre o primeiro é de saber-se que de duas maneiras é a oração. Teremos a oração privada quando um ora, dentro de si mesmo e por si mesmo. E a oração pública quando se ora frente ao povo e pelos demais; e em ambas as orações pode usar-se do dom das línguas e do dom da profecia. E se trata de demonstrar que em uma e outra oração vale mais o dom da profecia que o dom das línguas.
E primeiramente na oração privada dizendo que se ali há um simples ou incrédulo, quem faz sua oração salmodiando ou dizendo Pai Nosso, mas não se compreende o que diz, esse tal ora em línguas e o mesmo lhe dá orar com palavras que o Espírito Santo lhe concede e até com palavras de outros; mas se é outro o que ora e entende o que diz, este ora e profetiza. E é claro que mais ganha o que ora e entende, do que aquele que somente ora com a língua, ou seja, o que não entende o que diz.
Porque quem entende se renova em sua mente e em seu afeto; e entretanto a mente do que não entende permanece sem fruto de renovação. Daqui que como é melhor o renovar-se na mente e afeto do que unicamente no afeto, resulta claro que na oração mais vale o dom da profecia do que somente o dom de línguas. Isto o expressa dizendo: Digo que peça o dom de interpretar. Porque se oro em línguas, ou seja, se para orar uso o dom de línguas, de modo que digo algo que não entendo, então meu espírito, isto é, o Espírito Santo que me é dado, pede que me incline e mova a pedir. E com tal oração não deixo de ganhar, porque o mesmo fato de que me mova pelo Espírito Santo é meritório para mim. Pois nós não sabemos pedir o que convém; pois o próprio Espírito Santo nos faz suplicar (Rm 8,26). Ou também: Espírito meu, meu espírito, isto é, minha razão, me indica que fale coisas que são para o bem, ou com palavras próprias minhas, ou de outros santos. Ou também: Espírito meu, meu espírito, isto é, a faculdade imaginativa, pede, enquanto vozes ou semelhanças das coisas corporais são tão somente na imaginação sem aquilo pelo qual se entendam pelo entendimento; e por isso adiciona: mas minha mente, isto é, meu entendimento, fica sem fruto, porque não entende. Pelo que na oração é melhor a profecia ou interpretação do que o dom de línguas. Contudo, e quando alguém ora e não entende o que disse, se fica sem o fruto da oração?
2. Os frutos da oração
Ruínas da cidade de Corinto, localizada na atual Grécia.
Devemos dizer que é duplo o fruto da oração. Um fruto é o mérito que se resulta ao homem; o outro fruto é a consolação espiritual e a devoção que se alcança pela oração. Agora bem, enquanto o fruto da devoção espiritual se priva quem não atende ao que ora ou que não o entende; mas enquanto ao fruto do mérito não se pode dizer que se prive, porque se assim fosse muitas orações ficariam sem mérito, pois com dificuldade pode dizer o homem um Pai Nosso sem que seja exigida a mente pelas demais coisas. Pelo qual devemos dizer que quando o que ora se distrai às vezes do que disse, ou quando alguém em uma obra meritória não pensa continuamente em cada um de seus atos que faz por Deus, não perde a razão do mérito. E assim é porque em todos os atos meritórios que se ordenam a um fim reto não se requer que a intenção do agente se una ao fim em cada ato, senão que a primeira energia que move a intenção permaneça na obra inteira ainda quando as vezes em algo particular se distraia; e essa primeira energia faz meritória toda a obra a não ser que se interrompa por uma afeição contrária que do fim predito leve a um fim contrário.
Mas a atenção é tripla. Uma é a respeito das palavras que diz o homem, e esta às vezes danifica enquanto impede a devoção; outra é com relação ao sentido das palavras, e esta danifica, embora não é muito nociva; e a terceira é com relação ao fim, e esta é a melhor e quase necessária.
Todavia, estas palavras do Apóstolo: a mente fica-se sem fruto se entendem do fruto de renovação.Então que fazer? etc. Porque pode alguém dizer: Se orar com a língua é algo sem fruto da mente e todavia a boca ora, porque, em conseqüência, não há que orar com a boca?
O Apóstolo o resolve dizendo que se deve orar das duas maneiras, verbal e mentalmente, porque o homem deve servir a Deus com tudo o que tem de Deus; e como de Deus tem respiração e mente, pelo mesmo de uma e outra maneira deve orar. Com todo seu coração louva ao Senhor, etc. (Sl 47,10). Pelo qual disse: Orarei com a boca, mas orarei também com a mente; salmodiarei com a boca, mas, etc.
E disse orar e salmodiar, porque a oração ou é uma deprecação, e a isto se refere o orar, ou é para louvar a Deus, e a isto se refere o salmodiar. Sobre estas duas coisas disse São Tiago (Tg 5,13): Sofre algum entre vós? Que ore. Está algum alegre? Que cante salmos. E nos Salmos 91,2: Bom é salmodiar, etc. Assim é que orará verbalmente, isto é, com a imaginação, e com sua mente, isto é, com a vontade. Porque se não louvas senão com respiração, etc. Isto mostra em segundo lugar que o dom da profecia vale mais que o dom de línguas, ainda na oração pública, na qual se dá quando o sacerdote ora publicamente, e às vezes diz coisas que não entende, e às vezes coisas que entende. E sobre isto procede o Apóstolo de três maneiras.
Primeiramente da razão; logo já põe a vista: Como dirão amém? etc.; e por último prova o que havia suposto: Se não sabem o que dizes.
Em efeito, disse assim: Disse que o dom da profecia na oração privada vale mais, porque se não louvas, etc., e também na pública, porque se não louvas senão com a respiração, isto é, em uma língua que não se entenda, ou com a imaginação, e movido pelo Espírito Santo, quem suprirá aos simples? Simples é propriamente aquele que não conhece senão a língua materna: Como se dissera: Quem dirá aquilo que deve dizer ali o simples? Ou seja: Amém. E por isso disse: Como dirá amém a tua ação de graças? O que a Glosa explica assim: Como se porá em harmonia com a ação de graças feita por ti na representação da Igreja? Quem seja bendito na terra será bendito em Deus. Amém (Is 65,16). Amém é o mesmo que faça-se, ou assim seja; como se dissera: Se não entende o que dizes, como assentira ao que dizes? Pode alguém assentir, ainda sem entender, mas tão somente em geral, não em concreto ou em especial, porque não pode entender que coisas boas dizes nem o que é que tão só bendizes. Mas porque não se hão de dar as bendições na língua vulgar para que se entendam pelo povo e se adapte estas melhor a elas?
Devemos dizer que isto assim foi felizmente na Igreja primitiva, mas já estando instruídos os fiéis e sabendo o que é que ouvem no oficio comum, se dizem os louvores em latim.
Consequentemente, prova o Apóstolo porque não se pode dizer Amém quando disse: Porque, certamente, bem que tu dá graças, isto é, embora tu dês boas graças à Deus enquanto entendes; mas outros, que ouvem e não entendem, não se edificam, enquanto não entendem em especial, embora em geral entendam e se edifiquem. Não saia de vossa boca palavra danosa, senão a que seja conveniente para a edificação da fé (Ef 4,29). E pelo mesmo é melhor que não somente com a língua se louve, senão que também se interprete e se ponha à vista, embora tu que da graças, bem o faças.
 -- Dos Comentários a Primeira Epístola aos Coríntios, de São Tomás de Aquino (século XIII)

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