10 de fev. de 2015

Salmo 84: A nossa salvação está próxima

O Salmo 84, que agora proclamamos, é um cântico jubiloso e repleto de esperança no futuro da salvação. Ele reflete o momento exaltante da volta de Israel do exílio na Babilónia para a terra dos antepassados. A vida nacional recomeça naquele querido lar, que tinha sido apagado e destruído pela conquista de Jerusalém por parte do exército do rei Nabucodonosor, em 586 a.C.

De fato, no original hebraico do Salmo  ouve-se  ressoar  repetidamente  o verbo shûb, que indica a vinda dos deportados, mas significa também "vinda" espiritual, isto é, "conversão". Por conseguinte, o renascimento não se refere apenas à nação, mas também às comunidades  dos  fiéis,  que  tinham  vivido o exílio como uma punição dos pecados cometidos e que viam agora a repatriação  e  a  nova  liberdade  como uma bênção divina, em virtude da conversão alcançada.

O Salmo pode ser acompanhado no seu desenvolvimento, segundo duas etapas fundamentais. A primeira, marcada pelo tema da "vinda", com todos os valores que mencionámos.

Celebra-se antes de tudo a vinda física de Israel: "Senhor... Vós sois quem restaurais a parte de Jacó" (v. 2); "Restaurai-nos, ó Deus, nossa salvação... Será que já não nos restituirás a vida...?" (vv. 5.7). Este é um precioso dom de Deus, que se preocupa em libertar os seus filhos da opressão e se empenha na sua prosperidade. Com efeito, Ele "ama tudo o que existe... perdoa a todos, porque todos são dele, o Senhor que ama a vida" (cf. Sb 11, 24.26).

Mas, paralelamente a esta "vinda", que na prática unifica os dispersos, há outra "vinda", mais interior e espiritual. O Salmista reserva-lhe um amplo espaço, atribuindo-lhe um relevo particular, que é válido não só para o antigo Israel mas para os fiéis de todos os tempos.

Nesta "vinda" o Senhor age eficazmente, revelando o seu amor ao perdoar a iniquidade do seu povo, ao eliminar todos os seus pecados, ao abandonar todo o seu desdém e ao pôr fim à sua ira (cf. Sl 84, 3-4).

Precisamente a libertação do mal, o perdão das culpas e a purificação dos pecados criam um novo povo de Deus. Isto é expresso através de uma invocação, que também entrou na liturgia cristã:  "Concedei, Senhor, que vejamos os vossos favores; seja-nos oferecida a vossa salvação" (v. 8). Mas a esta "vinda" de Deus que perdoa deve corresponder a outra "vinda", isto é, a conversão do homem que se arrepende. De fato, o Salmo declara que a paz e a salvação são oferecidas a quem "já não voltará ao desvio" (cf. v. 9). Quem percorre com decisão os caminhos da santidade recebe os dons da alegria, da liberdade e da paz.


Sabemos que, com frequência, as palavras bíblicas que se referem ao pecado recordam um enganar-se no caminho, um falhar a meta, um desviar-se da via reta. A conversão é, precisamente, um "voltar" para o caminho linear, que leva para a casa do Pai, que nos espera para nos abraçar, perdoar e nos fazer felizes (cf. Lc 15, 11-32).

Assim, chegamos à segunda parte do Salmo (cf. Sl 84, 10-14), tão querida à tradição cristã. Nela é descrito um mundo novo, em que o amor de Deus e a sua fidelidade, como se fossem pessoas, se abraçam; de modo semelhante, também a justiça e a paz se beijam, quando  se  encontram. A verdade germina  como  numa  renovada  primavera; e a justiça, que para a Bíblia é também salvação e santidade, desce do céu para começar o seu caminho no meio da humanidade.

Todas as virtudes, primeiro expulsas da terra devido ao pecado, entram agora de novo na história e, cruzando-se, desenham o mapa de um mundo pacífico. Misericórdia, verdade, justiça e paz tornam-se como que os quatro pontos cardeais desta geografia do espírito. Também Isaías canta:  "Destilai, ó céus, lá das alturas, o orvalho, e as nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e produza o fruto da salvação; ao mesmo tempo faça germinar a justiça! Eu sou o Senhor, que crio tudo isto" (45, 8).

As palavras do Salmista, já no segundo século com Santo Ireneu de Lião, foram interpretadas como anúncio da "geração de Cristo por parte da Virgem" (Adversus haereses, III, 5, 1). Com efeito, a vinda de Cristo é a fonte da misericórdia, o desabrochar da verdade, o florescer da justiça e o esplendor da paz.

Por isso o Salmo, sobretudo na sua parte final, é lido de novo em chave natalícia pela tradição cristã. Eis como o interpreta Santo Agostinho, num dos seus discursos para o Natal. Deixemos que seja ele a concluir a nossa reflexão. "A verdade surgiu da terra":  Cristo, que disse:  "Eu sou a verdade" (Jo 14, 6) nasceu da Virgem. "E a justiça aproximou-se do céu":  quem crê n'Aquele que nasceu, não se justifica sozinho, mas é justificado por Deus. "A verdade surgiu da terra":  porque "o Verbo se fez homem" (Jo 1, 14). "E a justiça aproximou-se  do  céu";  porque  "qualquer graça excelente e qualquer dom perfeito provêm do alto" (Tg 1, 17). "A verdade surgiu da terra", isto é, tomou um corpo de Maria. "E a justiça aproximou-se do céu"; porque "o homem nada pode receber se não lhe for concedida pelo céu" (Jo 3, 27) 

-- São João Paulo II, na audiência de 25 de Setembro de 2002

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