29 de mai. de 2016

Inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti

Grande és tu, Senhor, e sumamente louvável: grande é a tua força, e a tua sabedoria não tem limites! Ora, o homem, esta parcela da criação, quer te louvar, este mesmo homem carregado com sua condição mortal, carregado com o testemunho de seu pecado e como testemunho de que resistes aos soberbos. Ainda assim, quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criação! Tu próprio o incitas para que sinta prazer em louvar-te. Fizeste-nos para ti e inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em ti.  

Dá-me, Senhor, saber e compreender o que vem primeiro: o invocar-te ou o louvar-te? Começar por conhecer-te ou por invocar-te? Mas quem te invocará sem te conhecer? Por ignorância, poderá invocar alguém em lugar de outro. Será que é melhor seres invocado, para seres conhecido? Como, porém, invocarão aquele em quem não creem? ou como terão fé, sem anunciante?

 Louvarão o Senhor aqueles que o procuram. Quem o procura encontra-o e tendo-o encontrado, louva-o. Buscar-te-ei, Senhor, invocando-te; e invocar-te-ei, crendo em ti. Tu nos foste anunciado; invoca-te, Senhor, a minha fé, aquela que me deste, que me inspiraste pela humanidade de teu Filho, pelo ministério de teu pregador. Invocarei o meu Deus, o meu Deus e Senhor: mas como? Porque ao invocá-lo eu o chamarei para dentro de mim. Que lugar haverá em mim, aonde o meu Deus possa vir? Aonde virá Deus em mim, o Deus que fez o céu e a terra? Há, então, Senhor, meu Deus, algo em mim que te possa conter? O céu e a terra, que fizeste e nos quais me fizeste, são eles capazes de te conter? Ou, se sem ti nada existiria de quanto existe, é porque tudo quanto existe te contém?

Portanto eu, que também existo, que tenho de pedir tua vinda em mim, em mim que não existiria se não estivesses em mim? Ainda não estou nas profundezas da terra e, no entanto, ali também estás. Pois, mesmo que desça às profundezas da terra, ali estás. Não existiria, pois, meu Deus, de forma alguma existiria, se não estivesses em mim. Ou melhor, não existiria eu se não existisse em ti,de quem tudo, por quem tudo, em quem todas as coisas existem? É assim, Senhor, é assim mesmo. Para onde te chamo, se já estou em ti? Ou donde virás para mim? Para onde me afastarei, fora do céu e da terra, para que lá venha a mim o meu Deus, que disse: Eu encho o céu e a terra?

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera vires a meu coração, inebriá-lo a ponto de esquecer os meus males, e abraçar-te a ti, meu único bem! Que és para mim? Perdoa-me, se falo. Que sou eu a teus olhos, para que me ordenes amar-te e, se não o fizer, te indignares e ameaçares com imensas desventuras? É acaso pequena desventura não te amar?

 Ai de mim! Dize-me, por compaixão, Senhor meu Deus, o que és tu para mim. Dize à minha alma: Sou tua salvação. Dize de forma a que ela te escute. Os ouvidos de meu coração estão diante de ti, Senhor. Abre-os e dize à minha alma: Sou tua salvação. Correrei atrás destas palavras e segurar-te-ei. Não escondas de mim tua face. Morra eu, para que não morra, e assim possa contemplá-la!

-- Dos Livros das Confissões, de Santo Agostinho, bispo (século V)

24 de mai. de 2016

Seja eu quem for, sou a ti manifesto, Senhor

Que eu te conheça, ó conhecedor meu! Que eu também te conheça como sou conhecido! Tu, ó força de minha alma, entra dentro dela, ajusta-a a ti, para a teres e possuíres semmancha nem ruga. Esta é a minha esperança e por isso falo. Nesta esperança, alegro-me quando sensatamente me alegro. Tudo o mais nesta vida tanto menos merece ser chorado quanto mais é chorado, e tanto mais seria de chorar quanto menos é chorado. Eis que amas a verdade, pois quem a faz, chega-se à luz. Quero fazê-la no meu coração, diante de ti, em confissão, com minha pena, diante de muitas testemunhas.

            A ti, Senhor, a cujos olhos está a nu o abismo da consciência humana, que haveria de oculto em mim, mesmo que não quisesse confessá-lo a ti? Eu te esconderia a mim mesmo, e nunca a mim diante de ti. Agora, porém, quando os meus gemidos testemunham que eu me desagrado de mim mesmo, enquanto tu refulges e agradas, és amado e desejado, que eu me envergonhe de mim mesmo, rejeite-me e te escolha! Nem a ti nem a mim seja eu agradável, anão ser por ti.

            Seja eu quem for, sou a ti manifesto e declarei com que proveito o fiz. Não o faço por palavras e vozes corporais, mas com palavras da alma e clamor do pensamento. A tudo o teu ouvido escuta. Quando sou mau, confessá-lo a ti nada mais é do que não o atribuir a mim. Quando sou bom, confessá-lo a ti nada mais é do que não o atribuir a mim. Porque tu, Senhor, abençoas o justo, antes, porém, o justificas quando ímpio. Na verdade minha confissão, ó meu Deus, faz-se diante de ti em silêncio e não em silêncio porque cala-se o ruído, clama o afeto.

            Tu me julgas, Senhor, porque nenhum dos homens conhece o que há no homem a não ser o espírito do homem que nele está. Há, contudo, no homem algo que nem o próprio espírito do homem, que nele está, conhece. Tu, porém, Senhor, conheces tudo dele, pois tu o fizeste. Eu, na verdade, embora diante de ti me despreze e me considere pó e cinza, conheço algo de ti que ignoro de mim.

            É certo que agora vemos como em espelho e obscuramente, ainda não face a face. Por isto enquanto eu peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti e, no entanto, sei que és totalmente impenetrável, ao passo que ignoro a que tentações posso ou não resistir. Mas aí está a esperança, porque és fiel e não permites sermos tentados acima de nossas forças e dás, com a tentação, a força para suportá-la.

            Confessarei aquilo que de mim conheço, confessarei o que desconheço. Porque o que sei de mim, por tua luz o sei; e o que de mim não sei, continuarei a ignorá-lo até que minhas trevas se mudem em meio-dia diante de tua face.

-- Dos Livros das Confissões, de Santo Agostinho, bispo (século V)

21 de mai. de 2016

Ícone da Santíssima Trindade - o significado dos três anjos


O ícone da Santíssima Trindade foi pintado pelo monge André Rublev em 1425. Uns cento e cinquenta anos após, o Concílio da Igreja Ortodoxa definiu-o como modelo para todas representações da Trindade.

O ícone possui três níveis de representação:

1. Em primeiro lugar, lembra o relato bíblico da visita dos três peregrinos a Abraão (Gn 18, 1-5). O bem-aventurado Abraão recebe os três anjos em sua tenda, como se fossem a divindade una e trina. Abraão e Sara não estão representados, ficam em segundo plano, para que se possa apreciar mais profundamente Trindade que visita a humanidade, um fato realmente surpreendente.

2. Os três anjos celestes formam um conselho celeste; a tenda de Moisés é um alto palácio; o carvalho de Mambré é a árvore da vida; e no centro da mesa está o cálice de vinho, sinal da presente de Cristo como alimento eterno.

Os três anjos estão sentados, mas são altos, as asas se elevam ao céus, há algo de impossível na composição que desafia a gravidade. A perspectiva irreal elimina a distância, mostra que não apenas Deus está presente, como também está próximo, em primeiro plano. 

As três pessoas estão conversando, mas sobre o que? A Palavra de Deus sempre se torna real, o cálice do sacrifício está no centro. Os anjos estão a conversar sobre o Cristo, pois Deus amou o mundo de tal maneira que deu a seu único filho como sacrifício (Jo 4,9).

3. O terceiro nível está apenas sugerido, é transcendente e inacessível aos sentidos humanos, mas a fé pode relevelá-lo. A essência de Deus é o amor, o amor que sente pelo mundo é o mesmo amor que tem pelo seu Filho. O cálice representa este amor em torno do qual se sustenta a Santíssima Trindade; no cálice está o Cordeiro imolado, a comida celeste dos últimos tempos prometida no Livro do Apocalipse. Os anjos estão repouso, pois o sacrifício pascal já trouxe a salvação ao mundo, podem  comtemplar ao Cristo em êxtase. Eles lembram São Gregório de Nissa: "O maior paradoxo é que estabilidade e o movimennto provém de Deus". 

As figuras dos anjos

Os três anjos estão desenhados de maneira semelhante, são idênticos para revelar a igualdade dentro da Santíssima Trindade. Para identificá-los, é necessário olhar as figuras acima dos anjos: na direita temos Cristo, o esposo da Igreja representada pelo prédio ; à esquerda está o Espírito Santo, indicado pelas altas rochas, das quais se deve proclamar a palavra de Deus para o mundo; no centro está Deus, a árvore da vida. 

Deus está olhando e falando para o Filho; seu poder vêm do amor e revela-se pela comunhão. O Filho cumpre a palavra do Pai, também conduz ao Pai (Jo 14, 6). Entender esta comunhão entre Deus e o Pai é entender a comunhão entre Deus e a humanidade. Ao conversar com o Filho, Deus está se revelando a Cristo, também está se revelando à humanidade.

O Filho está atento ao Pai, abandonado de si mesmo. As palavras que anuncia não são dele, Cristo não fala por si mesmo, mas repete as palavras que ouviu do Pai. É o exemplo para os homens, ouvir a Deus, falar as palavras de Deus.

O Espírito Santo está contemplando ao Pai e ao Filho; o único caminho da Salvação. A cabeça levemente inclinada revela sua doçura; é o espírito consolador. 

As mãos direita do Pai e Espírito Santo estão estendidas em direção ao cálice, abençoando o sacrifício de Cristo presente. O movimento parte deles e culmina no Cristo; é o impulso que ilumina toda cena, as três pessoas dominam o ícone, mas no centro deles está o cálice da comunhão, o centro da história da salvação. 

* Já havia publicado uma breve explicação da Santíssima Trindade, como inspirada pelo ícone; nos próximos dias escreverei algo sobre a composição e cores do ícones.

-- -- adaptado do original em espanhol

17 de mai. de 2016

Deus ama a todos igualmente?

Por três razões é justo dizer que Deus ama a todos igualmente:

1. No livro da Sabedoria (6,8), diz-se que Deus cuida de todos igualmente. O cuidado de Deus para com todos é igual, logo o amor que tem por todos é igual.

2. O amor de Deus é sua essência, que é apenas uma, não duas, uma maior, outra menor. Assim, por sua uma única essência, Deus ama a todos igualmente.

3. Deus conhece a todos igualmente, Cristo afirmou que não cai um só fio de cabelo sem que Deus o permita. Por conhecer a todos igualmente, Deus ama a todos igualmente.

Mas como amar é querer o bem para o amado, alguém poderia dizer que Deus ama mais ou menos certas pessoas por dois motivos:

1. Se o amor depende da vontade da pessoa, então pode ser mais ou menos intenso. O argumento contrário afirma que Deus ama a todos igualmente por que seu amor é um ato de sua perfeita compaixão, que tem a mesma intensidade para todos.

2. O bem que o amor deseja ao outro pode ser maior ou menor. Se considerarmos que o bem que se percebe realizado em uma pessoa pode ser maior ou menor, alguém poderia dizer que Deus ama cada pessoa de maneira diferente. O erro está em julgar por aquilo que é visível no mundo , esquecendo que Deus trata a todos com a mesma sabedoria e bondade. Além disso Deus concede a todos o bem da Vida Eterna.

-- Este trecho é uma adaptação da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, parte I, questão 20, artigo 3.

14 de mai. de 2016

São Matias, o apóstolo substituto


Jesus Cristo escolheu doze apóstolos, instituiu Pedro como seu sucessor e, na Santa Ceia, viu um deles, Judas Iscariotes sair do grupo para traí-lo. Mas na tradição judaica, doze é um número importante pois são doze tribos de Israel, doze representa todos os povos, toda nação. Percebendo que Cristo Ressuscitado deveria ser anunciado a todos, São Pedro decide que era necessário fazer algo a respeito.

Segundo o Atos dos Apóstolods (1,20-26), em um encontro de todo grupo, seriam cerca de 120 pessoas, Pedro anuncia que é necessário escolher um entre eles para ser o décimo segundo apóstolo. Dois nomes foram sugeridos: José, o Justo; e Matias. Ambos haviam acompanhado Jesus, aparentemente desde o batizado de Jesus Cristo, embora as referências bíblicas não sejam afirmativas. São Clemente de Alexandria, confirmado por São Jerônimo, assegura que Matias era um dos setenta e dois discípulos enviados a anunciar dois a dois por todo Israel.

São Pedro pede a todos que rezem para que Deus indique o mais adequado para a missão e organiza um sorteio, sendo Matias o escolhido. Por que o sorteio? Quando dois homens eram igualmente justos, não sendo possível decidir qual era o melhor, a sorte era lançada seguindo as leis judaicas. A alternativa seria esperar alguma intervenção visível de Deus, um milagre ou aparição, mas isto seria tentar a Deus, pois apenas a Deus cabe a iniciativa de se comunicar diretamente com os homens. Também não seria aceitável que cada um apresentasse sua candidatura e fosse feita uma eleição, isto daria espaço às vaidades humanas e ao pecado.

São Matias teria percorrido partes da atual da Turquia,
Geórgia, Azerbaijão e Irã, uma área que na época não era
controlada pelo Império Romano.
São Matias Apóstolo estava presente em Pentecostes, tendo recebido o Espírito Santo junto com os demais. Consta que tinha zelo especial por obras de mortificação da carne para resistir às tentações humanas. Quando todos se dispersaram para anunciar o Evangelho, Matias seguiu em direção norte, indo pregar na Capadócia e litoral do Mar Cáspio e residindo no porto de Issus, no Rio Fasis, entre um povo conhecido pela violência, a quem os romanos chamavam de "cidade dos canibais". São Clemente de Alexandria afirma que Matias foi martirizado em Colquis, cerca do ano 80, numa área conhecida por Etiópia, próxima aos Montes Arais (longe, portanto, do atual país da Etiópia, que é na África). 

Na fortaleza romana de Gonio, atual Geórgia, há uma inscrição indicando que o apóstolo foi enterrado naquele local. Em outra tradição, Santa Helena teria levado os restos mortais para Tréveris, Itália; e nas igrejas de Santa Maria Maior (Roma), Santa Justina (em Pádua, Itália) e São Pedro (Lima, Peru) há relíquias legítimas do apóstolo. Sua festa litúrgica na Igreja Católica é 14 de Maio, na Igreja Anglicana é 24 de Fevereiro. 

-- autoria própria

Mostra-nos, Senhor, quem escolheste

Naqueles dias, Pedro levantou-se no meio dos irmãos e disse (At 1,15). Pedro, a quem Cristo tinha confiado o rebanho, movido pelo fervor do seu zelo e porque era o primeiro do grupo apostólico, foi o primeiro a tomar a palavra: Irmãos, é preciso escolher dentre nós (cf. At 1,22). Ouve a opinião de todos, a fim de que o escolhido seja bem aceito, evitando a inveja que poderia surgir. Pois, estas coisas, com frequência, são origem de grandes males.

        Mas Pedro não tinha autoridade para escolher por si só? É claro que tinha.Mas absteve-se, para não demonstrar favoritismo. Além disso, ainda não tinha recebido o Espírito Santo. Então eles apresentaram dois homens: José, chamado Barsabás, que tinha o apelido de Justo, e Matias (At 1,23). Não foi Pedro que os apresentou, mas todos. O que ele fez foi aconselhar esta eleição, mostrando que a iniciativa não era sua, mas fora anteriormente anunciada pela profecia. Sua intervenção nesse caso foi interpretar a profecia e não impor um preceito.

        E continua: É preciso dentre os homens que nos acompanharam (cf. At 1,21-22). Repara como se empenha em que tenham sido testemunhas oculares; embora o Espírito Santo devesse ainda vir sobre eles, dá a isso grande importância.

        Dentre os homens que nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor Jesus vivia no meio de nós, a começar pelo batismo de João (At 1,21-22). Refere-se àqueles que conviveram com Jesus, e não aos que eram apenas discípulos. De fato, eram muitos os que o seguiam desde o princípio. Vê como diz o evangelho: Era um dos dois que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus (Jo 1,40). Durante todo o tempo em que o Senhor Jesus vivia no meio de nós, a começar pelo batismo de João. Com razão assinala este ponto de partida, já que ninguém conhecia por experiência o que antes se passara, mas foram ensinados pelo Espírito Santo.

        Até ao dia em que foi elevado ao céu. Agora, é preciso que um deles se junte a nós para ser testemunha da sua ressurreição (At 1,22). Não disse: “testemunha de tudo o mais”, porém, testemunha de sua ressurreição. Na verdade, seria mais digno de fé quem pudesse testemunhar: “Aquele que vimos comer e beber e que foi crucificado, foi esse que ressuscitou”. Não interessava ser testemunha do tempo anterior nem do seguinte nem dos milagres, mas simplesmente da ressurreição. Porque todos os outros fatos eram manifestos e públicos; só a ressurreição tinha acontecido secretamente e só eles a conheciam.

        E rezaram juntos, dizendo: Senhor, tu conheces o coração de todos. Mostra-nos (At 1,24). Tu, nós não. Com acerto o invocam como aquele que conhece os corações, pois a eleição deveria ser feita por ele e não por mais ninguém. Assim falavam com toda a confiança, porque a eleição era absolutamente necessária. Não disseram: “Escolhe”, mas: Mostra-nos quem escolheste (At 1,24). Bem sabiam que tudo está predestinado por Deus. Então tiraram a sorte entre os dois (At 1,26). Ainda não se julgavam dignos de fazer por si mesmos a eleição; por isso, desejaram ser esclarecidos por algum sinal.

-- Das Homilias sobre os Atos dos Apóstolos, de São João Crisóstomo, bispo (século IV)

10 de mai. de 2016

A ação do Espírito Santo

Qual o homem que, ao ouvir os nomes com os quais é designado o Espírito Santo, não eleva seu  ânimo e o seu pensamento para a natureza divina? É chamado Espírito de Deus, Espírito da verdade que procede do Pai, Espírito de retidão, Espírito principal e, como nome próprio e peculiar, Espírito Santo.
 
Volta-se para ele o olhar de todos os que buscam a santificação; para ele tende a aspiração de todos os que vivem segundo a virtude; é o seu sopro que os revigora e reanima para atingirem o fim natural e próprio para que foram feitos.
 
Ele é fonte da santidade e luz da inteligência; é ele que dá, de si mesmo, uma certa iluminação à nossa razão natural para que encontre a verdade.
 
Inacessível por sua natureza, torna-se acessível por sua bondade. Enche tudo com o seu poder, mas comunica-se apenas aos que são dignos; não a todos na mesma medida, mas distribuindo os seus dons em proporção da fé. Simples na essência, múltiplo nas manifestações do seu poder, está presente por inteiro em cada um, sem deixar de estar todo em todo lugar. Reparte-se e não sofre diminuição. Todos dele participam e permanece íntegro, à semelhança dos raios do sol que fazem sentir a cada um a sua luz benéfica como se fosse para ele só, e contudo iluminam a terra e o mar e se difundem pelo espaço.
 
Assim é também o Espírito Santo: está presente em cada um dos que são capazes de recebê-lo, como se estivesse nele só, e, não obstante, dá a todos a totalidade da graça de que necessitam. Os que participam do Espírito recebem os seus dons na medida em que o permite a disposição de cada um, mas não na medida do poder do mesmo Espírito.
 
Por ele, os corações são elevados ao alto, os fracos são conduzidos pela mão, os que progridem na virtude chegam à perfeição. Ele ilumina os que foram purificados de toda mancha e torna-os espirituais pela comunhão consigo.
 
E como os corpos límpidos e transparentes, sob a ação da luz, se tornam também extraordinariamente brilhantes e irradiam um novo fulgor, da mesma forma também as almas que recebem o Espírito e são por ele iluminadas tornam-se espirituais e irradiam sobre os outros a graça que lhes foi dada.
 
Dele procede a previsão do futuro, a inteligência dos mistérios, a compreensão das coisas ocultas, a distribuição dos carismas, a participação na vida do céu, a companhia dos coros
dos anjos. Dele nos vem a alegria sem fim, a união constante e a semelhança com Deus; dele procede, enfim, o bem mais sublime que se pode desejar: o homem é divinizado.


-- Do Tratado Sobre o Espírito Santo, de São Basílio Magno, bispo (século IV)

3 de mai. de 2016

Quantos santos há na Igreja Católica?

O dia 11 de Fevereiro de 2013 certamente foi histórico para a Igreja Católica, pois neste dia o Papa Bento XVI renunciou. Mas,  no mesmo dia, o ainda Papa encaminhou três canonizações: Beata Laura Upegui (Colômbia), Beata Maria Guadaluppe Zavala (México), ambas fundadoras de ordens religiosas, e Beato Antonio Primaldo e seus 799 companheiros, todos residentes no sul da Itália martirizados pelos muçulmanos por se negarem a converter-se ao islamismo em 1480. Estas 802 pessoas foram canonizadas em um único dia reunindo-se ao estimado número de 10.000 outros santos já reconhecidos pela Igreja. 

O fato essencial é que o número de santos na Igreja é incerto, não há um número preciso, e é impossível obter um por que por séculos a Igreja não teve um processo formal e centralizado de canonização, como estamos acostumados nos dias atuais. As comunidades dos primeiros séculos veneravam muitíssimos santos, em geral mártires, cuja história ficou perdida ao longo do tempo. 

Apenas nos séculos XVII e XVIII começou-se a prestar atenção nestas histórias e buscar comprovações da sua veracidade. Alguns santos, como Jorge e Valentino tem uma história tão fantástica e sem nenhuma confirmação adicional que parece tratar-se de lendas, não pessoas reais. Ou você realmente pensa que São Jorge enfrentou dragões na lua muito antes de astronautas chegarem lá? Há também as tradições locais, como o francês São Guinefort, protetor dos bebês, por que salvou
miraculosamente um recém nascido picado por uma cobra venenosa. Seu culto persistiu por vários séculos apesar de repetidamente ter sido proibido pela Igreja. Por quê? São Guinefort era um cachorro!

Percebendo as confusões, a Igreja da Idade Média começou a ordenar o processo de canonização, inicialmente de maneira decentralizada, sob a supervisão do bispo local. Por óbvio, não é possível manter um critério único, mas já evitou os excessos mais óbvios. Em 1588, o Papa Sixto V centralizou o processo no Vaticano, encarregando a Congregação de Ritos e Liturgia de avaliar os potenciais candidatos à santidade. 

Em 1969, Paulo VI criou a Congregação para a Causa dos Santos para supervisionar o processo. Também suprimiu o culto de vários santos cuja história está muito misturada com lendas orais, até o ponto em que as vezes é impossível garantir até mesmo sua existância real, como São Jorge. Igrejas já existentes com este nome podem permanecer, mas sua festa foi retirada do Calendário Romano e foi proibida a criação de novas igrejas.

Neste ponto é interessante dizer que o Calendário Romano não é, nem tenta ser, abrangente. Não há um santo para cada dia do ano, são incluídos apenas aqueles cuja mensagem e exemplo são realmente importantes para Igreja universal, inspirando católicos em todo mundo. Ou seja, o número de santos no Calendário Romano é bastante restrito, mas todos são devidamente homenageados em 1o. de Novembro, o Dia de Todos os Santos, canonizados ou não. Outros santos podem ser incluídos no calendário de uma diocese ou paróquia de acordo com as tradições locais, com a devida autorização do bispo.

O processo de canonização foi simplificado pelo Papa João Paulo II em 1983 ao eliminar a figura do Promotor da Fé, mais conhecido por Advogado do Diabo, que procurava encontrar razões contrárias a canonização do santo. Não apenas por este fato, mas também por seu longo reinado, João Paulo II foi um dos papas que canonizou mais santos: 482. Bento XVI canonizou apenas 45 santos e Papa Francisco já canonizou 835, pois um dos seus primeiros atos incluiu São Antonio Primaldo e seus 799 companheiros.

A Wikipedia em português tem uma lista 474 nomes, incluindo alguns casos do "santo e companheiros". Uma lista muito mais completa, ainda que em inglês, é encontrada no site Catholic Online: apenas na letra "A" já estão listados 894 nomes. E, apenas para citar, as Igrejas Ortodoxas reconhecem outros santos, particulares da sua fé, que não estão nos cânones católicos. Mas aí já seria o caso de outro texto.

-- autoria própria

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