24 de set. de 2016

Espiritualidade Familiar

O amor assume matizes diferentes, segundo o estado de vida a que cada um foi chamado. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de santificação na vida diária e de crescimento místico, um meio para a união íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e comunitárias da vida em família são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração, e isto torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus, que quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas (1 Jo 2, 11), permanece na morte (1 Jo 3, 14) e não chegou a conhecer a Deus (1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que “o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus” e que, fundamentalmente, o amor é a única luz que ilumina incessantemente um mundo às escuras. Somente se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós (1 Jo 4, 12). Dado que a pessoa humana tem uma inata e estrutural dimensão social e a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família, a espiritualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus abandonado, que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco, com a graça do Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial, participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as dificuldades e os sofrimentos em oferta de amo. Por outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua Ressurreição.
A oração em família é um meio privilegiado para exprimir e reforçar esta fé pascal. Podem-se encontrar alguns minutos cada dia para estar unidos na presença do Senhor vivo, dizer-Lhe as coisas que nos preocupam, rezar pelas necessidades familiares, orar por alguém que está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar, dar-Lhe graças pela vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com o seu manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer muito bem à família. O caminho comunitário de oração atinge o seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no dia do descanso dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar com ela a Ceia Eucarística (Ap 3, 20). Aqui, os esposos podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflete a Aliança que Deus selou com a humanidade na Cruz. A Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se atualiza a ação redentora de Cristo (cf. Lc 22, 20). O alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança matrimonial como igreja doméstica.
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
No matrimônio vive-se também o sentido de pertencer completamente a uma única pessoa. Os esposos assumem o desafio e o anseio de envelhecer e gastar-se juntos, e assim refletem a fidelidade de Deus. Esta firme decisão, que marca um estilo de vida, é uma exigência interior do pacto de amor conjugal, porque, quem não se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar deveras um só dia. Mas isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida com resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5, 28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de Deus esta decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao longo do dia. E cada um, quando vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura, confiando na ajuda do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento da proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos: Eu estarei sempre convosco, até ao fim dos tempos (Mt 28, 20).
Há um ponto em que o amor do casal alcança a máxima libertação e se torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre que o outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único Senhor. Ninguém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual de cada um o ajude a desiludir-se do outro, a deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus. Isto exige um despojamento interior. O espaço exclusivo, que cada um dos cônjuges reserva para a sua relação pessoal com Deus, não só permite curar as feridas da convivência, mas possibilita também encontrar no amor de Deus o sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar cada dia a ação do Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da consolação e do estímulo
Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um para com o outro, para com os filhos e demais familiares. Deus convida-os a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a família foi desde sempre o “hospital” mais próximo. Prestemo-nos cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como parte da nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na obra fecunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do Espírito. Por isso, querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só.

Toda a vida da família é um pastoreio misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro: A nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um pescador de homens (Lc 5, 10) que, em nome de Jesus, lança as redes (Lc 5, 5) para os outros, ou um lavrador que trabalha nesta terra fresca que são os seus entes queridos, incentivando o melhor deles. Amar uma pessoa é esperar dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo tempo, proporcionar-lhe de alguma forma os meios para satisfazer tal expectativa. Isto é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas coisas boas nos outros, com a esperança de que as façamos crescer.
É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É possível estar plenamente presente diante do outro, se uma pessoa se entrega gratuitamente, esquecendo tudo o que existe em redor. Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (Mc10, 21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas palavras e gestos eram expressão desta pergunta: Que queres que te faça? (Mc 10, 51). Na vida familiar recordamos que a pessoa que vive conosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objeto do amor imenso do Pai.
Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar não só acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para derramar o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade, que a Palavra de Deus encoraja de forma sugestiva: Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjo (Heb 13, 2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos pobres e abandonados, é símbolo, testemunho, participação da maternidade da Igreja. 
Conclusão
Com efeito, como recordamos várias vezes nesta Exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do céu. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida.
Oração à Sagrada Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.

Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Amem.
-- resumo do capítulo 9 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

23 de set. de 2016

A vocação dos presbíteros à perfeição

Pelo sacramento da Ordem, os presbíteros são configurados com Cristo sacerdote, na qualidade de ministros da Cabeça, para construir e edificar todo o seu corpo que é a Igreja, como cooperadores da ordem episcopal. De fato, já pela consagração do batismo receberam, como todos os cristãos, o sinal e o dom de tão grande vocação e graça para que, apesar da fraqueza humana, possam e devam procurar a perfeição, segundo a palavra do Senhor: Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5,48). 

Os sacerdotes, porém, estão obrigados por especial motivo a atingir tal perfeição, uma vez que, consagrados a Deus de modo novo pela recepção do sacramento da Ordem, se transformaram em instrumentos vivos de Cristo, eterno Sacerdote, a fim de poderem continuar através dos tempos sua obra admirável que reuniu com suma eficiência toda a família humana. 

Como, pois, cada sacerdote, a seu modo, faz as vezes da própria pessoa de Cristo, é também enriquecido por uma graça especial, para que, no serviço dos homens a ele confiados e de todo o povo de Deus, possa alcançar melhor a perfeição daquele a quem representa, e para que veja a fraqueza do homem carnal curada pela santidade daquele que por nós se fez Pontífice santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores (Hb 7,26). 

Cristo, a quem o Pai santificou, ou melhor, consagrou e enviou ao mundo, se entregou por nós, para nos resgatar de toda a maldade e purificar para si um povo que lhe pertença e que se dedique a praticar o bem (Tt 2,1), e assim, pela Paixão, entrou na sua glória. De modo semelhante, os presbíteros, consagrados pela unção do Espírito Santo e enviados por Cristo, mortificam em si mesmos as obras da carne e dedicam-se totalmente ao serviço dos homens, e assim podem progredir na santidade pela qual foram enriquecidos em Cristo, até atingirem a estatura do homem perfeito. 

Deste modo, exercendo o ministério do Espírito e da justiça, se forem dóceis ao Espírito de Cristo que os vivifica e dirige, firmam-se na vida espiritual. Pelas próprias ações sagradas de cada dia, como também por todo o seu ministério, exercido em comunhão com o bispo e com os outros presbíteros, eles mesmos se orientam para a perfeição da vida. 

A santidade dos presbíteros, por sua vez, contribui muitíssimo para o desempenho frutuoso do próprio ministério; pois, embora a graça divina possa realizar a obra da salvação também por meio de ministros indignos, contudo Deus prefere, segundo a lei ordinária, manifestar as suas maravilhas através daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim (Gl 2,20).

-- Do Decreto Presbyterorum ordinis sobre o ministério e a vida dos presbíteros, do Concílio Vaticano II (século XX)

12 de set. de 2016

As situações frágeis de matrimônio

O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes confere a graça para se constituírem como igreja doméstica e serem fermento de vida nova para a sociedade. Algumas formas de união contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de forma parcial e analógica.
A gradualidade na pastoral
Os Padres consideraram também a situação particular de um matrimônio apenas civil ou da mera convivência: quando a união atinge uma notável estabilidade através dum vínculo público e se caracteriza por um afeto profundo, responsabilidade para com a prole, capacidade de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar na sua evolução para o sacramento do matrimônio. 
Muitas vezes a escolha do matrimônio civil ou, em diversos casos, da simples convivência não é motivada por preconceitos ou relutância face à união sacramental, mas por situações culturais ou contingentes. Nestas situações, poderão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum modo o amor de Deus. Muitas vezes, escolhe-se a simples convivência por causa da mentalidade geral contrária às instituições e aos compromissos definitivos, mas também porque se espera adquirir maior segurança existencial (emprego e salário fixo). Mas é preciso enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimônio e da família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza. 
Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada lei da gradualidade, não uma gradualidade da lei, mas uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver com a força da graça, embora cada ser humano avance gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social.
O discernimento das situações chamadas irregulares
Quero lembrar aqui uma coisa que propus a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. O caminho da Igreja é o de não condenar ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero. Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita.
Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto duma misericórdia imerecida, incondicional e gratuita. Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem. Obviamente, se alguém ostenta um pecado objetivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (Mt 18, 17). Precisa-se voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão.
Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes. Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir que se cairia em novas culpas. Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que contraíram uma segunda união e, às vezes, estão certos em consciência de que o precedente matrimônio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido. Coisa diferente, porém, é uma nova união que vem de um divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares. 
Quanto aos batizados, a lógica da integração é a chave do acompanhamento pastoral, para todos saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados o elemento mais importante.
Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas, é possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos. Os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo. 
Neste processo, será útil fazer um exame de consciência, através de momentos de reflexão e arrependimento. Os divorciados novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão sincera pode reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma. Estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente “exceções”, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores.
As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral
Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um discernimento especial nalgumas situações chamadas “irregulares”, há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada “irregular” vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, pelo que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas.
São Tomás de Aquino
A propósito, o Catecismo da Igreja Católica (p.1735) exprime-se de maneira categórica: A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais. Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida. No contexto destas convicções, considero muito apropriado aquilo que muitos Padres sinodais afirmaram que em determinadas circunstâncias, as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de maneira diferente. As próprias consequências dos atos praticados não são necessariamente as mesmas em todos os casos.
Devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa.
As normas e o discernimento
É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino: Embora nos princípios gerais tenhamos o caráter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação. Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação. É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático da situação particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.
Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas. Por causa dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus.
Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de pecados (1 Ped 4, 8); redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes (Dn 4, 24); a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado (Eclo 3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio.
Santo Agostinho
A lógica da misericórdia pastoral
Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza. É preciso encorajar os jovens batizados para não hesitarem perante a riqueza que o sacramento do matrimônio oferece aos seus projetos de amor, com a força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja. A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens.
Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias atenuantes, conclui-se que, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia, dando lugar à misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada. Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (Mt 7, 1; Lc 6, 37).
A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. Ela bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como Pastor de cem ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas.
Não podemos esquecer que a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco. A coluna que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. Por isso, convém sempre considerar inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância, ponha em dúvida a própria omnipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia.
Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto dum discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a lógica que deve prevalecer na Igreja, para fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais.
-- resumo do capítulo 8 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

10 de set. de 2016

Renova os nossos dias como no princípio

Deus Verbo do excelso Pai não abandonou a natureza dos homens que descambava para a corrupção. Mas pela oblação do próprio corpo destruiu a morte em que haviam incorrido, corrigiu pela doutrina sua indignidade e tudo de humano restaurou.

Poderá confirmar tudo isto pela autoridade dos teólogos, discípulos de Cristo, quem quer que leia o que dizem: A caridade de Cristo nos urge, sabendo que se um morreu por todos, logo todos estão mortos; e por todos morreu ele para que não mais vivamos para nós mesmos, mas para aquele que por nós morreu e ressuscitou dos mortos, nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 2Cor 5,14-15). E de novo: Aquele que foi colocado por pouco tempo abaixo dos anjos, Jesus, nós o vemos coroado de glória e de honra, por causa dos sofrimentos da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte em favor de todos (Hb 2,9). Mais adiante, dá a razão por que ao Deus Verbo e só a ele convinha fazer-se homem: Convinha que o autor da salvação, para quem tudo e por quem tudo foi feito, e que levaria muitos filhos à glória, chegasse à consumação pela paixão (Hb 2,10). Por estas palavras significa não competir a outro que não ao Deus Verbo, por quem foram criados no início, arrancar os homens da corrupção.

Foi este o motivo por que o Verbo aceitou um corpo, a fim de se tornar vítima em favor dos corpos semelhantes; também isto se afirma pelos seguintes dizeres: Os filhos têm em comum a carne e o sangue; ele de igual modo deles participou, para destruir por sua morte aquele que detinha o império da morte, isto é, o diabo, e libertar os que pelo temor da morte eram sujeitos à escravidão durante toda a vida (Hb 2,14-15). Na verdade, imolando o próprio corpo, pôs fim à lei decretada contra nós e para nós renovou o princípio da vida, dando a esperança de ressurgirmos. 

A morte recebera dos homens o poder contra os homens; pelo Verbo de Deus enviado aos homens, veio a destruição da morte e a ressurreição da vida, como disse o varão repleto de Cristo: Porque por um homem entrou a morte e por um homem, a ressurreição dos mortos. Pois como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos serão vivificados (1Cor 15,21-22) e o que se segue. Já não mais morremos para nosso castigo, mas como os que serão despertados dos mortos aguardamos a ressurreição comum a todos. Em seu tempo, Deus, o autor e doador destas coisas, o manifestará.

-- Dos Sermões de Santo Atanásio, bispo (século IV)

5 de set. de 2016

Sobre a educação dos filhos

Os pais incidem sempre, para bem ou para mal, no desenvolvimento moral dos seus filhos. Consequentemente, o melhor é aceitarem esta responsabilidade inevitável e realizarem-na de modo consciente, entusiasta, razoável e apropriado.
A família não pode renunciar a ser lugar de apoio, acompanhamento, guia, embora tenha de reinventar os seus métodos e encontrar novos recursos. Precisa considerar ao que a realidade quer expor os seus filhos. Sempre faz falta vigilância; o abandono nunca é sadio. Os pais devem orientar e alertar as crianças e os adolescentes para saberem enfrentar situações onde possa haver risco, por exemplo, de agressões, abuso ou consumo de droga.
A obsessão, porém, não é educativa; e também não é possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se. Vale aqui o princípio de que “o tempo é superior ao espaço”, isto é, trata-se mais de gerar processos que de dominar espaços. Se um pai está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si mesmo os elementos de que precisa para saber defender-se e agir com inteligência e cautela em circunstâncias difíceis. Assim, a grande questão não é onde está fisicamente o filho, com quem está neste momento, mas onde se encontra em sentido existencial, onde está posicionado do ponto de vista das suas convicções, dos seus objetivos, dos seus desejos, do seu projeto de vida.
É inevitável que cada filho nos surpreenda com os projetos que brotam da liberdade de escolha, que rompam os nossos esquemas; e é bom que isto aconteça. A educação envolve a tarefa de promover liberdades responsáveis, que saibam optar com sensatez e inteligência; pessoas que compreendam sem reservas que a sua vida e a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e que esta liberdade é um dom imenso.
A formação ética dos filhos
O desenvolvimento afetivo e ético duma pessoa requer uma experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança. Quando um filho deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de notar que nutrem uma sincera preocupação por ele, isto cria feridas profundas que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento.
A tarefa dos pais inclui uma educação da vontade e um desenvolvimento de hábitos bons e tendências afetivas para o bem. Isto implica que se apresentem como desejáveis os comportamentos a aprender e as tendências a fazer maturar. Para agir bem, não basta julgar de modo adequado ou saber com clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja prioritário. Uma formação ética válida implica mostrar à pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem. Muitas vezes é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem mostrar claramente o bem que se poderia alcançar com isso.
É necessário maturar hábitos. Uma pessoa pode possuir sentimentos sociáveis e uma boa disposição para com os outros, mas se não foi habituada durante muito tempo, por insistência dos adultos, a dizer “por favor”, “com licença”, “obrigado”, a tal boa disposição interior não se traduzirá facilmente nestas expressões. A virtude é uma convicção que se transformou num princípio interior e estável do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a liberdade, fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de inclinações compulsivas desumanizadoras e anti-sociais.
O valor da sanção como estímulo
De igual modo, é indispensável sensibilizar a criança e o adolescente para se darem conta de que as más ações têm consequências. É preciso despertar a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir pesar pelo seu sofrimento originado pelo mal que lhe fez. Algumas sanções – aos comportamentos anti-sociais agressivos – podem parcialmente cumprir esta finalidade. É importante orientar a criança, com firmeza, para que peça perdão e repare o mal causado aos outros.
A correção é um estímulo quando, ao mesmo tempo, se apreciam e reconhecem os esforços e quando o filho descobre que os seus pais conservam viva uma paciente confiança. Uma criança corrigida com amor sente-se tida em consideração, percebe que é alguém, dá-se conta de que seus pais reconhecem as suas potencialidades. Isto não exige que os pais sejam irrepreensíveis, mas que saibam reconhecer, com humildade, os seus limites e mostrem o seu esforço pessoal por ser melhores. Mas um testemunho de que os filhos precisam da parte dos pais, é que estes não se deixem levar pela ira. O filho, que comete uma má ação, deve ser corrigido, mas nunca como um inimigo ou como alguém sobre quem se descarrega a própria agressividade. Por isso, seria nociva uma atitude constantemente punitiva: Vós, pais, não exaspereis os vossos filhos (Ef 6, 4; cf. Col 3, 21).
Realismo paciente
A educação moral implica pedir a uma criança ou a um jovem apenas aquelas coisas que não representem, para eles, um sacrifício desproporcionado, exigir-lhes apenas aquela dose de esforço que não provoque ressentimento ou acções puramente forçadas. O percurso normal é propor pequenos passos que possam ser compreendidos, aceites e apreciados, e impliquem uma renúncia proporcionada. Caso contrário, pedindo demasiado, nada se obtém.
Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo pouco a pouco, avançar de maneira diferente segundo a idade e as possibilidades concretas das pessoas, sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis. A liberdade efetiva, real, é limitada e condicionada. Nem sempre se faz uma distinção adequada entre ato voluntário e ato livre. É o que acontece com um viciado: quando quer a droga, procura-a com todas as suas forças, mas está tão condicionado que não é capaz de tomar outra decisão. Portanto, a sua decisão é voluntária, mas não livre. Não tem sentido deixá-lo escolher livremente, porque, de fato, já não pode escolher. Precisa da ajuda dos outros e de um percurso educativo.
A vida familiar como contexto educativo
A família é a primeira escola dos valores humanos, onde se aprende o bom uso da liberdade. Há inclinações maturadas na infância, que impregnam o íntimo duma pessoa e permanecem toda a vida como uma inclinação favorável a um valor ou como uma rejeição espontânea de certos comportamentos. Muitas pessoas atuam a vida inteira duma determinada forma, porque consideram válida tal forma de agir, que assimilaram desde a infância, como que por osmose: “Fui criado assim”.
Na época atual, em que reina a ansiedade e a pressa tecnológica, uma tarefa importantíssima das famílias é educar para a capacidade de esperar. Quando as crianças ou os adolescentes não são educados para aceitar que algumas coisas devem esperar, tornam-se prepotentes, submetem tudo à satisfação das suas necessidades imediatas e crescem com o vício do tudo e agora. Este é um grande engano que não favorece a liberdade; antes, intoxica-a. Ao contrário, quando se educa para aprender a adiar algumas coisas e esperar o momento oportuno, ensina-se o que significa ser senhor de si mesmo, aut6onomo face aos seus próprios impulsos. Naturalmente isto não significa pretender das crianças que ajam como adultos, mas também não se deve subestimar a sua capacidade de crescer na maturação duma liberdade responsável. Numa família sã, esta aprendizagem realiza-se de forma normal através das exigências da convivência.
A família é o âmbito da socialização primária, porque é o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a escutar, partilhar, suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa educativa deve levar a sentir o mundo e a sociedade como ambiente familiar: é uma educação para saber habitar mais além dos limites da própria casa. No contexto familiar, ensina-se a recuperar a proximidade, o cuidado, a saudação. É lá que se rompe o primeiro círculo do egoísmo mortífero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto de outros, com outros, que são dignos da nossa atenção, da nossa gentileza, do nosso afeto.
O encontro educativo entre pais e filhos pode ser facilitado ou prejudicado pelas tecnologias de comunicação e distração, cada vez mais sofisticadas. Bem utilizadas, podem ser úteis para pôr em contato os membros da família, que vivem longe. Sabemos que, às vezes, estes meios afastam em vez de aproximar, por exemplo, na hora da refeição, cada um está concentrado no seu celular ou quando um dos cônjuges adormece à espera do outro que passa horas entretido com algum electrônico. Na família, também isto deve ser motivo de diálogo e de acordos que permitam dar prioridade ao encontro dos seus membros sem cair em proibições insensatas.
Mas também não é bom que os pais se tornem seres omnipotentes para seus filhos, de modo que estes só poderiam confiar neles, porque assim impedem um processo adequado de socialização e amadurecimento afectivo. Para favorecer uma educação integral, precisamos de reavivar a aliança entre a família e a comunidade cristã. Para isso deve-se afirmar resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a própria doutrina e o direito à objeção de consciência por parte dos educadores.
Sim à educação sexual
O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade de uma educação sexual positiva e prudente oferecida às crianças e adolescentes à medida que vão crescendo. A sexualidade se poderia entender no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua; assim, a linguagem da sexualidade não acabaria tristemente empobrecida, mas esclarecida. É possível cultivar o impulso sexual num percurso de conhecimento de si mesmo e no desenvolvimento duma capacidade de autodomínio, que podem ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de alegria e encontro amoroso.
A educação sexual oferece informação, mas sem esquecer que as crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A informação deve chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que vivem. Não é útil saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico perante uma invasão de propostas, perante a pornografia descontrolada e a sobrecarga de estímulos que podem mutilar a sexualidade. Tem um valor imenso uma educação sexual que cuide um são pudor, embora hoje alguns considerem que é questão doutros tempos. É uma defesa natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser transformada em mero objeto. Sem o pudor, podemos reduzir o afeto e a sexualidade a obsessões que nos concentram apenas nos órgãos genitais, em morbosidades que deformam a nossa capacidade de amar e em várias formas de violência sexual que nos levam a ser tratados de forma desumana ou a prejudicar os outros.
É preciso não enganar os jovens, levando-os a confundir os planos: a atração cria, por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem amor, tal união deixa os desconhecidos tão separados como antes. A linguagem do corpo requer uma aprendizagem paciente que permita interpretar e educar os próprios desejos em ordem a uma entrega de verdade. Quando se pretende entregar tudo duma vez, é provável que não se entregue nada.
Transmitir a fé
A educação dos filhos deve estar marcada por um percurso de transmissão da fé, que se vê dificultado pelo estilo de vida atual, pelos horários de trabalho, pela complexidade do mundo atual, onde muitos têm um ritmo frenético para poder sobreviver. Apesar disso, a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. Isto começa no batismo, onde – como dizia Santo Agostinho – as mães que levam os seus filhos cooperam no parto santo. Depois tem início o percurso de crescimento desta vida nova. A fé é dom de Deus, recebido no batismo, e não o resultado duma ação humana; mas os pais são instrumentos de Deus para a sua maturação e desenvolvimento. A transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em Deus, de O procurar, de precisar d’Ele, porque só assim “cada geração contará à seguinte o louvor das obras [de Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas” (Sl 145/144, 4) e “o pai dará a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade” (Is 38, 19). Isto requer que imploremos a ação de Deus nos corações, aonde não podemos chegar. O grão de mostarda, semente tão pequenina, transforma-se num grande arbusto (Mt 13, 31-32), e, deste modo, reconhecemos a desproporção entre a ação e o seu efeito.
As crianças precisam de símbolos, gestos, narrações. É fundamental que os filhos vejam de maneira concreta que, para os seus pais, a oração é realmente importante. Por isso, os momentos de oração em família e as expressões da piedade popular podem ter mais força evangelizadora do que todas as catequeses e todos os discursos. Quero exprimir a minha gratidão de forma especial a todas as mães que rezam incessantemente, como fazia Santa Mônica, pelos filhos que se afastaram de Cristo.
Os filhos que crescem em famílias missionárias, frequentemente tornam-se missionários, se os pais sabem viver esta tarefa duma maneira tal que os outros os sintam vizinhos e amigos, de tal modo que os filhos cresçam neste estilo de relação com o mundo, sem renunciar à sua fé nem às suas convicções. Lembremo-nos que o próprio Jesus comia e bebia com os pecadores (Mc 2, 16; Mt 11, 19), podia deter-se a conversar com a Samaritana (Jo 4, 7-26) e receber de noite Nicodemos Jo 3, 1-21), deixava ungir os seus pés por uma mulher prostituta (Lc 7, 36-50) e não hesitava em tocar os doentes (Mc 1, 40-45; 7, 33). E o mesmo faziam os seus apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras dos outros, fechadas em pequenos grupos de eleitos, isoladas da vida do seu povo. Enquanto as autoridades os perseguiam, eles gozavam da simpatia de todo o povo (At 2, 47; 4, 21.33; 5, 13).
A transmissão da fé deve ser feita no contexto da convicção mais preciosa dos cristãos: o amor do Pai que nos sustenta e faz crescer, manifestado no dom total de Jesus Cristo, vivo no meio de nós, que nos torna capazes de enfrentar, unidos, todas as tempestades e todas as etapas da vida. E, no coração de cada família, deve ressoar também o querigma, a tempo e fora de tempo, para iluminar o caminho. Todos deveríamos poder dizer, a partir da vivência nas nossas famílias: Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele (1Jo 4, 16). Só a partir desta experiência é que a pastoral familiar poderá conseguir que as famílias sejam simultaneamente igrejas domésticas e fermento evangelizador na sociedade.

-- resumo do capítulo 7 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Papa Francisco

Grande paz para os que amam a tua lei

Com razão a bem-aventurança de ver a Deus é prometida aos corações puros. Pois os olhos imundos não podem ver o esplendor da verdadeira luz; será alegria das almas límpidas aquilo mesmo que será castigo dos corações impuros. Para longe então a fuligem das vaidades terrenas. Limpemos de toda iniquidade suja os olhos interiores, e o olhar sereno se sacie de tão maravilhosa visão de Deus.

Merecer tal coisa, penso eu, é o fito do que se segue: Bem-aventurados os pacíficos porque serão
São Leão Magno (escoltado por São Pedro e São Paulo),
encontra-se com Átila, o Huno para selar um acordo de paz.
chamados filhos de Deus (Mt 5,9). Esta bem-aventurança, caríssimos, não consiste em um acordo qualquer nem em qualquer concórdia. É aquela de que fala o Apóstolo: Tende paz com Deus (Rm5,1) e o profeta: Grande paz para os que amam tua lei e para eles não há tropeço (Sl 118,165).

Mesmo os mais estreitos laços de amizade e uma igualdade sem falha dos espíritos não podem, na verdade, reivindicar para si esta paz, se não concordarem com a vontade de Deus. Estão fora da dignidade desta paz a semelhança na cobiça dos maus, as alianças pecaminosas, os pactos para o vício. O amor do mundo não combina com o amor de Deus, nem passa para a sociedade dos filhos de Deus quem não se separa da vida carnal. Quem sempre com Deus tem em mente guardar com solicitude a unidade do espírito no vínculo da paz (Ef 4,3), jamais discorda da lei eterna, repetindo a oração da fé: Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu (Mt 6,10).

São estes os pacíficos, estes os unânimes no bem, santamente concordes, que receberão o nome eterno de filhos de Deus, co-herdeiros de Cristo (cf. Rm 8,17). Porque o amor de Deus e o do próximo lhes obterão não mais sentir adversidades, não mais temer escândalo algum. Mas terminado o combate de todas as tentações, repousarão na tranquila paz de Deus, por nosso Senhor que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

-- Do Sermão sobre as Bem-aventuranças, de São Leão Magno, papa (Séc. V)

2 de set. de 2016

Bem-aventurados os pobres de espírito

Não há dúvida de que os pobres alcançam mais facilmente que os ricos o bem da humildade; estes, nas riquezas, a conhecida altivez. Contudo em muitos ricos encontra-se a disposição de empregar sua abundância não para se inchar de soberba, mas para realizar obras de benignidade; e assim eles têm por máximo lucro tudo quanto gastam em aliviar a miséria do trabalho dos outros.  

A todo gênero e classe de pessoas é dado ter parte nesta virtude, porque podem ser iguais na intenção e desiguais no lucro; e não importa quanto sejam diferentes nos bens terrenos, se são idênticos nos bens espirituais. Feliz então a pobreza que não se prende ao amor das coisas transitórias, nem deseja o crescimento das riquezas do mundo, mas anseia por enriquecer-se com os tesouros celestes.

Exemplo de fidalga pobreza foi-nos dado primeiro, depois do Senhor, pelos apóstolos que, abandonando igualmente todas as posses à voz do Mestre celeste, se transformaram, por célebre conversão, de pescadores de peixes em pescadores de homens (cf. Mt 4,19). Eles tornaram a muitos outros semelhantes a si, à imitação de sua fé, quando nos filhos da Igreja primitiva era um só o coração de todos e uma só a alma dos que criam (cf. At 4,32). Desapegados de todas as coisas e de suas posses, pela pobreza sagrada enriqueciam-se com os tesouros eternos. Segundo a pregação apostólica, alegravam-se por nada ter do mundo e tudo possuir com Cristo.  

O santo apóstolo Pedro, subindo ao templo, respondeu ao entrevado que lhe pedia esmola: Prata e ouro não possuo; mas o que tenho te dou: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda (At 3,6). Que de mais sublime do que esta humildade? E mais rico do que esta pobreza? Não tem os auxílios do dinheiro, mas tem os dons do espírito. Saíra ele paralítico do seio de sua mãe; com a palavra Pedro o curou. Quem não deu a efígie de César na moeda, reformou no homem a imagem de Cristo. 

Com este rico tesouro não foi socorrido só aquele que recuperou o andar, mas ainda as cinco mil pessoas que naquele momento creram na exortação do Apóstolo por causa do milagre da cura (cf. At 4,4). E o pobre que não tinha para dar a um mendigo, distribuiu com tanta largueza a graça divina! Da mesma forma como estabeleceu a um só homem em seus pés, assim curou a tantos milhares de fiéis em seus corações e tornou saltitantes em Cristo aqueles que encontrara entrevados.

-- Do Sermão sobre as Bem-aventuranças, de São Leão Magno, papa (século V)

1 de set. de 2016

Imprimirei a minha lei em seu íntimo

Nosso Senhor Jesus Cristo, caríssimos, ia pregando o Evangelho do reino, curando as enfermidades por toda a Galiléia, e a fama de seus prodígios se espalhava pela Síria inteira. Grandes multidões, vindas da Judéia, afluíam ao médico celeste. Lenta é para a ignorância humana a fé em crer no que não vê e esperar o que não conhece. Foram precisos, a fim de firmar na doutrina divina, os benefícios corporais e o estímulo dos milagres patentes. Pela experiência de seu tão benigno poder não duvidariam que sua doutrina traz a salvação.  
Monte das Bem-aventuranças, ao norte do Mar da Galiléia, ainda
com o Santuário que foi recentemente incendiado.

Para passar das curas exteriores aos remédios interiores e depois da cura dos corpos à saúde das almas, o Senhor separou-se das turbas que o cercavam, subiu à solidão do monte vizinho. Chamou os apóstolos para formá-los com mais elevadas instruções do alto da cátedra mística. Pelo próprio lugar e qualidade do ato, significava ser o mesmo que se dignara outrora falar com Moisés. Lá na mais apavorante justiça, aqui com a mais divina clemência. Eis que vêm dias, diz o Senhor, e firmarei com a casa de Israel e a casa de Judá um pacto novo. Depois daqueles dias, palavras do Senhor, porei minhas leis no seu íntimo e as escreverei em seus corações (cf. Jr 31,31.33; cf. Hb 8,8).  

Aquele, pois, que falara a Moisés, falou aos apóstolos. E nos corações dos discípulos, a mão veloz do Verbo escrevia os decretos da nova Aliança. Sem nenhuma escuridão de nuvens envolventes, sem sons terríveis e relâmpagos. Sem estar o povo afastado do monte pelo terror, mas na límpida tranquilidade de uma conversa com os circunstantes atentos, a fim de remover a aspereza da lei pela brandura da graça e tirar o medo de escravo pelo espírito de adoção.  

Qual seja a doutrina de Cristo, suas santas sentenças o demonstram. Elas dão a conhecer os degraus da jubilosa ascensão àqueles que desejam chegar à eterna beatitude. Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5,3). Seria talvez ambíguo a que pobres se referia a Verdade, se dissesse: Bem-aventurados os pobres, sem acrescentar nada sobre a espécie de pobres, parecendo bastar a simples indigência, que tantos padecem por pesada e dura necessidade, para possuir o reino dos céus. Dizendo porém: Bem-aventurados os pobres em espírito, mostra que o reino dos céus será dado àqueles que mais se recomendam pela humildade dos corações do que pela falta de riquezas.

-- Início do Sermão sobre as Bem-aventuranças, de São Leão Magno, papa (século V)

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