20 de ago. de 2016

O amor conjugal

O amor conjugal é o amor que une os esposos, santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimônio. É uma união afetiva, espiritual e em comunhão com Deus, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem. Este amor forte, fruto do Espírito Santo, é reflexo da aliança indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na cruz. O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. 
O matrimônio é o ícone do amor de Deus por nós. Com efeito, também Deus é comunhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que consiste o mistério do matrimônio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência. Isto tem consequências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, em virtude do sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam tornar visível, a partir das realidades simples e ordinárias, o amor com que Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela.

A vida toda, tudo em comum
O casamento é uma união que busca do bem do outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre os dois que se vai construindo com a vida partilhada. O matrimônio acrescenta a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no projeto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Estes e outros sinais mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao definitivo. É uma aliança diante de Deus, que exige fidelidade: O Senhor constituiu-Se testemunha entre ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua companheira e aquela com quem fizeste aliança. Ninguém atraiçoe a mulher da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio (Ml 2, 14.15-16).
Um amor frágil cede à cultura do provisório, que impede um processo constante de crescimento. Mas prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um desígnio maior que os próprios projetos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa amada. Para que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo, requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto Belarmino, “o fato de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande mistério”.
Além disso, o matrimônio inclui a paixão, mas sempre orientada para uma união cada vez mais firme e intensa. Com efeito, não foi instituído só em ordem à procriação, mas para que o amor mútuo se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade. Esta união peculiar entre um homem e uma mulher adquire um caráter totalizante, que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta união também é exclusiva, fiel e aberta à geração. Partilha-se tudo, incluindo a sexualidade, sempre no mútuo respeito.
Alegria e beleza
No matrimônio convém cuidar da alegria do amor. Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar outros tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar prazer em realidades variadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga. A alegria matrimonial implica aceitar que o matrimônio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres.
A beleza – o “valor sublime” do outro, que não coincide com os seus atrativos físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o caráter sagrado da pessoa. Na sociedade de consumo, o sentido estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável, agressivo ou chato.
O olhar que aprecia tem uma enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz dano. Muitas feridas e crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar. Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias: “O meu marido não me olha, para ele parece que sou invisível”. “Por favor, olha para mim, quando te falo”. “A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para os filhos”. Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como se não existisse»”. O amor abre os olhos e permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Depois de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor
Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado, quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento real e concreto. Casar-se é uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova responsabilidade perante outra pessoa. Por isso, o matrimônio supera qualquer moda passageira e persiste. A sua essência está radicada na própria natureza da pessoa humana e do seu caráter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.
Semelhante opção pelo matrimônio expressa a decisão real e efetiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste este compromisso público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de forma exclusiva e definitiva com outro sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousada. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado incondicionalmente.
Amor que se manifesta e cresce
O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família é necessário usar três palavras: com licença, obrigado, desculpa. Quando numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe paz e alegria.
Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idílico e perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Não existem as famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não passam os anos, não existe a doença, a tribulação nem a morte. (...) A publicidade consumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com a realidade que devem enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família. É mais saudável aceitar com realismo os limites, os desafios e as imperfeições, e dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a solidez da união, suceda o que suceder.
O diálogo
O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e familiar. Reservar tempo, tempo de qualidade, que permita escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que precisava comunicar. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de dizer. Isto implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração e na mente: despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e urgências, dar espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não precisa duma solução para os seus problemas, mas de ser ouvido.
É necessário desenvolver o hábito de dar real importância ao outro. Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir, pensar de maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar aquilo que diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de vista. Para isso, é preciso colocar-se no seu lugar e interpretar a profundidade do seu coração, individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para aprofundar o diálogo.
Deve-se ter amplitude mental, para não se encerrar obsessivamente numas poucas ideias, e flexibilidade para poder modificar ou completar as próprias opiniões. É possível que, do meu pensamento e do pensamento do outro, possa surgir uma nova síntese que nos enriqueça a ambos. A unidade, a que temos de aspirar, não é uniformidade, mas uma “unidade na diversidade” ou uma “diversidade reconciliada”.
Por último, reconheçamos que, para ser profícuo o diálogo, é preciso ter algo para se dizer; e isto requer uma riqueza interior que se alimenta com a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à sociedade. Caso contrário, a conversa torna-se aborrecida e inconsistente. Quando cada um dos cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma variedade de relações com outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâmica e o diálogo fica empobrecido.
O mundo das emoções
Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos chamavam-lhes paixões) ocupam um lugar importante no matrimônio. É próprio de todo o ser vivo tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais afetivos: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. O ser humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem mau. O que pode ser bom ou mau é o ato que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois, se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más ações, o mal está na decisão de os alimentar e nos atos maus que se seguem. Na mesma linha, sentir atração por alguém não é, por si, um bem. Se esta atração me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Neste caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida emotiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em comum. A maturidade chega a uma família quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade, brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do ser humano, pois Ele criou tudo para nosso usufruto (1 Tim 6, 17). Deixemos brotar a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: Meu filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente (Eclo 14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: No dia da felicidade, sê alegre (Eclo 7, 14). A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo com as necessidades do amor mútuo.
A dimensão erótica do amor
Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se produza o depauperamento de um valor autêntico. A sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e inviolável. Assim, o coração humano torna-se participante, por assim dizer, de outra espontaneidade. Neste contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade. O erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.
Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro, torna-se uma afirmação amorosa plena e cristalina, mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, sente-se que a existência humana foi um sucesso.
Violência e manipulação
Não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias, de modo que se torna cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos. Neste tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito venenoso do usa e joga fora. Com frequência, o corpo do outro é manipulado como uma coisa que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza quando perde a atração.
Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimônio, a sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos reafirmar, claramente, que um ato conjugal imposto ao próprio cônjuge, sem consideração pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um verdadeiro ato de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de reta ordem moral, nas relações entre os esposos. Por isso, São Paulo exortava: Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite do seu irmão (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse numa época em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve ser uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as relações sexuais por algum tempo, mas de mútuo acordo (1 Cor 7, 5).
É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de submissão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que as mulheres [sejam submissas] aos seus maridos (Ef 5, 22). Retomemos São João Paulo II: “O amor exclui todo o genero de submissão, pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido”. Por isso, se diz que devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu próprio corpo (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida: Submetei-vos uns aos outros (Ef 5, 21).
Lembremo-nos de que um amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na união sexual. Bento XVI era claro a este respeito: “Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade”.
Matrimónio e virgindade
A virgindade é uma forma de amor. Como sinal, recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao serviço da evangelização (cf. 1Cor 7, 32) e é um reflexo da plenitude do Céu, onde nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos (Mt 22, 30). São Paulo recomendava a virgindade, porque esperava para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: O tempo é breve (1Cor 7, 29). Contudo deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1Cor 7, 6-8), não uma exigência de Cristo: Não tenho nenhum preceito do Senhor (1Cor 7, 25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: Cada um recebe de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra (1Cor 7, 7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos não oferecem motivo para sustentar nem a “inferioridade” do matrimônio, nem a “superioridade” da virgindade ou do celibato devido à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo, Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande como «a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a humana».[167]
A transformação do amor

O alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha. É o companheiro no caminho da vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades e gozar das coisas lindas. Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade. O amor, que nos prometemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que envolve toda a existência. 
-- resumo de parte do capítulo 4 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

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