5 de mar. de 2012

A vida de Moises - Introdução

* Neste tempo de quaresma, a liturgia nos indica a história de Moisés como apropriada, exatametne para refazermos o caminho dos judeus no deserto até a Páscoa, caminho que, de certa forma, repetido por Jesus Cristo ao longo de sua vida. Para ajudar a todos, e muito a mim, vou publicar em partes uma longa explicação catequética de São Gregório de Nissa sobre Moisés. Aqui vai a introdução.
São Gregório de Nissa


1. HISTÓRIA DE MOISÉS
PREFÁCIO

Os aficcionados pelas corridas de cavalos, embora aqueles a quem apóiam nos esforços das corridas não se descuidem um instante em suas tentativas de ser velozes, nas arquibancadas e envolvendo com os olhos todo o certame, gritam no desejo de os ver triunfar, e com os gritos incitam ao cocheiro e aos cavalos – ao menos assim o crêem - a um impulso mais forte; dobram os joelhos ao mesmo tempo que os cavalos e estendem as mãos para a frente, agitando-as como um chicote. Não atuam assim porque estas coisas causem a vitória, mas pelo interesse que sentem pelos participantes, que os leva a mostrar sua preferência com a palavra e com o gesto. 

Algo semelhante me parece acontecer contigo, o mais estimado dos amigos e irmãos: enquanto no estádio das virtudes te empenhas valentemente na competição divina e avanças com passos ágeis e rápidos para a recompensa do chamado que vem de cima, te animo com minhas palavras, e te apresso, e te exorto a aumentar o esforço para ser mais veloz. Atuo assim não como quem se deixa levar por um impulso irrefletido, mas como quem proporciona a um filho querido tudo o que lhe é grato. Como na carta que me enviaste recentemente me pedes um conselho para a vida perfeita, me pareceu conveniente te propor com minhas palavras algo que talvez só te será útil se se converter para ti em um exemplo eficaz de obediência. 

Com efeito, se eu, que estou colocado no lugar de pai para tantas almas, considero conveniente a meus cabelos brancos aceder ao pedido de tua juventude virtuosa, tanto mais conveniente será que se reforce em ti a disposição à docilidade, agora que a tua juventude tem sido instruída por mim a uma obediência voluntária. 

E já basta deste tema. Iniciemos já o assunto proposto, tomando a Deus como guia de nosso discurso. Pediste-me, meu querido, que te trace um esboço de qual é a vida perfeita, com a intenção evidente de aplicar a tua própria vida – se o que procuras se encontra em minha resposta – a graça indicada por minhas palavras. Sinto-me igualmente incapaz destas coisas: confesso que se encontra acima de minhas forças tanto o definir com palavras em que consiste a perfeição, como o mostrar em minha vida o que o espírito entende dela. Talvez não só eu, mas também muitos dos grandes e avançados na virtude confessarão que uma coisa assim também não é alcançável para eles. 

Explicarei com a maior clareza o que estou tentando dizer, para não parecer, dizendo-o com as palavras do Salmo, que tenho temor onde não deve haver temor (Sal 13, 5). Em todas as coisas pertencentes à ordem sensível, a perfeição está circunscrita por alguns limites, como sucede com a quantidade contínua ou descontínua. Com efeito, tudo aquilo que se pode medir quantitativamente se encontra em limites bem definidos, e alguém que considere um pedaço ou o número dez sabe bem que, para essas coisas, a perfeição consiste em ter um começo e um fim. 


Por outro lado, com relação à virtude, aprendemos com o Apóstolo que o único limite de perfeição consiste em não ter limite. Aquele divino Apóstolo, grande e elevado de pensamento, correndo sempre pelo caminho da virtude, jamais cessou de se lançar para a frente, pois lhe parecia perigoso deter-se na corrida. Por que? Porque todo o bem, pela própria natureza, carece de limites, e só é limitado pela presença de seu contrário, como a vida é limitada pela morte e a luz pelas trevas; em geral, tudo aquilo que é bem tem seu fim naquilo que é considerado o oposto do bem. Assim como o fim da vida é o começo da morte, assim também o deter-se na corrida pela virtude é o princípio da corrida ao vício.

Por este motivo, não nos enganava nosso raciocínio ao dizer que, no que diz respeito à virtude, é impossível uma definição da perfeição, já que demonstramos que tudo que se encontra demarcado por alguns limites não é virtude. E como eu disse que para aqueles que vão atrás da virtude é impossível alcançar a perfeição, esclarecerei meu pensamento com relação a esta questão. 

O Bem em sentido primeiro e próprio, aquele cuja essência é a Bondade, esse mesmo é a Divindade. Esta é chamada com propriedade – e é realmente – tudo aquilo que implica sua essência. Como já foi demonstrado que a virtude não tem mais limite alem do vício, e foi demonstrado também que na Divindade não cabe o que é contrário, conclui-se conseqüentemente que a natureza divina é infinita e ilimitada. Portanto, quem busca a verdadeira virtude não busca outra coisa senão Deus, já que Ele é a virtude perfeita. 

Com efeito, a participação do Bem por natureza é completamente desejável para quem o conhece, e, alem disso, o Bem é ilimitado; segue-se, pois, necessariamente que o desejo de quem busca participar dele é co-extensivo com aquilo que é ilimitado, e não se detém jamais. Portanto, é impossível alcançar a perfeição, pois, como já dissemos, a perfeição não está circunscrita por nenhum limite; o único limite da virtude é o ilimitado. 

E como poderá alguém chegar ao limite prefixado, se este limite não existe? Porem o fato de havermos demonstrado que o que buscamos é totalmente inatingível, não justifica que se possa descuidar do preceito do Senhor, que diz: Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste. Com efeito, aqueles que têm bom senso julgam grande ganância não carecer de uma parte dos bens verdadeiros, ainda que seja impossível alcançá-los de forma completa. Deve-se portanto, por todo ardor em não estar privado da perfeição possível e, em conseqüência, em alcançar dela tanto quanto sejamos capazes de receber em nosso interior. Talvez a perfeição da natureza humana consista em estar sempre dispostos a conseguir um maior bem. 

Parece-me oportuno tomar a Escritura como guia nesta questão. De fato, a voz de Deus diz por meio da profecia de Isaías: Lançai os olhos para Abraão vosso pai, e para Sara que vos deu à luz (Is 51,2). A palavra divina faz esta exortação àqueles que erram longe da virtude, para que assim como os navegantes que se desviaram de sua rota para o porto corrigem-se de seu erro graças a um sinal que se lhes faz visível – vendo um sinal de fogo posto no alto ou em cima de um monte – assim também aqueles que erram no mar da vida levados por uma mente sem timoneiro, se dirijam novamente ao porto da vontade divina seguindo o exemplo de Abraão e Sara. 

A natureza humana se divide em feminino e masculino, e a escolha entre virtude e vicio se apresenta igualmente ante ambos os sexos. Por esta razão, a palavra divina oferece o exemplo de virtude correspondente a cada uma das partes, para que, olhando cada uma para o que lhe é afim – os homens para Abraão e a outra parte para Sara – as duas se encaminhem para a vida virtuosa com exemplos que lhe sejam próximos. Também será suficiente para nós a lembrança de um destes personagens ilustres por sua vida, para fazê-lo desempenhar o papel de guia, e mostrar assim como é possível que a alma chegue ao porto seguro da virtude, onde já não estará exposta de nenhuma forma às tempestades da vida, e onde não correrá o risco de cair no abismo do vicio por causa dos sucessivos embates das ondas das paixões.

Talvez a história destes homens ilustres tenha sido escrita detalhadamente para isto: para que a vida dos que vêm depois se dirija para o bem imitando as coisas que foram feitas precedentemente com retidão. Talvez alguém diga: se eu não sou caldeu como sabemos que foi Abraão, nem fui criado pela filha do Egípcio como conta a história de Moisés, nem tenho nada em comum na forma de viver com nenhum destes homens de outros tempos, como conformarei minha vida com a de um deles, se não tenho como imitar a alguém que me é tão afastado em sua forma de viver? Respondemos que não pensamos que ser caldeu seja vicio ou virtude, nem que ninguém se encontre afastado da vida virtuosa por viver no Egito ou habitar na Babilônia. Pelo contrário, nem Deus se faz conhecer somente na Judéia daqueles que são dignos, nem Sião, entendido em sentido literal, é a casa de Deus (Sal 75, 2-3). Portanto, teremos necessidade de uma interpretação mais sutil e de um olhar mais agudo para discernir sempre, a partir da história, de que caldeus ou egípcios havemos de nos distanciar e de que cativeiro da Babilônia devemos escapar para conseguir a vida bem-aventurada. 

Daqui para a frente, em nosso discurso, tomamos Moisés como modelo de vida. Em primeiro lugar, recorreremos rapidamente sua vida, conforme a conhecemos pela divina Escritura; depois buscaremos o significado espiritual correspondente à história, para receber um ensinamento sobre a virtude. Assim conheceremos em que consiste para os homens a vida perfeita.

-- Do texto A Vida de Moisés, de São Gregório de Nissa (século IV)

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