30 de jul. de 2016

Senhor, por que te silenciaste?

Papa Bento XVI em Auschwitz
Tomar a palavra neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o homem sem igual na história, é quase impossível e é particularmente difícil e oprimente para um cristão, para um Papa que provém da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais permita uma coisa semelhante.

Há 27 anos, no dia 7 de Junho de 1979, estava aqui o Papa João Paulo II; então ele disse: "Venho hoje aqui... Quantas vezes! E desci muitas vezes à cela da morte de Maximiliano Kolbe e detive-me diante do muro do extermínio e passei entre as ruínas dos fornos crematórios de Birkenau.

Como Papa, não podia deixar de vir aqui". O Papa João Paulo II veio aqui como filho daquele povo que, ao lado do povo judeu, teve que sofrer mais neste lugar e, em geral, durante a guerra: "Foram seis milhões de Polacos, que perderam a vida durante a segunda guerra mundial: um quinto da nação", recordou então o Papa. Aqui, ele elevou a solene admoestação ao respeito dos direitos do homem e das nações, que antes dele tinham elevado diante do mundo os seus Predecessores João XXIII e Paulo VI, e acrescentou: "Pronuncia estas palavras [...] o filho da nação que na sua história remota e mais recente sofreu numerosas angústias infligidas por outros. E não o diz para acusar, mas para recordar. Fala em nome de todas as nações, cujos direitos são violados e esquecidos...".

O Papa João Paulo II veio aqui como um filho do povo polaco. Hoje eu vim aqui como um filho do povo alemão, e precisamente por isto devo e posso dizer como ele: não podia deixar de vir aqui. Tinha que vir. Era e é um dever perante a verdade e o direito de quantos sofreram, um dever diante de Deus, de estar aqui como sucessor de João Paulo II e como filho do povo alemão filho daquele povo sobre o qual um grupo de criminosos alcançou o poder com promessas falsas, em nome de perspectivas de grandeza, de recuperação da honra da nação e da sua relevância, com previsões de bem-estar e também com a força do terror e da intimidação, e assim o nosso povo pôde ser usado e abusado como instrumento da sua vontade de destruição e de domínio. Sim, não podia deixar de vir aqui. A 7 de Junho de 1979 estive aqui como Arcebispo de Munique-Frisinga entre os numerosos Bispos que acompanhavam o Papa, que o escutavam e rezavam com ele. Em 1980 voltei mais uma vez a este lugar de horror com uma delegação de Bispos alemães, abalado por causa do mal e reconhecido pelo facto de que acima das trevas tinha surgido a estrela da reconciliação. Ainda é esta a finalidade pela qual me encontro hoje aqui: para implorar a graça da reconciliação antes de tudo de Deus, o único que pode abrir e purificar os nossos corações; depois, dos homens que sofreram; e por fim, a graça da reconciliação para todos os que, neste momento da nossa história, sofrem de maneira nova sob o poder do ódio e sob a violência fomentada pelo ódio.
Papa Francisco em Auschwitz

Quantas perguntas surgem neste lugar! Sobressai sempre de novo a pergunta: Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal? Vêm à nossa mente as palavras do Salmo 44, a lamentação de Israel que sofre: "... Tu nos esmagaste na região das feras e nos envolveste em profundas trevas... por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro. Desperta, Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e tribulação? A nossa alma está prostrada no pó, e o nosso corpo colado à terra. Levanta-te! Vem em nosso auxílio; salva-nos, pela tua bondade!" (Sl 44, 20.23-27). Este grito de angústia que Israel sofredor eleva a Deus em períodos de extrema tribulação, é ao mesmo tempo um grito de ajuda de todos os que, ao longo da história ontem, hoje e amanhã sofrem por amor de Deus, por amor da verdade e do bem; e há muitos, também hoje.

Nós não podemos perscrutar o segredo de Deus vemos apenas fragmentos e enganamo-nos se pretendemos eleger-nos a juízes de Deus e da história. Não defendemos, nesse caso, o homem, mas contribuiremos apenas para a sua destruição. Não em definitiva, devemos elevar um grito humilde mas insistente a Deus: Desperta! Não te esqueças da tua criatura, o homem! E o nosso grito a Deus deve ao mesmo tempo ser um grito que penetra o nosso próprio coração, para que desperte em nós a presença escondida de Deus para que aquele seu poder que Ele depositou nos nossos corações não seja coberto e sufocado em nós pela lama do egoísmo, do medo dos homens, da indiferença e do oportunismo. Emitamos este grito diante de Deus, dirijamo-lo ao nosso próprio coração, precisamente nesta nossa hora presente, na qual incumbem novas desventuras, na qual parecem emergir de novo dos corações dos homens todas as forças obscuras: por um lado, o abuso do nome de Deus para a justificação de uma violência cega contra pessoas inocentes; por outro, o cinismo que não conhece Deus e que ridiculariza a fé n'Ele. Nós gritamos a Deus, para que impulsione os homens a arrepender-se, para que reconheçam que a violência não cria a paz, mas suscita apenas outra violência uma espiral de destruição, na qual todos no fim de contas só têm a perder. O Deus, no qual nós cremos, é um Deus da razão mas de uma razão que certamente não é uma matemática neutral do universo, mas que é uma coisa só com o amor, com o bem. Nós rezamos a Deus e gritamos aos homens, para que esta razão, a razão do amor e do reconhecimento da força da reconciliação e da paz prevaleça sobre as ameaças circunstantes da irracionalidade ou de uma falsa razão, separada de Deus.

O lugar no qual nos encontramos é um lugar da memória, é o lugar do Shoá. O passado nunca é apenas passado. Ele refere-se a nós e indica-nos os caminhos que não devem ser percorridos e os que o devem ser. Como João Paulo II, percorri o caminho ao longo das lápides que, nas várias línguas, recordam as vítimas deste lugar: são lápides em bielo-russo, checo, alemão, francês, grego, hebraico, polaco, russo, rom, romeno, eslovaco, sérvio, ucraniano, judaico-hispânico, inglês.
Todas estas lápides comemorativas falam de dor humana, deixam-nos intuir o cinismo daquele poder que tratava os homens como material e não os reconhecia como pessoas, nas quais resplandece a imagem de Deus. Algumas lápides convidam a uma comemoração particular. Há uma em língua hebraica. Os poderosos do Terceiro Reich queriam esmagar o povo judeu na sua totalidade; eliminá-lo do elenco dos povos da terra. Então as palavras do Salmo: "estamos todos os dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro", verificam-se de modo terrível.
No fundo, aqueles criminosos violentos, com a aniquilação deste povo, pretendiam matar aquele Deus que chamou Abraão, que falando no Sinai estabeleceu os critérios orientadores da humanidade que permanecem válidos para sempre. Se este povo, simplesmente com a sua existência, constitui um testemunho daquele Deus que falou ao homem e o assumiu, então aquele Deus devia finalmente estar morto e o domínio devia pertencer apenas ao homem àqueles que se consideravam os fortes que tinham sabido apoderar-se do mundo. Com a destruição de Israel, com o Shoa, queriam, no fim de contas, arrancar também a raiz sobre a qual se baseia a fé cristã, substituindo-a definitivamente com a fé feita por si, a fé no domínio do homem, do forte. Depois, há a lápide em língua polaca: numa primeira fase e antes de tudo queria-se eliminar a élite cultural e cancelar assim o povo como sujeito histórico autónomo para o reduzir, na medida em que continuava a existir, a um povo de escravos. Outra lápide, que convida particularmente a reflectir, é a que está escrita na língua dos Sint e dos Rom. Também aqui se pretendia fazer desaparecer um povo inteiro que vive migrando entre os outros povos. Ele estava inserido entre os elementos inúteis da história universal, numa ideologia na qual só devia contar o útil medível; tudo o resto, segundo os seus conceitos, era classificado comolebensunwertes Leben uma vida indigna de ser vivida.
Papa João Paulo II em Auschwitz

Depois há a lápide em russo que evoca o imenso número das vidas sacrificadas entre os soldados russos no confronto com o regime do terror nazista; mas, ao mesmo tempo, faz-nos reflectir sobre o trágico duplo significado da sua missão: libertaram os povos de uma ditadura, mas submetendo também os mesmos povos a uma nova ditadura, a de Estalin e da ideologia comunista. Também todas as outras lápides nas numerosas línguas da Europa nos falam do sofrimento de homens de todo o continente; tocariam profundamente o nosso coração, se não fizéssemos apenas memória das vítimas de modo global, mas se víssemos, ao contrário, os rostos das pessoas individualmente que acabaram naquele terror escuro. Senti como um dever íntimo deter-me de modo particular também diante da lápide em língua alemã. Dela emerge diante de nós o rosto de Edith Stein, Theresa Benedicta da Cruz: judia e alemã desaparecida, juntamente com a irmã, no horror da noite do campo de concentração alemão-nazista; como cristã e judia, aceitou morrer juntamente com o seu povo e por ele. Os alemães, que então foram conduzidos a Auschwitz-Birkenau e aqui morreram, eram vistos como Abschaum der Nation como o refugo da nação. Mas agora nós reconhecemo-los com gratidão como as testemunhas da verdade e do bem, que também no nosso povo tinha desaparecido. Agradecemos a estas pessoas, porque não se submeteram ao poder do mal e agora estão diante de nós como luz numa noite escura. Com profundo respeito e gratidão inclinamo-nos diante de todos os que, como os três jovens diante da ameaça da fornalha babilónica, souberam responder: "Só o nosso Deus nos pode salvar. Mas também se não nos libertares, sabe, ó rei, que nós nunca serviremos os teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que erigistes" (cf. Dn 3, 17s).

Sim, por detrás destas lápides encerra-se o destino de inumeráveis seres humanos. Eles despertam a nossa memória, despertam o nosso coração. Não querem provocar em nós o ódio: ao contrário, demonstram-nos como é terrível a obra do ódio. Querem conduzir a razão a reconhecer o mal como mal e a rejeitá-lo; querem suscitar em nós a coragem do bem, da resistência contra o mal. Querem dar-nos aqueles sentimentos que se expressam nas palavras que Sófocles coloca nos lábios de Antígona face ao horror que a circunda: "Estou aqui não para odiar mas para, juntos, amar".

Graças a Deus, com a purificação da memória, à qual nos estimula este lugar de horror, crescem à sua volta numerosas iniciativas que desejam pôr um limite ao mal e dar força ao bem. Há pouco pude abençoar o Centro para o Diálogo e a Oração. Nas imediatas proximidades tem lugar a vida escondida das irmãs carmelitas, que estão particularmente unidas ao mistério da cruz de Cristo e nos recordam a fé dos cristãos, que afirma que o próprio Deus desceu ao inferno do sofrimento e sofre juntamente connosco. Em Oswiecim existe o Centro de São Maximiliano e o Centro Internacional de Formação sobre Auschwitz e sobre o Holocausto. Depois, há a Casa Internacional para os Encontros da Juventude. Numa das Antigas Casas de Oração existe o Centro Hebraico. Por fim está a constituir-se a Academia para os Direitos do Homem. Assim podemos esperar que do lugar do horror nasça e cresça uma reflexão construtiva e que recordar ajude a resistir ao mal e a fazer triunfar o amor.

A humanidade atravessou em Auschwitz-Birkenau um "vale escuro". Por isso desejo, precisamente neste lugar, concluir com a oração de confiança com um Salmo de Israel que é, ao mesmo tempo, uma oração da cristandade: "O Senhor é o meu pastor: nada me falta. Em verdes prados me fez descansar e conduz-me às águas refrescantes. Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome. Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo. A tua vara e o teu cajado dão-me confiança... habitarei na casa do Senhor para todo o sempre" (Sl 23, 1-4.6).

-- Discurso do Papa Bento XVI, em Auschwitz (28 de Maio de 2006)

28 de jul. de 2016

Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa

As palavras de nosso Senhor Jesus Cristo nos advertem que, em meio à multiplicidade das ocupações deste mundo, devemos aspirar a um único fim. Aspiramos porque estamos a caminho e não em morada permanente; ainda em viagem e não na pátria definitiva; ainda no tempo do desejo e não na posse plena. Mas devemos aspirar, sem preguiça e sem desânimo, a fim de podermos um dia chegar ao fim.

Marta e Maria eram irmãs, não apenas irmãs de sangue, mas também pelos sentimentos religiosos. Ambas estavam unidas ao Senhor; ambas, em perfeita harmonia, serviam ao Senhor corporalmente presente. Marta o recebeu como costumam ser recebidos os peregrinos. No entanto, era a serva que recebia o seu Senhor; uma doente que acolhia o Salvador; uma criatura que hospedava o Criador. Recebeu o Senhor para lhe dar o alimento corporal, ela que precisava do alimento espiritual. O Senhor quis tomar a forma de servo e, nesta condição, ser alimentado pelos servos, por condescendência, não
por necessidade. Também foi por condescendência que se apresentou para ser alimentado. Pois tinha assumido um corpo que lhe fazia sentir fome e sede.

Portanto, o Senhor foi recebido como hóspede, ele que veio para o que era seu, e os seus não o acolheram. Mas, a todos que o receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,11-12). Adotou os servos e os fez irmãos; remiu os cativos e os fez co-herdeiros. Que ninguém dentre vós ouse dizer: Felizes os que mereceram receber a Cristo em sua casa! Não te entristeças, não te lamentes por teres nascido num tempo em que já não podes ver o Senhor corporalmente. Ele não te privou desta honra, pois afirmou: Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).

Aliás, Marta, permite-me dizer-te: Bendita sejas pelo teu bom serviço! Buscas o descanso como recompensa pelo teu trabalho. Agora estás ocupada com muitos serviços, queres alimentar os corpos que são mortais, embora sejam de pessoas santas. Mas, quando chegares à outra pátria, acaso encontrarás peregrinos para hospedar? encontrarás um faminto para repartires com ele o pão? um sedento para dares de beber? um doente para visitar? um desunido para reconciliar? um morto para sepultar? Lá não haverá nada disso. Então o que haverá? O que Maria escolheu: lá seremos alimentados, não alimentaremos. Lá se cumprirá com perfeição e em plenitude o que Maria escolheu aqui: daquela mesa farta, ela recolhia as migalhas da palavra do Senhor. Queres realmente saber o que há de acontecer lá? É o próprio Senhor quem diz a respeito de seus servos: Em verdade eu vos digo: ele mesmo vai fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá (Lc 12,37).

-- Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo (século V)

23 de jul. de 2016

A vocação da família

Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o primeiro anúncio (da Ressurreição), que é o mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário e deve ocupar o centro da atividade evangelizadora. O nosso ensinamento sobre o matrimônio e a família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida.

Jesus recupera e realiza plenamente o projeto divino
O Novo Testamento ensina que “tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado” (1Tim 4, 4). O matrim6onio é um dom do Senhor (1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação positiva, acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom divino: “Seja o matrimônio honrado por todos e imaculado o leito conjugal” (Heb 13, 4). Este dom de Deus inclui a sexualidade: “Não vos recuseis um ao outro” (1Cor 7, 5).
Jesus inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado num banquete de núpcias (Jo 2, 1-11). Compartilhou momentos diários de amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (Lc10, 38) e com a família de Pedro (Mt 8, 14). Escutou o pranto dos pais pelos seus filhos, restituindo-os à vida (Mc 5, 41;Lc 7, 14-15) e mostrando assim o verdadeiro significado da misericórdia, a qual implica a restauração da Aliança. Vê-se isto claramente nos encontros com a mulher samaritana (Jo 4, 1-30) e com a adúltera (Jo 8, 1-11), nos quais a noção do pecado é avivada perante o amor gratuito de Jesus.
A encarnação do Verbo numa família humana, em Nazaré, comove com a sua novidade a história do mundo. Precisamos mergulhar no mistério do nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo e no sim de José, que deu o nome a Jesus e cuidou de Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos Magos; na promessa que Simeão e Ana viram cumprida no templo; na fuga para o Egito; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria de Jesus adolescente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que Jesus ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la frutificar no mistério do Reino. A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. É o mistério que tanto fascinou São Francisco de Assis, Santa Teresa do Menino Jesus e Beato Charles de Foucauld, e do qual bebem também as famílias cristãs para renovar a sua esperança e alegria.
A família nos documentos da Igreja
O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-se, na Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade do matrimônio e da família. Definiu como comunidade de vida e amor, colocando o amor no centro da família. O verdadeiro amor entre marido e mulher implica a mútua doação de si mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a afetividade, correspondendo ao desígnio divino.
Em seguida, o Beato Paulo VI com a Encíclica Humanae vitae, destacou o vínculo intrínseco entre amor conjugal e procriação: o amor conjugal requer nos esposos uma consciência da sua missão de ‘paternidade responsável’. O exercício responsável da paternidade implica que os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores.
Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est destaca que “o matrimônio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se um exemplo do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano”.
O sacramento do matrimônio
A família é imagem de Deus, é comunhão de pessoas. No batismo, a voz do Pai chamou a Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si mesmo e redimiu o homem do pecado, não só voltou a levar o matrimônio e a família à sua forma original, mas também elevou-o a sinal sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12; Ef 5, 21-32). Na família humana, reunida em Cristo, é restaurada a imagem e semelhança da Santíssima Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. A família recebe de Cristo, através da Igreja, a graça para testemunhar o Evangelho do amor de Deus.
O sacramento do matrimônio não é uma convenção social, um rito vazio ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque a sua pertença recíproca é a representação real da mesma relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja, a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar. O matrimônio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada específica para viver o amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto dum discernimento vocacional.
No sacramento do matrimônio, segundo a tradição latina da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se casam, os quais, ao manifestar o seu consentimento e expressá-lo na sua entrega corpórea, recebem um grande dom. O seu consentimento e a união dos seus corpos são os instrumentos da ação divina que os torna uma só carne. No batismo ficou consagrada a sua capacidade de se unir em matrimônio para responder à vocação de Deus. A Igreja pode exigir que o ato seja público, a presença de testemunhas e outras condições que foram variando ao longo da história, mas isto não tira dos noivos o caráter de ministros do sacramento, nem diminui a centralidade do consentimento do homem e da mulher, que é aquilo que, de por si, estabelece o vínculo sacramental.

Vivida de modo humano e santificada pelo sacramento, a união sexual é, por sua vez, caminho de crescimento na vida da graça para os esposos. É o mistério nupcial. O valor da união dos corpos está expresso nas palavras do consentimento, pelas quais se acolheram e doaram reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas palavras conferem um significado à sexualidade, libertando-a de qualquer ambiguidade.
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
O Evangelho da família nutre também as sementes ainda à espera de desenvolver-se e deve cuidar das árvores que perderam vitalidade e necessitam que não as transcurem», de modo que, partindo do dom de Cristo no sacramento, sejam conduzidas pacientemente mais além, chegando a um conhecimento mais rico e uma integração mais plena deste mistério na sua vida.
O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo 1, 9), inspira o cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente vivem juntos, que contraíram matrimónio apenas civil ou são divorciados que voltaram a casar. Perante situações difíceis e famílias feridas, é preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição.
A transmissão da vida e a educação dos filhos
O matrimônio é, em primeiro lugar, uma íntima comunidade da vida e do amor conjugal, que constitui um bem para os próprios esposos; e a sexualidade ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher. Esta união está ordenada para a geração, por sua própria natureza. O bebê que chega surge no próprio coração deste dom mútuo, do qual é fruto e complemento. Não aparece como o final dum processo, mas está presente desde o início do amor como uma caraterística essencial que não pode ser negada sem mutilar o próprio amor. Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o prolonga para além da sua própria existência. Assim nenhum ato sexual dos esposos pode negar este significado, embora, por várias razões, nem sempre possa efetivamente gerar uma nova vida.
O filho não é uma dívida, mas uma dádiva, é o fruto do ato de amor conjugal de seus pais. Com efeito, segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida estão ordenados reciprocamente (Gn 1, 27-28). Deste modo, o Criador tornou participantes da obra da sua criação o homem e a mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos do seu amor, confiando à sua responsabilidade o futuro da humanidade através da transmissão da vida humana.
Não é difícil constatar que se está espalhando uma mentalidade que reduz a geração da vida a uma variável dos projetos individuais dos cônjuges. Não posso deixar de afirmar que, se a família é o santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e cuidada, constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada e destruída. É tão grande o valor duma vida humana e inalienável o direito à vida do bebê inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto de domínio doutro ser humano.
Parece-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é dever gravíssimo e direito primário dos pais. Não é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender tirar-lhes. A escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento. Este é um princípio básico: qualquer outro participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo.
A família e a Igreja
Graças às famílias, torna-se credível a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel para sempre. Na família, como numa igreja doméstica (Lumen gentium), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual, por graça, se reflete o mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se aprende a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado, e sobretudo o culto divino, pela oração e pelo oferecimento da própria vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1657).
A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, em virtude do sacramento do matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a comunidade cristã. O amor vivido nas famílias é uma força permanente para a vida da Igreja. O fim unitivo do matrimónio é um apelo constante a crescer e aprofundar este amor. Na sua união de amor, os esposos experimentam a beleza da paternidade e da maternidade; partilham projetos e fadigas, anseios e preocupações; aprendem a cuidar um do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste amor, celebram os seus momentos felizes e apoiam-se nos episódios difíceis da história da sua vida. 
-- resumo do capítulo 3 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

19 de jul. de 2016

Uma só oração, uma esperança na caridade, na santa alegria

Sto Inácio de Antioquia foi martirizado em Roma
no ano 107. Escreveu esta e outras cartas às
comunidades que era responsável quando estava
já prisioneiro, aguuardando a execução. Elas compõem
um conjunto importantíssimo sobre a fé das primeiras
comunidades cristãos.
Contemplando na fé e amando toda a comunidade, eu vos exorto a empregardes todo o empenho em fazer tudo na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, em lugar de Deus, e dos presbíteros em lugar do senado apostólico, bem como dos diáconos, meus caríssimos. A eles, com efeito, foi confiado o ministério de Jesus Cristo, que antes dos séculos era com o Pai e apareceu no fim dos tempos. Todos, então, recebida a mesma vida divina, respeitai-vos mutuamente e ninguém considere o próximo segundo a carne, mas amai-vos sempre uns aos outros em Jesus Cristo. Nada haja em vós que vos possa separar. Uni-vos ao bispo e aos que presidem, como uma figura e demonstração da imortalidade.

Da mesma forma que, sem o Pai unido a ele, o Senhor nada fez por si nem pelos apóstolos, assim também vós, sem o bispo e os presbíteros, nada executeis. Também não tenteis fazer passar por coisa boa o que se fizer em separado. Reunindo-vos, porém, seja uma só oração, uma só súplica, um só modo de pensar, uma só esperança na caridade, na santa alegria, pois um só é Jesus Cristo, mais excelente do que tudo. Acorrei todos como a um só templo de Deus, como a um só altar, a um só Jesus Cristo, que proveio de um só Pai, com ele só esteve e a ele voltou.

Não vos deixeis seduzir por doutrinas estranhas ou velhas e inúteis fábulas. Se ainda vivemos de acordo com a lei judaica, confessamos não ter ainda recebido a graça. Pois os santos profetas já viveram em conformidade com Jesus Cristo. Por este motivo, inspirados por sua graça, sofreram perseguição, a fim de incutir certeza nos incrédulos de que há um só Deus, que se manifestou por Jesus Cristo, seu Filho, seu Verbo brotado do silêncio, que em tudo agradou àquele que o enviara.

Há quem negue a ressurreição de Cristo. Como isto é possível, se por ela recebemos o mistério da fé e por sua causa nos constituímos discípulos de Cristo, nosso único doutor? Se, pois, os que viveram sob a antiga economia chegaram à nova esperança, e assim não mais respeitam o sábado, porém, o domingo, no qual nossa vida ressurgiu por Cristo e sua morte, como poderemos viver sem ele, a quem os profetas esperaram como mestre e de quem já eram discípulos pelo espírito? Por esta razão, ao vir aquele a quem esperavam com justiça, foram ressuscitados dos mortos.

-- Da Carta aos Magnésios, de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir (século I)

16 de jul. de 2016

A realidade e desafios da família

 A família é fundamental para o futuro do mundo e da Igreja. É necessário prestar atenção à realidade concreta, porque "os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos da história através dos quais a Igreja pode ser guiada para uma compreensão mais profunda do inexaurível mistério do matrimônio e da família".[João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio]
Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimônio, para não contradizer a sensibilidade atual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer.
A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas precisa ser protegida. A defesa destes direitos é um apelo profético a favor da instituição familiar, que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão.
A situação atual da família
Inicialmente, há que considerar o crescente perigo representado por um individualismo exagerado que desvirtua os laços familiares e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em certos casos, a ideia de um sujeito que se constrói segundo os seus próprios desejos assumidos como absolutos. As tensões causadas por uma cultura individualista exagerada de posse e fruição geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade. Gostaria de acrescentar o ritmo da vida atual, o stresse, a organização social e laboral, porque são fatores culturais que colocam em risco a possibilidade de opções permanentes. A liberdade de escolher permite projetar a própria vida e cultivar o melhor de si mesmo, mas, se não se tiver objetivos nobres e disciplina pessoal, degenera numa incapacidade de se dar generosamente.
Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender a família, esta pode transformar-se em um lugar de passagem, aonde uma pessoa vai quando lhe parecer conveniente para si mesma, enquanto os vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias. Neste contexto, o casamento como um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências do momento ou pelos caprichos da pessoa. Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de proteção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais.
Devemos dar graças pela maioria das pessoas valorizar as relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo outro. No mundo atual, aprecia-se também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projeto comum e conservam o afeto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o casamento e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera.
Isto não significa deixar de advertir a decadência cultural que não promove o amor e a doação. Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam de uma relação afetiva para outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes sociais, se possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive bloquear rapidamente. O narcisismo torna as pessoas incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. 
Em alguns países, muitos jovens são frequentemente levados a adiar o matrimônio por problemas de tipo econômico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a influência das ideologias que desvalorizam o casamento e a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as oportunidades sociais e os benefícios econômicos derivados da convivência, uma concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e burocrático.
Preocupa a difusão da pornografia e da comercialização do corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso distorcido da internet e pela situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição. Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estágios primários da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais.
O enfraquecimento da fé e da prática religiosa afeta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas dificuldades. Os Padres disseram que uma das maiores pobrezas da cultura atual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações. Há também uma sensação geral de impotência face à realidade socioeconômica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias.
Nas sociedades altamente industrializadas, onde o seu número tende a aumentar enquanto diminui a taxa de natalidade, os idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por outro lado, os cuidados que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos. A valorização da fase final da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque na sociedade atual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da passagem. A eutanásia e o suicídio assistido são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros idosos e doentes.
Alguns desafios
Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que acaba dificultada porque os pais chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de comer em juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de distração, para além da televisão. Isto torna difícil a transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente padecem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente.
Mencionou-se também a toxicodependência como um dos flagelos do nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las. Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras dependências. Observamos as graves consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos desenraizados, idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens desorientados e sem regras.
Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimônio seja algo que beneficia a sociedade. Já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade.
Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família, que tende a adotar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. A força da família reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor.
Outro desafio surge de várias formas duma ideologia que nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo. Preocupa o fato de algumas ideologias deste tipo procurarem impor-se como pensamento único que determina até mesmo a educação das crianças. Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem separar o sexo biológico da função sociocultural do sexo. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.
Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho. Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações autodefensivas, em vez de suscitar uma criatividade missionária. A Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de esperança. Os grandes valores da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana. Se constatamos muitas dificuldades, estas são um apelo para libertar as energias da esperança, traduzindo-as em sonhos proféticos, ações transformadoras e imaginação da caridade.
-- resumo do capítulo 2 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

  

14 de jul. de 2016

Instrução sobre os ritos depois do batismo

Em seguida banhado nas águas do Batismo, subiste em direção ao sacerdote. Pensa no que se seguiu. Não foi aquilo que Davi cantou: Como o bálsamo na cabeça que desce pela barba, pela barba de Aarão? É o mesmo bálsamo de que fala Salomão: Bálsamo derramado é o teu nome, por isto as jovens te amaram e te atraíram. Quantas almas renovadas hoje te amam, Senhor Jesus, dizendo: Atrai-nos em teu seguimento, correremos ao odor de tuas vestes, para que respirem o odor da ressurreição. 

Entende de que modo se faz, pois os olhos do sábio estão em sua cabeça. A unção escorre pela barba, isto é, pela beleza da juventude; pela barba de Aarão para te tornares da raça eleita, sacerdotal, preciosa. Porque todos no reino de Deus somos também ungidos pela graça espiritual para o sacerdócio. Recebeste depois a veste branca, indício de teres despido a crosta dos pecados e revestido a casta túnica da inocência, lembrada pelo Profeta quando diz: Asperge-me com o hissopo e serei limpo, lavar-me-ás e serei mais branco do que a neve. Ora, quem é batizado vê-se purificado pela lei e pelo Evangelho: segundo a lei, porque como um ramo de hissopo Moisés aspergia o sangue do cordeiro; segundo o Evangelho, porque eram brancas como a neve as vestes de Cristo quando revelou a glória de sua ressurreição. Mais do que a neve se torna alvo aquele a quem se perdoa a culpa. O Senhor, por intermédio de Isaías, diz: Se vossos pecados forem como a púrpura, eu os alvejarei como a neve

Trazendo esta veste, recebida no banho do novo nascimento, a Esposa diz, nos Cânticos: Sou escura e formosa, filhas de Jerusalém. Escura, pela fragilidade da condição humana; formosa pela graça. Escura, por vir dentre os pecadores; formosa, pelo sacramento da fé. Vendo tais roupas, exclamam estupefatas as filhas de Jerusalém: Quem é esta que sobe tão alva? Ela era escura; donde lhe veio agora de repente este brilho? 

Cristo, que assumira uma veste sórdida, como se pode ler em Zacarias, por causa de sua Igreja, ao vê-la em vestes brancas, com a alma pura e lavada pelo banho do novo nascimento, diz: Como és formosa, minha irmã, como és formosa, teus olhos parecem-se com os da pomba, sob cuja forma desceu do céu o Espírito Santo. 

Lembra-te então que recebeste a marca espiritual, o Espírito de sabedoria e de inteligência, o espírito de conselho e de força, o espírito de ciência e de piedade, o espírito do santo temor. Guarda o que recebeste. Deus Pai te assinalou, o Cristo Senhor te confirmou e deu o penhor do Espírito em teu coração, como aprendeste com a leitura do Apóstolo.

-- Santo Anselmo, Do tratado sobre os Mistérios (século IV)

9 de jul. de 2016

A família de acordo com a Palavra de Deus

 Os dois primeiros capítulos do Génesis falam da criação do mundo e apresentam o casal humano na sua forma fundamental. Naquele trecho sobressai uma afirmação decisiva: Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher (Gn 1, 27).
O casal que ama e gera a vida manifesta Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo é símbolo das realidades íntimas de Deus (Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48, 3-4) e concreatamente refletido em várias sequências genealógicas (Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25, 1-4.12-17.19-26; 36): de fato, a capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação.
Jesus, ao falar sobre o matrimônio, cita o capítulo 2 do Génesis, onde aparece um retrato admirável do casal com dois detalhes. O primeiro é a inquietação vivida pelo homem, que busca “uma auxiliar semelhante” (vv. 18.20), capaz de resolver esta solidão que o perturba e que não encontra remédio na proximidade dos animais e da criação inteira. Como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos, “o meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim” (2, 16; 6, 3).
Deste encontro, que cura a solidão, surge a família. Este é um segundo detalhe: Adão, que é também o homem de todos os tempos e lugares, juntamente com Eva, dá origem a uma nova família, como afirma Jesus: “Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só” (Mt 19, 5; Gn 2, 24). No original hebraico, o verbo “unir-se” indica uma estreita sintonia, uma adesão física e interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus, como canta o salmista: “A minha alma está unida a Ti” (Sl 63/62, 9). Deste modo, define-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também como doação voluntária de amor. O fruto desta união é “tornar-se uma só carne", quer no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de levar as duas “carnes”, unindo-as genética e espiritualmente.
O Salmo 128 fala que um homem e a sua esposa estão sentados à mesa, ali aparecem os filhos que os acompanham “como rebentos de oliveira” (Sl 128/127, 3), cheios de energia e vitalidade. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos constituem as “pedras vivas” da família (1Ped 2, 5). Por isso, outro Salmo exalta o dom dos filhos com imagens que compara à edificação duma casa: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores. (...) Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim são os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles discutir às portas da cidade” (Sl 127/126, 1.3-5).
Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sabemos que o Novo Testamento fala da “igreja que se reúne em casa” (1Cor 16,19; Rm 16,5; Col 4,15). A casa da família pode transformar-se em igreja doméstica, em local da Eucaristia, da presença de Cristo sentado à mesma mesa, como descreve o Apocalipse: “Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3,20). Assim a família também é o local da catequese dos filhos. Eis como um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: “O que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacó, instituiu uma lei em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus próprios filhos" (Sl 78/77, 3-6). A família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua missão educativa (Pr 3, 11-12;6, 20-22; 13, 1; 29, 17).
Mas ao falar da família, a Bíblia não nega a presença do sofrimento, do mal e da violência que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e de amor. É um rastro de sofrimento e sangue que começa pela violência entre os irmãos Caim contra Abel, passa por vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, pelas tragédias que cobrem de sangue a família de Davi, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de Tobias. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que às pressas tem de fugir para uma terra estrangeira. A Palavra de Deus não é uma sequência de teses abstratas, mas é companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas na tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus “enxugará todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor” (Ap 21, 4).
No início do Salmo 128, o pai é apresentado como um trabalhador que pode, com a obra das suas mãos, manter o bem-estar físico e a serenidade da sua família: “Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente” (Sl 128,2). O fato de o trabalho ser uma parte fundamental da dignidade da vida humana deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quando se afirma que Deus “colocou [o homem] no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar” (Gn2, 15). No livro dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio do marido e dos filhos (cf.31, 10-31).
Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs sobretudo a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo13, 34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe costumam testemunhar na sua própria vida: “Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13). Frutos do amor são também a misericórdia e o perdão. Nesta linha, é importante a cena que nos apresenta uma adúltera na explanada do templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e, depois, sozinha com Jesus, que não a condena mas convida a uma vida mais digna (Jo 8, 1-11).
Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromisso, de família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A família é chamada a compartilhar a oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.

Cada família tenha diante de si o ícone da família de Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes. Como os Magos, as famílias são convidadas a contemplar o Menino com sua Mãe, a prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). Isso pode ajudar-nos a interpretar os contecimentos da vida e reconhecer a mensagem de Deus na história familiar.
-- resumo do capítulo 1 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

4 de jul. de 2016

São Junípero Serra, missionário franciscano, um dos fundadores da Califórnia

Em 24 de Novembro de 1713 nasceu Josep Miquel em Petra, na Ilha de Maiorca, filho de Antoni Serra e Margarita, agricultores muito modestos, certamente analfabetos, mas católicos devotos. Seus pais o colocaram na escola do convento franciscano de San Bernadino, onde estudou até ir para Palma de Maiorca fazer o curso superior.

Aos 15 anos sentiu-se chamado à vocação religiosa; em 15 de Setembro de 1731 professou os votos religiosos e assumiu o nome de Junípero, em homenagem ao Santo que foi um dos primeiros a entrar na Ordem Franciscana e administrou os últimos sacramentos a Santa Clara de Assis. Brilhante estudante de Filosofia, passou a dar aulas na Universidade de Palma de Maiorca, onde tinha uma vida confortável que permitia-o ajudar seus pais já idosos.   

No entanto, sentiu-se chamado à evangelização em terras pagãs. Demorou cerca de um ano para ser autorizado a partir para as Américas. Na carta de despedida, disse ao pais: "Vós irão aprender que doce é o jugo do Senhor, Ele mudará a tristeza que podeis sentir por minha partida em grande alegria. Agora não é tempo de temer os acontecimentos da vida, mas é tempo de se adaptar inteiramente à vontade de Deus e ocupar o tempo se preparando para uma morte feliz, que de todas as coisas da vida, é a ocupação mais importante." 

Em 1749, Serra chegou a Veracruz, no litoral do México. O governador deu-lhes cavalos para prosseguirem viagem até a Cidade do México, mas seguindo a regra da ordem, Junípero e outro frade preferiram seguir a pé, sem guias e provisões. Vivendo da caridade, dormindo onde lhe ofereciam abrigo, percorreram o caminho. Nesta viagem, Junípero ficou doente, com a perna inchada e sangrando. Jamais se recuperaria plenamente do problema. 

Ficou por seis meses na Cidade do México, trabalhando como professor e vivendo nas acomodações mais simples reservadas aos noviços. Foi então enviado a missão em Sierra Gorda, região habitada pelos índios Pame. Lá encontrou a missão muito desorganizada, com os padres descuidando dos aspectos pastorais. Junto com outros, traduziu o catecismo para lingua indígena, restaurou a Igreja, missas e o hábito das confissões. Também reformou a administração, implantando métodos mais modernos de agricultura e introduzindo a criação de animais que mandou trazer. Em um momento de crise, protegeu os índios de soldados que por ali se intalavam e queriam tomar as terras, obrigando-os a se retirarem para outras áreas.

São Junípero recebe o navio de
reabastecimento, que chegou em
San Diego no último dia possível.
Em 1758 retornou a Cidade do México, onde por nove anos trabalhou como professor, administrador e em visitas missionárias a várias regiões do país. Ficou até 1767 quando o Vice-Rei da Nova Espanha (Américas) expulsou todos jesuítas do país. Percebendo o vazio deixado, os franciscanos resolveram enviar missionários para lá. Aos 55 anos, Junípero foi escolhido para chefiar a missão que sairia da cidade de Loreto, no México, e seguiria em direção norte. Sua perna estava em péssimo estado e ele decidiu enviar o grupo a sua frente, enquanto permanecia na cidade para se restabelecer e celebrar a Semana Santa. Em 28 de Março saiu de lá acompanhado de dois ajudantes, levando comida para apenas um dia. 

No dia de Pentecostes, 14 de Maio de 1769, Serra fundou a sua primeira missão, San Fernando. No dia seguinte apareceram 12 homens e meninos nativos que foram recebidos da melhor maneira possível. Compartilharam um pouco de comida e convidaram os índios a trazerem suas famílias para morarem próximos a Igreja, apenas explicaram que não deveriam matar os animais, pois eles seriam importantes em tempos mais difíceis.

Em 1o. de Julho de 1769 chegaram à San Diego, após percorrerem cerca de 1450 km. Em 15 de Agosto, na Festa da Assunção, Junípero celebrou uma missão e instituiu a missão de San Diego. Naquela noite foram atacados por índios, que mataram um dos ajudantes de Serra, mas os quatro soldados com suas armas modernas foram suficientes para proteger a todo grupo. Porém o incidente afastou os índios da missão. Junípero e seus companheiros em San Diego por meses, sem frutos aparentes. Devido à escassez de comida, os soldados decidiram que em 19 de Março partiriam se não chegassem reforços e suprimentos. Um barco aportou ao entardecer do último dia, com comida e novos homens. Serra reorganizou o grupo e prosseguiu rumo norte, fundando várias missões no caminho: São Carlos Borromeu, Santo Antônio, São Gabriel, São Luis Obispo, São João Capistrano, São Francisco, Santa Clara, São Boaventura e Santa Bárbara, que ao longo dos anos floresceram e são a base para as atuais cidades na Califórnia.

Capela de São Carlos Borromeu, em Carmel,
onde está a tumba de São Junípero Serra.
Segundo relatos da época, São Junípero Serra era benevolente com os índios, tratando-os muito melhor que os funcionários do governo; com quem tinha problemas, especialmente os militares. Sempre defendia os índios, mesmo quando eles queimaram a missão de San Diego, aos soldados pedia que deixassem os índios em paz, que aos poucos eles progrediriam na fé e nos costumes. Serra padeceu grandes sofrimentos para evangelizar o povo indígena e fazer as missões prosperarem. Em certa medida, é responsável pela atual Califórnia, sendo o hispânico que contribuiu mais decisivamente para a história dos Estados Unidos. 

Por 14 anos administrou a região e suas várias missões. Viajava ao longo da costa, batizando e confirmando os índios convertidos, com grandes aflições, pois sua perna e uma doença pulmonar lhe atormentavam, restringindo seus movimentos. 

Faleceu em 28 de Agosto de 1784, aos 70 anos, na Missão de São Carlos Borromeu, atual Carmel. Está enterrando no chão da capela que ajudou a erigir. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 1988 e canonizado pelo Papa Francisco em 23 de Setembro de 2015, na Catedral Nacional de Washington. É considerado o patrono da Califórnia, dos hispânicos e das vocações religiosas.

-- autoria própria


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